Uma guerra comercial contra a China?

Na última terça-feira (10-4), os Estados Unidos acionaram a Organização Mundial do Comércio (OMC) contra a China, alegando que o governo de Pequim, dirigido pelo Partido Comunista, não protege de forma adequada a propriedade intelectual, é conivente com a

A iniciativa parece integrar uma ofensiva mais ampla dos EUA, que há poucos dias (30-3) decidiram impor tarifas comerciais a alguns produtos importados da China, entre eles o papel cuchê, mudando uma política comercial em vigor há mais de 20 anos a pretexto de atender um pedido encaminhado ao Departamento de Comércio pela empresa NewPage Corporation, fabricante de papel. É de se esperar, ainda, que a Casa Branca, com o apoio do G-7 (que reúne os países capitalistas mais ricos do planeta), reitere neste fim de semana as pressões para que o governo chinês adote o câmbio flutuante.


 


   
Em abril do ano passado, ao assumir o cargo de representante do governo Bush para questões comerciais, em substituição a Robert Zoellick, Robert Portman, considerado um republicano linha dura, já havia declarado abertamente, em depoimento na Câmara dos Representantes, a intenção de “adotar uma política mais dura e agressiva contra a China”. Certamente as iniciativas em curso refletem esta nova orientação. Resta saber até onde tudo isto vai parar. Estarão os EUA dispostos a deflagrar uma guerra comercial contra a China?


 



Protecionismo e déficit externo



 


Os fatos sugerem que o fabuloso déficit comercial e em conta corrente está elevando a temperatura da febre protecionista no interior dos Estados Unidos. Em 2006, os chineses obtiveram um superávit de 232,5 bilhões de dólares no comércio com os EUA, fato que continua despertando ciúmes e hostilidade entre os empresários afetados pela concorrência chinesa e estimula pronunciamentos irritados e xenófobos no Congresso. Não obstante, preocupações ainda mais sérias e sinistras também estão por trás da crescente agressividade dos imperialistas americanos.


 



O crescimento ininterrupto por quase três décadas, em ritmo de frevo, associado ao avanço extraordinário do comércio exterior e à acumulação de mais de 1,2 trilhão de dólares em ativos externos (reservas) transformaram a China num gigante econômico que já disputa posições com as três maiores potências capitalistas (EUA, Japão e Alemanha), apesar da comovente modéstia dos dirigentes chineses, que ainda classificam seu país como “nação em desenvolvimento”.


 



Avaliado sob o critério da Paridade de Poder de Compra (PPC), o PIB chinês já é o segundo maior do mundo e não está tão distante dos EUA como sugere o valor nominal (estimado em dólar de acordo com a cotação cambial). O PPC é sem dúvidas uma medida mais confiável para aquilatar a real riqueza da China, pois, embora em declínio no mundo, a moeda do Tio Sam ainda anda muito apreciada, sobretudo em relação ao yuan chinês, e terá de cair bem mais para alcançar um valor comercial de equilíbrio, capaz de reverter o escandaloso rombo nas transações correntes. O dólar (pelo câmbio) é uma medida falsa, que subestima o valor real da produção chinesa.


 



Desenvolvimento desigual



 


Enquanto a China continua surpreendendo o mundo pela vertiginosa ascensão, os EUA, em contrapartida, estão em fase de decadência econômica e política, vergados pelo parasitismo – o consumismo desenfreado, o endividamento externo dele resultante e as dispendiosas aventuras militares. A ascensão da China e o declínio relativo do poderio e da liderança econômica estadunidense são os dois principais pólos de um mesmo movimento histórico: o desenvolvimento desigual das nações na atualidade. Quem se apegou demais à falsa idéia de que os EUA tinham recuperado poder e relançado sua hegemonia nos anos 80 ou 90 do século passado não terá capacidade de interpretar corretamente o que está acontecendo no mundo hoje.


 



Conforme notou o professor Luiz Fernandes (revista “Princípios” nº 88) a nova doutrina de defesa dos EUA, elaborada pelo governo Bush e anunciada após os atentados de 11 de setembro de 2001, “assume abertamente que o objetivo estratégico primordial dos Estados Unidos é evitar a consolidação, em qualquer região do mundo, de uma potência que possa vir a confrontar, ou ameaçar, o predomínio unipolar alcançado ao fim da Guerra Fria”. O protecionismo e muitos outros gestos inamistosos constituem a versão prática desta doutrina reacionária, que hoje tem a China como principal alvo.


 


 
A malfadada guerra imperialista contra o Iraque e a tentativa de redesenhar o mapa geopolítico do Oriente Médio de forma a garantir um controle absoluto sobre as ricas reservas de petróleo da região também devem ser compreendidas no contexto da estratégia para recompor a liderança econômica e subordinar as potências rivais, especialmente a China, aos ditames do império.


 



Percebe-se que a decadência, determinada pelo parasitismo econômico, acirra o protecionismo e a agressividade do Estado imperialista. A vontade de deter a ascensão da China tornou-se óbvia e transparece em muitos episódios recentes, cabendo aqui destacar a este respeito a descarada proibição da aquisição de duas grandes empresas norte-americanas pelos chineses – a petrolífera Unocal e a fabricante de máquinas de lavar Maytag -, numa cínica contradição com a ideologia neoliberal de livre comércio e liberdade de investimentos.


