Vamos derrotar a Rede Globo

O ano corrente será marcado com forte simbolismo dado pelos números e o debate acerca do futuro do Brasil e da questão racial. No decorrer de 2008 fará 200 anos que a Família Real chegou ao Brasil, esse evento aprofunda e consolida a estrutura administrat

Esse ano faremos 120 anos da desinstitucionalização formal da escravidão – oficial e popularmente conhecida como Abolição dos Escravos – data que guarda significados que perduram na sociedade atual. Comemoramos 100 anos de nascimento do pintor, poeta, folclorista, teatrólogo, militante político do PCB e do movimento negro, o pernambucano Solano Trindade. Um importante combatente popular, exímio construtor de nossa nacionalidade, totalmente ignorado pelos formadores de opinião e pelas massas populares brasileiras.



O movimento negro comemora, também, os 30 anos do Movimento Negro Unificado – MNU e os 20 anos de lançamento da União de Negro Pela Igualdade – Unegro. Duas organizações com presença em todo país, sem dúvida representam maior maturidade das lideranças negras brasileiras, um salto de qualidade na luta do movimento negro e um patrimônio da resistência e ação da população negra contra  a opressão racial.



Em meio a tantos marcos importantes para o movimento negro brasileiro, para o avanço da luta contra o racismo e para a vida nacional, vemos a Rede Globo trabalhando para valorização dos 200 anos da chegada da Família Real no Brasil. Se a Globo quer tanto dar visibilidade a chegada da Família Orleans e Bragança, se setores do Estado (especialmente o governador da Bahia) assimilaram passivamente essa pauta, nos obrigam a responder algumas questões, tais como: quais significados podemos atribuir ao evento que a Globo tem destacado? Como apresentar a sociedade brasileira nossa pauta e nosso ponto de vista?



É importante entendermos as razões que motivaram a fuga da corte de D. João VI de Portugal, elas não se identificam nem de longe com qualquer objetivo ou projeto de fortalecimento do Império Português ou do Brasil. Intencionavam garantir-se enquanto governantes e indivíduos. Na época muitos acreditavam que a fuga foi de um ato de fraqueza e covardia, pois o futuro rei não esboçou nenhuma resistência contra a ameaça do império francês. O caminho escolhido produziu grandes prejuízos material e militar, além de deixar Portugal acéfalo, atônito, desprotegido da fúria napoleônica. Antes do pinote de D. João VI e seus 15 mil asseclas – todos vindos de famílias portuguesas importantes – promoveram o maior saque então visto pelo humilde povo luso. Tal qual gafanhotos em plantação de trigo, levaram tudo que coube nas embarcações, ouro, livros, armas, alimentos, roupas, móveis, cristais, jóias, tapetes, quadros, animais de estimação, tudo. Levaram toda riqueza que conseguiram.



Inegavelmente, na época, a vinda de uma corte européia em qualquer colônia da América exigiria algumas mudanças positivas no ponto de vista do desenvolvimento local. No Brasil não foi diferente. No campo cultural D. João VI instituiu a Biblioteca Nacional, Jardim Botânico, Teatro São João, Museu Nacional, Imprensa Nacional, Escola Real de Ciências Artes e Ofícios. No campo administração do Estado fundou o Banco do Brasil, instituiu a Escola de Marinha, a Escola de Artilharia e Fortificações, a fábrica de pólvora, o hospital do exército, o arquivo militar. D. João VI foi mais além, elevou o Brasil à categoria de reino, reino unido a Portugal, abriu os portos brasileiros às nações amigas e aboliu a lei que impedia a fabricação de manufaturas no Brasil – medidas que põe fim ao Pacto Colonial, apesar da controvérsia, alguns autores avaliam que as duas últimas medidas contribuíram para aceleração do movimento de independência do Brasil.



Outro elemento importante que pesou positivamente para a nação foi a convenção do Brasil em sede da monarquia imperial, pois contribuiu para dar um sentido de unidade territorial, as províncias então dispersas, pouco dialogavam entre si, passam a se reportarem a Corte que se instalou no Rio de Janeiro, dando centralidade, unidade e racionalidade administrativa. Embora D. João VI após debelar algumas revoltas separatistas no nordeste, inicia um processo de cooptação das oligarquias regionais, para garantir a manutenção da unidade territorial.   



