As células tronco, a defesa da vida e a maldição divina

A pesquisa médica com células-tronco embrionárias acaba de dar um passo importante nos Estados Unidos, onde foi anunciada anteontem (10), com autorização governamental, o início da primeira experiência terapêutica em um paciente humano, cujo nome não foi revelado. Trata-se de um portador de lesão na medula espinhal, que perdeu todos os movimentos e a sensibilidade depois de um acidente em que fraturou a espinha.

A experiência pioneira se desenvolve no Shepherd Center, um hospital na cidade de Atlanta (Geórgia). É um passo importante, pois este tratamento já comprovou, em animais, a possibilidade de restabelecer ligações nervosas seccionadas em algum acidente e permitir que seus portadores possam recuperar os movimentos e a sensibilidade na parte do corpo afetada. Nos EUA (como também no Brasil) a principal causa deste tipo de lesão são os acidentes de trânsito, que afetam principalmente jovens: a idade mais frequente é 19 anos, e a idade média é 26 anos.

Além dos esperados resultados médicos, a pesquisa com um ser humano iniciada anteontem envolve questões de natureza ética e enfrenta forte oposição de grupos religiosos. É uma controvérsia que tem pelo menos duas décadas, desde que esse tipo de pesquisa começou a ser feito com células tronco embrionárias humanas. É igualmente carregada de emoções e firmada em crenças religiosas, pois este tipo de pesquisa usa embriões humanos descartados em clínicas de fertilização in vitro. O debate é semelhante ao que envolve a questão do aborto e está ligado à definição do momento em que a vida começa e quando o embrião pode ser considerado um ser humano.

Os opositores do uso de embriões humanos nas pesquisas médicas alegam que este procedimento é semelhante ao aborto e igualmente condenável. Segundo este ponto de vista, os embriões já seriam seres humanos, pois, na opinião de muitos grupos religiosos, a vida começa no momento da concepção.

A controvérsia é grande e há inúmeras respostas para esta questão. Há aqueles que pensam que a vida começa na terceira semana de gestação, quando o embrião já tem alguns traços individualizantes; outros pensam que ela tem início na oitava semana, quando o embrião já apresenta ondas cerebrais. Outros fixam esse prazo na 25ª semana, quando o feto já tem tudo o que lhe permite sobreviver fora do útero.

Mas a força do argumento religioso é muito grande e representa um obstáculo para as pesquisas. Com base nele, nos EUA, em 2001 o governo ultraconservador de George W. Bush havia proibido o uso de dinheiro do governo para financiar esse tipo de pesquisa. No Brasil, em 2005, diante de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade iniciada contra a Lei de Biossegurança que tramitava no Congresso Nacional e poderia permitir o uso de pesquisas com células tronco, o Supremo Tribunal Federal convocou religiosos, pesquisadores e membros da sociedade civil para debater a questão numa audiência.

Estes dois exemplos dão uma ideia da dimensão do impasse e do significado da pesquisa. Afinal, aqueles que, com argumento religioso, alegam defender a vida acabam sendo, na prática, a favor da doença ou da morte.

As pesquisas com células-tronco constituem uma das mais risonhas promessas de superação de limitações graves que a técnica moderna pode ajudar a superar. As lesões de medula espinhal são apenas parte delas. Há disfunções musculares, doenças cardíacas, diabetes e outros males que, corrigidos, poderiam tornar muitas vidas mais felizes e produtivas. Mas que, pela decisão ética de alguns homens, ainda parecem uma espécie de maldição divina.