A Usina de Santa Isabel e a Guerrilha do Araguaia

O artigo Memória Afogada, de Leandro Fontes, na Carta Capital, levanta um debate relevante para a democracia no Brasil: com o projeto da Usina Hidroelétrica Santa Isabel, que deve inundar 24 mil quilômetros quadrados no vale do Rio Araguaia, em 2013, ''os corpos de 58 brasileiros mortos durante a Guerrilha do Araguaia, possivelmente assassinados a sangue-frio ou sob tortura pelo Exército, precisam ser encontrados em quatro anos. Ou cairão, para sempre, no esquecimento''.


 


A energia elétrica é uma conquista civilizatória insubstituível – que o digam os milhões de beneficiados pelo programa Luz Para Todos. E a hidroeletricidade, renovável e limpa, é, entre as alternativas com tecnologia amadurecida atualmente, aquela com melhor custo-benefício. O fato dela responder por 74% da nossa energia elétrica é uma notável particularidade e vantagem da matriz energética brasileira. É justo investir nela.


 


No entanto, sempre há custos, ambientais, econômicos, sociais, que podem e devem ser ressarcidos com rigor. Haveria um custo histórico, democrático e humano inestimável caso a Santa Isabel venha submergir em suas águas toda esperança de se resgatar a saga da Guerrilha do Araguaia e os restos de seus combatentes – assim como a ditadura inundou com o açude de Cocorobó o cenário da Guerra de Canudos.


 


Isto dá ao governo quatro anos para trazer à luz a verdade sobre a guerrilha de 1972-1975: abrir os arquivos, ouvir as testemunhas, localizar as ossadas, recuperar o episódio na sua inteireza. Ele tem sua face heróica e sua face tenebrosa. Ambas, hoje, são história, que merece, necessita, clama por ser conhecida, por esta geração e as que virão, para que aprendamos com ela.


 


São conhecidas as resistências dos militares que reprimiram a guerrilha em proceder a tal acerto de contas. O projeto da usina impõe-lhes um teto para o protelamento que se arrasta há 37 anos. E recoloca para as Forças Armadas da atualidade o dever e o direito de limparem essa nódoa e deixarem de carregar esses cadáveres.


 


È o que prevê estudo de impacto ambiental da usina, que já em 2000 apontava a necessidade de, antes de se realizar a obra, identificar os vestígios da guerrilha. Os presidentes da Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça, ouvidos pela Carta Capital, foram enfáticos sobre a necessidade de resgatar as ossadas e impedir uma irreversível perda histórica.


 


O bicho-homem é um ser intrinsecamente transformador da natureza, e de si mesmo, individual e socialmente. Quando o faz às cegas, paga caro por isto. Mas pode construir consciência. 


 


Que a primeira hidroelétrica do belíssimo Rio Araguaia não seja um acinte ao sofrimento dos guerrilheiros e moradores durante a repressão. Que seja um monumento à consciência de um povo que não esquece de onde veio para melhor discernir onde quer chegar. Que não só produza luz, força, energia, mas também, antes tarde do que nunca, desvende este capítulo até hoje sonegado à história do Brasil.