Velhas portas abertas da America Latina

“Esse liberalismo selvagem está provando que é hoje a pior coisa que pode acontecer a qualquer povo, as coisas não podem ser medidas pelo dinheiro e pelo êxito.”  (Pedro Almodóvar, em 1996).
 

No velório de Augusto Pinochet, sem legítimas honras de Estado, talvez o momento mais emblemático tenha sido a saudação nazista de três jovens chilenos. Ali, a farsa e a tragédia da história se reencontraram para que possamos refletir sobre que momento vive a América Latina.
Esta América Latina que ainda traz sua herança colonial, marcada pela exploração de seus povos, pela miséria social de seus habitantes, pelo preconceito e pelo racismo estrutural e cultural.


 
Pinochet representava, e ainda representa para muitos, a subserviência dos latino-americanos ao Império, seja ele inglês, norte-americano ou outro. Pinochet é o reverso da medalha de George W. Bush que, através da Alca, quer o resto do Continente como uma simples extensão econômica e política dos Estados Unidos. O ditador morreu sem o julgamento de seus crimes contra os direitos humanos, tendo em sua defesa uma ética que justifica o crescimento econômico sem distribuição de riqueza, a mercê de milhões em contas particulares na Europa. Porém, com Pinochet caiu por terra o discurso conservador de que os golpes militares latino-americanos foram marcados por governos honestos que moralizaram a política. Os milhões de dólares escondidos em bancos europeus têm sido um bom antídoto para as viúvas do Brasil de 1964, do Chile e do Uruguai de 1973 e da Argentina de 1976.


 
À custa de gerações, marcadas pela retirada do ouro e de tantas riquezas no passado colonial, pelo massacre dos povos indígenas e pela exploração do trabalho das camadas populares, pelo trucidamento do Paraguai soberano do século 21 e pelo exílio, assassinato, tortura e desaparecimento de milhares de pessoas pelas recentes ditaduras civis-militares, a América Latina, pouco a pouco, retoma o sonho da integração independente projetada por Simon Bolívar, por José Marti, por José Carlos Mariátegui, por Ernesto Che Guevara e tantos outros lutadores de nossos povos.



Não foram somente as ditaduras recentes que marcaram nossos países. Políticas macroeconômicas desestatizantes, assinaladas pela desnacionalização, pela desindustrialização e pelo desemprego seguiram as políticas repressivas do terrorismo de Estado representadas pelas ditaduras de segurança nacional, em especial no Cone Sul. Da repressão política e da subordinação econômica passamos para o mito de que a liberalização econômica com democracia política abriria as portas para o desenvolvimento.



A tragédia da vitória neoliberal entre os anos 1990 e a atualidade representou o aumento de nossa dependência e das dívidas externa e interna, a falência da Argentina de Menem e o esgotamento do mando secular do PRI mexicano. No rastro destas experiências tivemos o Brasil de Fernando Henrique Cardoso, adepto da integração subordinada ao Tio Sam, uma página da história virada recentemente, mas que ainda nos deixa folhas amareladas de uma política econômica que entrava o caminho para um desenvolvimento que dê conta das mazelas históricas de nosso País.
Mas o caminho se faz ao caminhar, já dizia o mestre Machado de Assis. E as experiências recentes de nosso continente parecem reforçar esta máxima.



Na Venezuela de Hugo Chavez, atacado como populista, o velho jargão conservador utilizado para depreciar medidas de caráter popular e nacional, a autodeterminação dos povos, velha bandeira contra o domínio colonial e imperialista, foi reforçada com a sua reeleição. Podemos discordar de tudo que Chavez vem realizando, mas não temos o direito de dizer aos venezuelanos o que fazer, sobretudo quando o próprio presidente aprendeu que não é com golpes militares que se salva uma nação. Traduzida em votos, parece que a reeleição do presidente vem mostrando o notável caminho de independência que o país mais rico em petróleo da América Latina vem conquistando.