 


 
Flertando com o eixo do mal



 


A hostilidade imperialista certamente também tem a ver com o fato de que a China não joga o mesmo jogo das potências capitalistas na diplomacia mundial, não emergiu no cenário da história como as potências tradicionais (é fruto da revolução socialista dirigida por Mao Tsé-tung) e não comunga com os mesmos objetivos e interesses destas. Tem sido solidária com Cuba, apóia a Venezuela de Hugo Chávez, mantém relações amistosas e mutuamente vantajosas com o Irã, não faz coro com a demonização da Coréia do Norte. Enfim, os comunistas chineses são amigos dos inimigos declarados do império e, segundo a visão imperialista, cortejam o eixo do mal. Ademais, defendem o chamado multilateralismo e a solução pacífica dos conflitos internacionais, opondo-se ao unilateralismo e belicismo norte-americano.



 


Um tiro pela culatra?



 


Embora o poder econômico norte-americano ainda seja apreciável, embora declinante, as coisas não são tão simples quanto podem parecer à primeira vista para alguns americanos e é no mínimo duvidoso que os EUA venham a obter sucesso em sua empreitada contra a nova potência asiática. O tiro pode sair pela culatra. É preciso assinalar, em primeiro lugar, que o desenvolvimento desigual, compreendendo hoje o crescimento chinês e a decadência americana, lei inerente ao próprio desenvolvimento das nações sob o imperialismo, tem caráter objetivo e tende a ser indiferente à vontade política dos governos.


 



Isto não quer dizer que os chineses não seriam afetados por um eventual fechamento do mercado estadunidense ou mesmo que a ascensão da China, um processo ainda em curso, deva ser considerada irreversível. Por outro lado, existem fatores que limitam e inibem a ação e a estratégia imperialista neste sentido e é certo que a acentuação do protecionismo e o uso de outras formas de retaliação (econômica e política) não afetariam somente os interesses chineses, teriam repercussão mundial, em função da crescente importância da China no mercado único mundial, e efeitos negativos inclusive para a sociedade norte-americana.


 



Identidade e choque de interesses



 


A dialética das relações econômicas entre China e EUA é matizada por contradições, compreendendo identidade e choque de interesses; fatores que induzem à cooperação e também que estimulam conflitos; intercâmbio e concorrência. Não se pode ignorar, por exemplo, que a grande burguesia estadunidense pega carona no crescimento chinês ou que parte expressiva das exportações chinesas para os EUA é realizada por monopólios ianques, que também são óbvios beneficiários da prosperidade chinesa (embora não sejam os únicos nem os principais), acumulam e expandem seus capitais no processo de crescimento e não estariam a salvo dos prejuízos que o protecionismo pode provocar à China.


 



Isto constitui um bom motivo para contradições entre os imperialistas americanos, que não deve passar despercebido aos chineses. Sabe-se que empresários dos EUA com ativos e negócios na China já intercederam mais de uma vez junto ao governo Bush contra o protecionismo e em defesa de um relacionamento mais amigável e moderado com os chineses.


 



As exportações chinesas também ajudam a sustentar o consumismo exagerado da sociedade norte-americana, premiando os freqüentadores dos shoppings com preços baixos e contribuindo para amenizar as pressões inflacionárias (é curioso notar que, por uma das muitas ironias da história, no curso do desenvolvimento desigual o mesmo fator que determina a decadência dos EUA – o parasitismo refletido no consumo excessivo de importados – alimenta o crescimento das reservas da China – via superávit comercial – e fortalece sua expansão econômica no exterior).


 



Devedor versus credor



 


Um outro aspecto relevante, já notado por muitos economistas, é que os Estados Unidos se transformaram de país credor em devedor (líquido) e têm na China, hoje, um dos seus principais credores. O superávit chinês no comércio exterior e em conta corrente (que agrega, além do comércio, o valor dos investimentos estrangeiros na China) tem sido usado, em larga medida, na aquisição de títulos do Tesouro dos EUA, contribuindo para o financiamento dos chamados déficits gêmeos (público e em conta corrente) e evitando um declínio mais acentuado do dólar.


 



Segundo alguns observadores, se o governo chinês decidir fechar a torneira por onde vaza o dinheiro que ajuda a financiar o déficit americano, poderia surgir uma crise mais séria no balanço de pagamentos estadunidense, precipitando a recessão e uma queda mais pronunciada do dólar, o que obviamente não corresponde (ao menos por ora) aos interesses chinês. Seja exagero ou não, o fato é que a interdependência entre as economias da China e dos Estados Unidos é grande e não aconselha o radicalismo.


 



Todavia, em contradição com a tendência à convergência e conciliação de interesses atuam os fatores que instigam divergências e conflitos e estes, por sinal, parecem agora dominantes. Os setores da indústria prejudicados pela concorrência chinesa e a percepção (das classes dominantes) de que a ascensão da China é a principal ameaça à hegemonia dos Estados Unidos no presente e no futuro são dois fatores relevantes neste sentido. Não se deve duvidar que a administração Bush está trilhando o caminho do confronto e faz pouco caso da conciliação, em oposição aberta aos interesses dos dirigentes chineses. Os EUA não têm colhido bons frutos políticos com a arrogância imperial no Iraque, na Coréia do Norte ou na América Latina. Não será diferente se decidirem levar à frente uma guerra comercial contra a China.


 

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