A Comissão da Verdade e os argumentos cínicos da direita

Na avaliação de Nilmário Miranda, ex-secretário nacional dos Direitos Humanos no governo Luíz Inácio Lula da Silva, a aprovação da Comissão da Verdade pela Câmara dos Deputados (dia 21) foi o quarto momento da redemocratização desde a Lei de Anistia (1979), a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (1995) e da Comissão da Anistia (2001).

É um longo período, que pode ser contado em décadas desde 1979, no qual se repete a lentidão dos passos progressistas e democráticos no Brasil, travados pelo freio representado pelo medo conservador da verdade, medo que impõe negociações e delongas.

Na questão da apuração dos assassinatos políticos, tortura e atentados aos direitos humanos cometidos durante a ditadura militar (1964-1985), estes interesses estão vivos, atuantes e têm representação no Congresso Nacional, como se pode ver mais uma vez na tramitação e demora para a aprovação da Comissão da Verdade, embora ela exista e funcione em cerca de 40 países que fizeram o trânsito de regimes ditatoriais para a democracia.

A resistência contra a apuração e revelação dos responsáveis por aquele passado tenebroso é diretamente proporcional à força política ainda mantida por setores da classe dominante envolvidos com a repressão política. O passado destes setores é a fonte do medo à verdade. Eles foram a face civil da ditadura e estiveram envolvidos no mínimo com o financiamento do aparato repressivo e, evidentemente, usam todo seu poder para impedir que a verdade da tortura e assassinato políticos seja exposta para a nação.

Há também aqueles que tergiversam e querem uma apuração “imparcial” que envolva também militantes da resistência democrática que pegaram em armas contra a tirania. O deputado da direita Jair Bolsonaro tentou evitar a obrigatoriedade de militares atenderem às convocações para depor. Foi derrotado pelo plenário na votação da Comissão da Verdade. O ex-ministro Jarbas Passarinho, importante quadro da direita militar desde a década de1950 e expoente da ditadura militar, quer incluir a apuração da atividade dos guerrilheiros no Araguaia, opinião hipócrita, primeiro porque a própria ditadura escondeu os corpos dos guerrilheiros presos e assassinados por agentes da repressão que, mais de 40 anos após aqueles acontecimentos, insistem em ocultar e manter em segredo a barbárie da repressão e o fim dado aos restos mortais daqueles heróis. E depois porque o alvo de Passarinho é o Partido Comunista do Brasil. Qual o significado de sua opinião? Não havendo guerrilheiros para julgar pois foram assassinados e seus corpos escondidos, ele quer colocar em julgamento o PCdoB, que dirigiu a resistência democrática e patriótica no Araguaia. Passarinho esconde, por traz do biombo da “imparcialidade”, um sólido sentimento revanchista, anticomunista e antidemocrático.

Alegações conservadoras como estas repercutem na Câmara dos Deputados. A deputada comunista Jandira Feghali (PCdoB-RJ) qualificou-as, corretamente, como cínicas. “Tivemos, lamentavelmente, que ouvir argumentos cínicos daqueles que pretendem tratar da mesma forma os atos criminosos cometidos durante o período da ditadura militar" e a resistência contra a ditadura, acusou a parlamentar.

A Comissão da Verdade terá sete membros nomeados pela presidente Dilma Rousseff, mais outros 14 servidores do governo federal. Seu objetivo, expresso na lei que a criou, será, entre outros, esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas em seu período de investigação, que vai de 1946 a 1988 mas cujo foco é a ditadura, de 1964 a 1985; esclarecer de maneira circunstanciada os casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria; identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições envolvidas naqueles crimes, incluindo suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos e assegurar sua não repetição, promovendo a efetiva reconciliação nacional.

Suas limitações são previsíveis. A principal delas será o impedimento de julgar ou criminalizar os torturadores e assassinos políticos da ditadura, protegidos pela Lei de Anistia e pela interpretação vigente que acatou a proteção aos chamados “crimes conexos" que figura naquela lei. Mesmo assim, sua constituição – que agora depende de aprovação pelo Senado – é um grande passo democrático. A Comissão da Verdade vai identificar os responsáveis por aqueles crimes, expondo-os ao conhecimento do país. Se efetivamente isto ocorrer, corresponderá na prática a um julgamento e uma condenação morais da ação criminosa daqueles agentes da repressão política.

Outro avanço é representado pela determinação de propor ações contra a tortura que ainda ocorre em delegacias brasileiras, uma herança perversa que se mantém justamente pela impunidade que protege aqueles que cometem violências contra presos que estão sob custódia do Estado.

Além disso, há uma promessa implícita na aprovação da Comissão da Verdade, expressa pela esperança manifestada por Nilmário Miranda de que ela não encerre o processo nem seja a última página da transição, mas um passo no rumo do estabelecimento da Justiça – e fortalecimento da democracia, pode-se agregar. Esperança com partilhada por outro ex-secretário nacional dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, para quem a revelação daqueles casos escabrosos poderá levar o Judiciário a uma nova jurisprudência, permitindo a punição dos torturadores e assassinos políticos. Este será um novo passo e, dada a resistência conservadora cúmplice daqueles crimes, uma nova luta.