 
Na Bolívia, a maioria indígena, pela primeira vez na história, elegeu um filho seu para conduzir os seus destinos. Não é pouca coisa para uma nação que sobreviveu a tantos séculos de exploração estrangeira. Daqui de nossa província, estranhamente ouvimos vozes historicamente privatistas e abertas ao capital externo bradarem, como nacionalistas de última hora, contra as medidas de Evo Morales. Se seus discursos tivessem correspondência política no Brasil talvez vencessem as recentes eleições.


 
No Equador, Rafael Correa derrotou as oligarquias locais prometendo promover a fusão do Mercosul e da Comunidade Andina de Nações (CAN). É uma resposta a Colômbia e ao Peru que vêm negociando um tratado bilateral com os EUA.



É deste quadro que nasceu a vitória de Daniel Ortega na Nicarágua e tantas outras, como anteriormente Kirschner, na Argentina, Tabaré Vázquez, no Uruguai e Michelle Bachellet, no Chile. Nos últimos meses tivemos eleições presidenciais por toda a América Latina. De onze pleitos realizados entre dezembro de 2005 e dezembro de 2006, os projetos neoliberais foram derrotados em nove. Mesmo nas vitórias das forças conservadoras na Colômbia e no México (lá, a fraude coloca em suspeito o processo, aumentando as mobilizações em Chiapas, Oaxaca e na capital do país), os setores progressistas obtiveram reforços políticos importantes.



As velhas portas da América Latina estão novamente abertas para um ciclo que vem marcando as relações internacionais. Europeus, africanos e asiáticos se voltam para nosso continente para entender esta nova experiência. Através de eleições institucionais, reforçada pela mobilização dos movimentos sociais, ainda marcadamente defensivos, novos projetos de soberania e integração se constroem mutuamente. A esquerda e a centro-esquerda chegam ou reelegem-se na maioria dos países latino-americanos.


 
Não tem se revelado um processo fácil. Velhos conflitos, alguns artificiais e outros reais, continuam a nos assombrar para manter uma máxima: “enquanto brigamos entre nós os interesses monopolistas se estabelecem mais rapidamente”. Mas temos apreendido muito com 500 anos de dominação.


 
Entre 8 e 9 de dezembro de 2006 aconteceu a 2ª Cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN), na cidade boliviana de Cochabamba. O encontro teve a presença de oito dos doze presidentes que formam a organização. A Casa, como é conhecido o bloco, é uma união de todos os países da América do Sul através da integração do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela – da Comunidade Andina de Nações (CAN) – Bolívia, Colômbia, Equador e Peru – além de Chile, Guiana e Suriname. México e Panamá participam como observadores.



A reunião, apesar de problemas bilaterais, reforçou a idéia de que nenhum país latino-americano consegue desenvolver-se isoladamente. A reciprocidade social, cultural, comercial, do mundo do trabalho e dos movimentos sociais só vem reforçar o processo de integração solidária nos tratados que envolvem os países em comum, enterrando cada vez mais a proposta de uma Associação de Livre Comércio Americano subordinada aos interesses unipolares norte-americanos.



Em 18 e 19 de janeiro passado, no Rio de Janeiro, aconteceu a 32ª Reunião da Cúpula do Mercosul, com a participação de Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela Chile, Bolívia e Colômbia. Ali, diferentemente do que alardeou a grande imprensa, através de matérias diversionistas que estimulavam a intriga entre os líderes dos países do bloco, a integração latino-americana deu mais um passo para a sua concretização. Mais ainda porque se avançou para a solução das assimetrias históricas entre os países membros.



