A dupla contradição da União Europeia

A reunião de cúpula da União Europeia, iniciada em Bruxelas na quinta-feira (8), terminou ontem (9) sob uma aprovação pelos “mercados” financeiros que não chegou a ser eufórica e com a perspectiva de agravamento das relações em duas frentes – a própria unidade europeia, trincada com a recusa do Reino Unido em aceitar as medidas aprovadas naquele encontro; a outra frente é a oposição dos trabalhadores contra uma política econômica que, para salvar o grande capital e os especuladores financeiros, acena com mais cortes orçamentários e mais reduções nos direitos sociais.

O saldo daquela reunião revela, numa visão superficial, o êxito alemão em impor a chamada “austeridade” fiscal aos demais países europeus como saída contra a crise – é a saída convencional, neoliberal, diga-se de passagem. Mas que, naquela reunião, o governo de Ângela Merkel tentou enfiar goela abaixo nas demais nações europeias como receituário que, tudo indica, pode ser ainda mais drástico do que as imposições feitas, há poucos anos, pela Europa e pelos EUA aos países do chamado Terceiro Mundo.

A pretensão alemã, coadjuvada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy, era nada menos do que impor o que chamavam de refundação da União Europeia sob uma política econômica obrigatória e drástica que pretendiam ver incorporada às constituições dos países do continente.

O primeiro-ministro conservador inglês David Cameron resistiu contra esta pretensão, que só aceitaria se os parceiros europeus (isto é, fundamentalmente, Alemanha e França) concordassem com algumas exceções para o Reino Unido. É uma típica contradição interimperialista; o fundamental, para ele, era a Inglaterra ficar fora dos mecanismos de regulação financeira previstos. E, em relação a isto, sua ação esbarrou numa questão fundamental – a defesa da soberania inglesa contra alterações institucionais impostas desde Bruxelas, chanceladas por Alemanha e França, pelas quais os países abrem mão de sua soberania em questões relativas à política econômica.

A “refundação” acabou limitada a um pacto entre os demais países do bloco europeu; somente Suécia e República Tcheca ainda não aderiram formalmente, pois precisam submeter essa decisão a seus parlamentos. Esse pacto prevê um déficit orçamentário tolerável até o limite de 0,5% do PIB de cada país, com uma dívida inferior a 60% do PIB, e dá autoridade ao Tribunal Internacional de Justiça para fiscalizar o desempenho dos governos nacionais. Países com déficit até 3% ficam sujeitos ao monitoramento pela Comissão Europeia e aqueles que superarem este limite poderão ser punidos. A Comissão Europeia passa a ter o poder de revisar as propostas orçamentárias das nações da União Europeia, com capacidade para alterá-las e impor mudanças. Além disso, a reunião aprovou o financiamento de 200 bilhões de euros para fortalecer a capacidade de intervenção do FMI. Finalmente, mantém a pretensão de que os países incorporem estas decisões a suas constituições, reforçando a obrigatoriedade de seu cumprimento.

A proclamação de salvação do euro ouvida ao final da reunião sofre de uma contradição fundamental: a moeda só pode exigir à custa da soberania nacional dos países envolvidos no acordo. A salvação do grande capital e dos especuladores financeiros só pode ocorrer pelo sacrifício dos povos e nações – esta é uma primeira conclusão que se impõe.

Mas há outra, que anda de braços dados com aquela: a sobrevivência do capital depende também do sacrifício imposto aos trabalhadores, que reagem e não aceitam pagar por uma crise pela qual não são os responsáveis. As manifestações de massa que ocupam as ruas e as greves em todos os setores da economia se tornaram parte da vida cotidiana europeia. E, quando os líderes da alta finança se reúnem para impor um programa tão drástico para salvar o capital, os dirigentes sindicais não ficaram atrás e aprovaram um documento onde exigem medidas para manter os direitos sociais dos trabalhadores, o emprego e a renda.

Na mesma quinta-feira da reunião dos magnatas em Bruxelas, dirigentes de oito entidades de trabalhadores divulgaram um documento que relaciona as medidas que os trabalhadores exigem, assinado por representantes de oito centrais sindicais de cinco países (Alemanha, Bélgica, Espanha, França e Itália). Eles acusam o fracasso das medidas de austeridade tomadas até agora para recuperar a economia e mostram que os cortes salariais, nas aposentadorias e nos gastos em educação e saúde, geraram “mais pobreza e desigualdades e erosão da coesão social”.

Contra elas, apresentam um programa para a retomada da economia, baseado no resgate social. Eles querem a revisão dos tratados europeus levando em conta a dimensão social das políticas econômicas, com novas diretrizes fiscais, e que assegure o fim da especulação financeira e das altas taxas de juro, aumente a taxação das rendas do capital, e tenha uma cláusula geral de respeito aos direitos sociais fundamentais.

Um novo contrato social europeu precisa, alertam, ter a participação de interlocutores locais e dos trabalhadores, e deve estar voltado para a garantia do emprego, dos salários, das aposentadorias, a educação e a saúde. “O progresso da União Europeia deve basear-se na coesão social e na solidariedade no interior de seus Estados. Para tanto, é necessário atuar no âmbito comum europeu e reforçar o diálogo social. Os trabalhadores não devem estar excluídos desse processo”, conclui no documento.

É um discurso radicalmente oposto ao que foi ouvido nos salões da cúpula europeia em Bruxelas e que revela uma divisão muito mais profunda do que a que se viu entre o Reino Unido e o resto do continente – revela a divisão de classes subjacente à busca de saídas para a crise e que opõe, nos países europeus, o povo e os trabalhadores aos governantes conservadores e neoliberais e aos especuladores das bolsas de valores e dos mercados de capitais. E que, contra a pretensão destes de salvar uma moeda – o euro – opõem uma ambição muito maior, a salvação da humanidade.