Os processos históricos trazem variáveis, cuja interpretação não deve ser uma constante busca do sim ou não, bem ou mal, claro ou escuro, certo ou errado, pois diálogos unilaterizados estabelecem resultados fictícios, sem credibilidade e base realistica. Nesse sentindo, ao mesmo tempo em que o êxodo da corte portuguesa ao Brasil tinha impacto positivo ao seu desenvolvimento, sustentava uma política egoísta de dominação. D. João VI garantiu arbitrariamente a subsistência de sua ociosa corte, composta por 15 mil vidas. Privilegiou através de cargos públicos, concessão de regras econômicas favoráveis, permissão de apropriação patrimonialista da estrutura administrativa o elemento português, inglês e, em última instância, a oligarquia brasileira dominante – formada por latifundiários e comerciantes que viviam da exploração do trabalho escravo e do tráfico negreiro.



Pode-se dizer que a presença da corte promoveu a recuperação do controle econômico e político em mãos portuguesas, em detrimento dos brasileiros. Consolidou no espaço urbano uma nova oligarquia dominante, formada predominantemente pelos portugueses que acompanharam o Regente. O Brasil, sob novo comando, vira definitivamente a costa para América Latina e intensifica os conflitos com nossos vizinhos. Impõe mudanças de hábitos culturais para atender uma aristocracia européia, em outras palavras, atrasa a consolidação de uma brasilidade popular – que necessariamente seria construída pelos “de baixo”, os negros, índios, caboclos e brancos pobres degredados.



Historicamente as elites que se estabeleceram no Brasil foram nocivas ao povo. O período monárquico, iniciado com D. João VI, foi rigorosamente favorável a constituição de uma elite estrangeira que odiava o Brasil, os brasileiros e sua estadia num país de negros, mulatos, escravocratas, caboclos e índios. Nunca se identificaram com o Brasil, por isso tentam europeizar política, administrativa e culturalmente uma nação que na época já mostrava traços singulares. Nesse período lançam as sementes que serão bases para a futura política de branqueamento instituída por D. Pedro II.



É possível que a Rede Globo esteja engasgada com a derrota sofrida em 2000, quando defendeu posições elitistas durante todo ano que completou meio milênio da presença portuguesa em terras, outrora, indígena. Apesar da massiva propaganda sobre sua ótica dos 500 anos e envolvimento do governo FHC nessa empreitada, perdeu. Na ocasião, a ideologia global omitiu propositalmente as contradições de classes sociais e pregou a existência da democracia racial, esse posicionamento foi obliraterado pelo movimento negro, indígena, sindical e popular. Hoje, com seu revanchismo indisfarsado tenta recuperar a derrota elogiando a segunda ocupação de Portugal ao Brasil – 308 após Cabral. Não apresenta as contradições, os projetos e as classes que se chocaram com a vinda da coroa. Destaca apenas as cenas pitorescas, aposta que a burla tem poder de cegar o povo e retirar-lhes a crítica, para predominar uma visão idílica sobre a colonização portuguesa no Brasil. Trata-se de uma metodologia interpretativa eminentemente conservadora. 



Esse ano é fértil para denunciar os erros e as amarras herdadas que ainda impedem o desenvolvimento com justiça social do Brasil. É importante estabelecer um debate público para desmascarar o pensamento que sustenta o posicionamento da Rede Globo e de setores do Estado Brasileiro. A exemplo dos “Outros 500 – Quinhentos anos de resistência negra, indígena e popular”. Campanha nacional que desmoralizou a tentativa do governo FHC e a Globo comemorarem o domínio português, a vitória da elite sobre o povo e venderem a falsa idéia de harmonia de classe e de raça no Brasil. Essa campanha culminou numa caravana nacional para o município que desembarcou as primeiras caravelas portuguesas, Cabrália – BA. Lá denunciamos ao mundo a opressão dos governos e da elite brasileira, os quinhentos anos de resistência do povo brasileiro e as maldades de FHC e da direita que o sustentou.



Em 2008, anos que completam 200 anos da segunda invasão portuguesa no Brasil, dos 120 anos da abolição inacabada, 100 anos de nascimento de Solano Trindade, 30 anos de lançamento do MNU e 20 anos da Unegro é primordial defender uma agenda positiva, que leve em conta a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do PL 73/99 ora tramitando no Congresso Nacional, o fortalecimento dos quilombolas, combate a intolerância religiosa e as reformas populares. Uma reforma urbana que rompa com o conceito higienista e democratize a ocupação dos espaços territoriais urbanos; a reforma tributária para combater as desigualdades regionais e sociais; a reforma política para garantir a pluralidade nas representações, fortalecer os partidos, dar transparência e democratizar a relação do Estado com a sociedade civil. A mãe das reformas é a educação, além do interesse geral do povo relacionado aos produtos que podemos tirar dessa reforma, há interesses específicos para luta anti-racista: acesso a universidade, reforma curricular e reorientação dos investimentos em pesquisas e extensão. Garantir essa pauta é derrotar novamente a Rede Globo.

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