Na oportunidade, ao contrário da pregação extemporânea dos neoliberais, Hugo Chávez, confrontando o imperialismo, sem deixar de criticar a hegemonia das multinacionais e as políticas de autonomia dos bancos centrais propostas pelo FMI feitas até agora no processo de integração, clamou para que os países da América Latina dêem maior espaço para o Estado na economia. Esta perspectiva tem sido reforçada pela defesa do socialismo do Século 21 proposto pelo governo venezuelano e a continuidade das nacionalizações levadas adiante na Bolívia, medidas que vão de encontro aos interesses norte-americanos na região e ao discurso do “pensamento único” que ainda persiste em defender a “mão invisível do mercado”, mesmo que os resultados econômicos e sociais tenham desmentido esta cantilena nas últimas décadas.


 
Decididamente, são novos tempos políticos os que estamos vivendo, nos quais o alinhamento automático com os Estados Unidos tem deixado de ser a única via para nossos governos. A integração latino-americana configura uma antiga e nova plataforma de luta dos povos trabalhadores de nossas nações. A constituição de um pólo independente e soberano na América do Sul, contra-hegemônico, que conteste o mundo unipolar, protagonizado pelos Estados Unidos; o desenvolvimento como centro do processo de integração, impulsionando o crescimento econômico, a unidade física e de infra-estrutura e a integração energética, tendo em conta a questão fundamental da sustentabilidade ambiental; a defesa e o aprofundamento da democracia, através da ampliação dos mecanismos de participação popular, impulsionando as conquistas sociais e a valorização do trabalho como eixo fundamental para que a integração seja instrumento da melhoria da vida dos povos; o vigor da cultura e da identidade nacional de cada um dos povos latino-americanos, segundo suas distintas formações sociais – num contexto de reafirmação da questão nacional em oposição ao cosmopolitismo pós-moderno da globalização neoliberal. Eis algumas das bandeiras aprovadas na 2ª Cúpula.



Que magnífica e marota é a história! Um dia depois do encerramento deste encontro e no Dia Internacional dos Direitos Humanos, morria Augusto Pinochet. 10 de dezembro de 2006, dia em que se fechou uma porta nefasta para a maioria dos chilenos.



Em meados dos anos 1990, quando Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Alvaro Vargas Llosa escreveram o Manual do Perfeito Idiota Latino Americano, incluíram Eduardo Galeano e seu As veias abertas da América Latina, um dos livros mais vendidos na história destes países, como o maior símbolo de uma suposta cretinice do pensamento contestador deste continente.



Na euforia da época, os treze capítulos do Manual, verdadeira Bíblia e best seller do avanço neoliberal, com trezentos e trinta páginas de menosprezo, chacota, caçoadas e gracejos contra a esquerda latino-americana obtiveram um relativo sucesso nos Institutos Liberais do Continente.



Diziam os autores que o pecado maior não é ter sido idiota, mas continuar sendo. Passada uma década quem lembra da propalada idiotia política na América Latina e de seus autores. Pelo contrário: nosso insistente realismo tem transformado a miséria reforçada pelo mito do livre mercado em mágica transformadora, mesmo que nos limites eleitorais e nas ainda tímidas iniciativas integracionistas e da manutenção das políticas macroeconômicas ainda marcadamente neoliberais dos governos do Chile, do Uruguai e do Brasil.



Eduardo Galeano, Gabriel Garcia Márquez e tantos outros idiotas devem estar rindo com o humor fracassado do Manual, uma piada e um panfleto efêmero e de mau gosto, que não duraram mais que doze anos, assim como o Terceiro Reich de Hitler, funestamente lembrado na saudação dos três jovens chilenos, durante o velório de Pinochet. Não terá sido a toa que Margaret Tatcher disse ter ficado profundamente triste com a morte do tirano. Parece que as portas abertas pela “mãe do neoliberalismo” também estão se fechando. Daí o seu luto.



Nota


Esta é uma versão ligeiramente modificada do artigo publicado com o mesmo título no jornal Diário de Santa Maria, na seção MIX-Idéias, na edição de 6 e 7/01/2007, p. 14-5.

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