As fake news sobre o projeto de lei que combate as fake news

O Projeto de Lei 2.630/2020, o “PL das Fake News”, relatado pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), reflete um debate que se tornou inadiável no Brasil: como coibir a disseminação de conteúdos de ódio e notícias falsas que são disparados através, sobretudo, das grandes plataformas digitais? Em que medida é possível criminalizar essas práticas abusivas e regulamentar minimamente o setor, de modo a blindar e fortalecer o Estado Democrático de Direito?

Nesta quarta-feira (6), o plenário da Câmara Federal rejeitou o requerimento para que a proposta passasse a ter caráter de urgência. Faltaram apenas oito votos para que o PL ganhasse uma tramitação mais rápida, a tempo de que suas regras fossem aplicadas já nas eleições 2022. É um revés pontual, mas a luta pela efetivação de uma lei dessa dimensão não pode parar. O “PL das Fake News” deve – e vai – ser votado! O apoio a essa causa precisa avançar.

Vale dizer que, para a derrota do requerimento na Câmara, contribuiu o lobby das gigantes da tecnologia, que – ironia do destino – abusaram de fake news para tentar deslegitimar o PL que combate as fake news. As mentiras foram muito além de seus primeiros porta-vozes.

“É triste ver pessoas que nunca participaram de nenhuma discussão sobre o PL 2.630 entrarem na onda da chantagem e da desinformação criada pelas Big Techs, pelo Google em particular, para impedir que projeto que as regule seja aprovado”, lamentou, numa série de tuítes, a jornalista Remata Mielli, ex-coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e doutoranda da Escola de Comunicação e Arte da USP. “Quem acha que as Big Techs estão preocupadas em garantir a democracia no Brasil, em melhorar a qualidade do nosso debate público e promover o jornalismo parece que não viu o que aconteceu no nosso país nas eleições de 2018 e em outros países.”

Não é um tema fácil, haja vista a campanha contra o PL 2.630 levada a cabo pelas gigantes da tecnologia – as chamadas Big Techs. Conglomerados como Google, Microsoft, Facebook, Amazon e Apple ergueram mundo afora um oligopólio sem precedentes, beneficiando-se dos ambientes de pouca ou nenhuma regulamentação em que se inseriam. Diversas redes digitais sob responsabilidade dessas empresas conquistaram uma base de centenas de milhões de usuários. Ao menos quatro dessas redes, o Facebook, o YouTube, o Instagram e o TikTok, já passaram do primeiro bilhão de pessoas conectadas pelo mundo.

“A capacidade de enviar e receber informações de modo livre é fundamental para o modo como a web funciona”, tentou justificar-se, no último sábado (2), o presidente do Google Brasil, Fabio Coelho, em artigo publicado no blog da companhia. Eximindo-se da responsabilidade dessas empresas para o alcance massivo das fake news, Coelho afirmou que os brasileiros “buscam informações úteis e confiáveis no Google todos os dias”.

O executivo se esqueceu de acrescentar que, nessa busca, os usuários também estão expostos a uma infinidade de conteúdos falsos e criminosos. Não há filtros suficientes e confiáveis no Google nem em outras plataformas – e, no caso do Brasil, o efeito disso já não se limita a regiões específicas. O bolsonarismo, ao explorar ao máximo essa “terra sem lei”, fez da desinformação uma tática central e vitoriosa nas eleições presidenciais de 2018. Da mesma maneira, a desinformação em larga escala – promovida sobretudo via redes sociais – alimentou as teses negacionistas do presidente Jair Bolsonaro e aliados frente à pandemia de Covid-19.

O PL que combate as fake news é, assim, um avanço democrático. “Nosso objetivo é ter uma internet livre, garantir liberdade de expressão e transparência por parte das plataformas digitais que operam na internet. Para isso, é necessário ter regras”, afirmou o relator Orlando Silva. “Queremos uma lei já, porque a eleição está vindo aí, e não podemos deixar que as fake news, de novo, influenciem na eleição.”

As Big Techs não são, a rigor, as autoras das práticas que o PL visa combater. Mas a falta de transparência de redes como o Facebook, o Instagram, o WhatsApp e o Telegram fez delas verdadeiros territórios livres para o avanço das fake news. Por isso, o PL 2.630 estabelece critérios para facilitar a identificação de criminosos que agem nas redes sociais.

Diferentemente do que insinuam executivos do Google e de outras gigantes, o “PL das Fake News” não impõe nenhum tipo de censura prévia, não fere a liberdade de expressão, nem tampouco fala no banimento de um ou outro conglomerado. Não se trata sequer da regulação econômica de um setor. É tão-somente “uma lei democrática para regular as plataformas digitais”, de acordo com a síntese feita pela jornalista e ativista Bia Barbosa.

“Foram dois os grandes blocos que impediram o avanço do debate do PL: o bolsonarismo e os adeptos da narrativa neoliberal das grandes plataformas”, analisa Bia. “O primeiro campo é aquele que não quer regra nenhuma para o funcionamento das redes porque defende a liberdade de expressão absoluta para desinformar, praticar violência e cometer crimes. O segundo não quer novas regras para seguir se autorregulando e manter lucros bilionários. A soma desses dois grandes interesses suplantou a importância estratégica do país enfrentar a agenda regulatória do setor com uma lei debatida democraticamente e que, nas mãos do deputado Orlando Silva, teria todas as chances de ser aprimorada.”

Um dos critérios propostos por Orlando é a exigência de representação legal de tais empresas no Brasil – algo que o Telegram só se comprometeu a adotar em março passado, depois que o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou o bloqueio temporário dessa plataforma. Além disso, conforme o relator, o PL “estabelece a obrigação de transparência para plataformas digitais; proíbe que órgãos públicos façam publicidade em veículos que divulgam conteúdo de ódio; torna crime a divulgação em massa de fake news; entre outras medidas”.

O Brasil não é o único país onde as Big Techs são absurdamente permissivas com redes que fazem circular informações falsas. Mas aqui se assiste a uma modalidade mais nociva de fake news – aquela que envolve até familiares e apoiadores do presidente da República, quando não o próprio Bolsonaro. A corrente antivacina e a propaganda contra a urna eletrônica são exemplos dos riscos da desregulamentação.

Uma das críticas ao “PL das Fake News” sugere, de forma descontextualizada, que a Globo pode se tornar ainda mais poderosa com as remunerações previstas no projeto. Mas a essência da medida não é esta. “É erro atacar o deputado federal Orlando Silva e carimbá-lo como aliado da Globo por conta do PL das fake news”, opiniou o jornalista Renato Rovai, da Revista Fórum. “Há um debate em curso que precisa ser calibrado para que os meios independentes não percam ainda mais receita e audiência. E hoje isso depende mais do Google do que da Globo.”

Essa luta – reitere-se – segue na ordem do dia, ainda que o PL não vá tramitar em caráter de urgência. O sentido do projeto proposto por Orlando Silva mostra que é preciso desmistificar o debate, buscar o esclarecimento e barrar a cultura da mentira e do ódio. Não é uma causa que pode ficar restrita às plataformas, porque diz respeito às liberdades do povo e à soberania da própria nação. As fake news influenciam a opinião pública, destroem reputações, disseminam ódio e abalam as democracias. É fundamental apoiar o PL 2.630 e exigir sua votação na Câmara.