Um pai cansado e o dia das mães

Sinto que devo uma explicação às três ou quatro pessoas que notaram que o meu último texto foi publicado no hoje longínquo dia 26 de fevereiro. Bem, para começar eu poderia falar dos trágicos acontecimentos que têm assolado o nosso país – por exemplo, a execução da vereadora do PSOL Marielle Franco e de Anderson Gomes – e de como eles têm feito muita coisa parecer pequena e sem importância, incluindo os meus rabiscos sobre paternidades.

De fato, a situação do Brasil tem frequentemente drenado as minhas energias, no entanto, o real motivo por trás do meu sumiço é outro. Descobri que cuidar de Francisco junto com a minha parceira, como fizemos durante pouco mais de seis meses era uma coisa, e cuidar dele após a volta dela ao trabalho era outra com-ple-ta-men-te diferente. Depois que ele passou a engatinhar e a se trepar em tudo, então, nem se fala…

Sendo bem direto, eu estou cansado (não confundir com desanimado) e grande parte do pouco tempo livre que tenho disponível tem sido zelosamente aplicado em dormidas ou cochiladas. Como venho aprendendo, estar em casa dia e noite e noite e dia, dia após dia com um bebê de nove meses é ao mesmo tempo instigante e tedioso, desafiador e simples, cansativo e… bem, a parte do cansaço é meio que uma constante.

Apesar disso, ao contrário do que pensa um amigo meu, o fato de eu ser um pai em tempo integral (ou um stay-at-home-dad, como os gringos dizem) não quer dizer que eu agora magicamente saiba como as mães se sentem.


Ilustração de Sneshana Soosh (@vskafandre)

Antes de qualquer coisa, para que eu soubesse, eu precisaria ter que lidar com as mesmas pressões insensatas com as quais elas lidam rotineiramente; teria que ser instado a responder às mesmas cobranças inexequíveis e ouvir os mesmos palpites não solicitados (de pessoas da família ou da desconhecida na fila do pão); e teria que dar conta de uma culpa inesgotável que não é meramente pessoal, mas sim, fruto de um projeto milenar de opressão e subjugação das mulheres que tem como um de seus principais pilares a imagem da mãe perfeita e beatífica.

Nestes últimos nove meses eu aprendi que o fato de trabalhar com o tema da equidade de gênero e da paternidade e cuidado há quase 20 anos – e me identificar como um homem feminista há no mínimo dez –, afeta pouco ou nada o nível de cobrança familiar e social que sofro. No fim, mesmo que eu me enxergue como um tanto diferente dos pais conservadores e machistas, sou agraciado com todos os privilégios por eles recebidos, o que inclui não ter que sofrer com nenhuma das coisas mencionadas acima.

Alem disso, para me aproximar da experiência de muitas mulheres, eu precisaria ter uma parceira ausente ou uma que dá aquela “ajudinha” tão comum entre alguns pais. Na verdade, a minha situação é a exata oposta, já que mesmo com um trabalho extremamente exigente, Carol ainda divide o cuidado de Francisco comigo.

Mesmo estando distante durante alguns momentos, o tempo que ela está em casa é pleno de presença, de afeto e de cuidado. Cuidado que na verdade continua quando ela está no trabalho e interrompe tudo para desmamar e assim garantir o precioso leite que alimentará o nosso pequeno no dia seguinte.

Uma companheira que no meio desse turbilhão e da dor de se ver longe do filho arruma tempo para se preocupar comigo e dizer que eu tenho que sair de casa e dar umas respiradas. Uma companheira que por vezes se culpa (olha ela de novo!) achando que eu estou sobrecarregado, quando na verdade ela é que de fato está. O que me faz lembrar de algo que todos(as) já ouviram sair da boca de um homem “Ela diz que está cansada mas passou o dia todo em casa com as crianças!”.

A nossa falta de empatia com as mulheres é realmente assombrosa e a nossa ignorância (proposital, diga-se de passagem) e falta de reconhecimento do trabalho de cuidado das crianças é um dos maiores sintomas disso.

Além desse imenso privilégio que é dividir a criação de Francisco com Carol, ainda contamos, três dias por semana, com o apoio de Bete, que consegue a proeza de organizar a casa lindamente – que cresce em bagunça junto com o nosso cansaço – enquanto pontualmente se diverte divertindo o nosso pequeno furacão.

E mesmo assim eu estou cansado. Cercado de privilégios – de poder cuidar diariamente de um bebê saudável e danado, de dividir essa tarefa com uma pessoa tão especial e de termos uma condição financeira estável num momento em que cada vez mais famílias não sabem como será o dia de amanhã – e ainda assim cansado.

Como já disse, isso não significa que eu agora consiga sentir o que as mães sentem, mas ter esta experiência de profundo contato e cuidado com o meu filho me faz ter a certeza, hoje maior do que nunca, de que o debate, as ações e as políticas públicas de equidade de gênero são não apenas urgentes, como também cruciais para qualquer país que se pretende democrático. Apesar de muitas pessoas ainda acharem erroneamente que gênero é sinônimo de mulher, o envolvimento de meninos e de homens nessas iniciativas é de imensa importância e o tema da paternidade tem se mostrado como uma das melhores estratégias para isso.

Sobre o cansaço eu ainda não sei ao certo o que fazer… Ter o primeiro filho aos 40 anos tem vários aspectos positivos, mas esse certamente não é um deles. Acho que é continuar tentando dormir ou cochilar sempre que possível e esperar que alguma hora o corpo se acostume. Sobre o fato de haver temas mais importantes a enfrentar no atual momento do Brasil, felizmente Winnicott (sempre ele!) veio ao meu socorro ao afirmar que:

“A saúde da pessoa crescida foi estabelecida no decorrer da infância, mas os alicerces da saúde do ser humano são lançados por você, nas primeiras semanas ou meses de vida do bebê. (…) Você está alicerçando as bases da saúde de uma pessoa que será um membro da nossa sociedade. É algo que vale a pena.”(1) 
 

Na verdade, Winnicott estava se referindo às mães, mas como o texto é de 1957 eu gosto de pensar que hoje ele teria se referido às mães e aos pais, mesmo sabendo que a gigantesca responsabilidade de “lançar os alicerces da saúde” de um novo ser humano e de encaminhá-lo para a vida em sociedade continua recaindo desproporcionalmente sobre os ombros das mulheres.

Por isso (e por muito mais), talvez o maior presente que você possa dar para a sua parceira ou ex-parceira neste dia das mães seja uma honesta e profunda reflexão sobre como você tem exercido a sua paternidade.

Sei que a princípio pode soar estranho para alguns, mas garanto a vocês que vivenciar a paternidade a partir de um olhar feminista é mais prazeroso, libertador e eficaz do que seguir a bolorenta, injusta e violenta fórmula do família patriarcal, magistralmente descrita por Paulo Prado como “Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”(2).

Quem sabe assim um caminho se abra para que mais pais se permitam ser radiantes; para que mais mulheres consigam ser despudoradamente livres e para que os nossos filhos e as nossas filhas possam expressar os seus medos sem culpa ou temor, e que menos deles tenham origem em nossos comportamentos.

Dedico este texto à minha parceira de vida Carol; à minha mãe Susana; às minhas avós Delza e Jacy (in memorian); à minha irmã Manuela; à minha sogra Paula; a Bete; a Dete, Maricélia e Marlene, que tiveram grande papel na minha criação; e a Marielle Franco (in memorian) e Dona Marisa Letícia Lula da Silva (in memorian).

(1) D.W. Winnicott. A criança e o seu mundo. 1957.
(2) Paulo Prado. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 1981.


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