Um Herói do nosso tempo

Duro Aprendizado


A saga de menino etíope que, para escapar à tragédia de seu povo durante a guerra civil, emigra para Israel, onde é vítima de racismo, é contada no filme do d

Existe um momento na arte em que a forma de narrar uma velha história conta mais do que o forte conteúdo que se tem a dispor. Ela pode vir na forma de melodrama ou de saga, em que o encadeado assume proporções inusitadas. E não se quer dizer que a forma se sobreponha ao conteúdo, pelo contrário, é a interação entre ambos que tornará a arte digna desse nome. Em “Um Herói do nosso tempo”, filme do diretor romeno-israelense Radu Milhaileanu, é este amálgama que o faz  uma obra-prima, dessas para se assistir várias vezes tal a contundência com que narra sua história. Nesta uma cristã-etíope para salvar o filho Schlomo/Salomão, de nove anos, envia-o para Israel, junto com um grupo de falashas, judeus etíopes, com a recomendação de que só deveria regressar depois de ter vencido as adversidades que se lhe surgiriam na vida.
         
É por este fiapo de história, não sem forte apelo dramático, que Milhaileanu desvenda a sociedade israelense, mundo fechado para os ocidentais, tal a avalanche de imagens do conflito palestino-israelense a que estão acostumados. Uma sociedade complexa em sua estrutura milenar, sustentada por pilares que se confundem com as origens de vários povos e religiões. Nesta sociedade convivem judeus dos mais variados países, do Leste Europeu à Rússia européia, das Américas à África. Tal é quantidade de procedências que as únicas formas de identificá-los é levantando os nomes dos país, dos irmãos e dos avós, e vendo se conhecem a cultura judaica através de trechos da Tora, a Bíblia israelense.
             
Difícil segurar as lágrimas
           
Quando Schlomo desembarca em Jerusalém, vindo do Sudão, para onde sua família  e cerca de oito mil falashas tinham fugido para escapar à guerra civil etíope, em 1984, é nesta babel de judeus, vindos das mais variadas partes do mundo, que terá de se adaptar. Milhaileanu tece suas narrativas em vários tons, compondo pontos e contrapontos melódicos, dramáticos e líricos, que envolvem o espectador de tal forma que é difícil respirar ou conter as lágrimas. Mistura vários gêneros narrativos, indo da saga de Schlomo para reencontrar a mãe, ao melodrama, ao unir a paixão de Sarah, judia branca, por ele, agora falasha. A eles, Milhaileanu e seu co-roteirista Alain-Michel Blanc, adicionam a denúncia do racismo sofrido pelos falashas, não só pela desconfiança de que seriam refugiados etíopes que se passam por judeus e também por serem pura e simplesmente judeus de pele escura.
           
Schlomo descobre-se estrangeiro, rejeitado pelo novo país, abandonado pela mãe e perseguido por seus novos co-cidadãos. A maneira que encontra para reagir a esta rejeição é o silêncio, a não aceitação dos alimentos que lhes são servidos e a agressividade, não raramente transformada em violência. Nenhuma aceitação há por parte daqueles que deveriam aceitá-lo como um dos seus, perseguido que foi não como judeu pelo nazismo, mas como vítima do conflito entre EUA/União Soviética durante a Guerra Fria. Contra ele existem seu “status” de refugiado e sua condição de negro. Seu único aliado é o casal Yoram e Yael que o adotou e o cria como filho, numa família onde já existem outras duas crianças.
           
Não conta nem sua suposta origem falasha, de que seria descendente do Rei Salomão e da Rainha de Sabá. Tampouco que para chegar a Israel teve que caminhar 600 quilômetros  da zona de guerra civil etíope, sob o sol escaldante do deserto, até o Sudão. Dessa caminhada, que começou com oito mil falashas, apenas quatro mil sobreviveram. E mesmo assim devido à Operação Moisés, montada realmente pelos EUA e Israel, para fazê-los retornar a Jerusalém, terra à qual sempre sonharam regressar.
          
Scholomo é odiado por ser negro
        
Schlomo nada sabe dessas questões históricas. É apenas um sobrevivente, um cristão que se trai na primeira aula em que deveria revelar seus conhecimentos da Torá. Dividido, sem entender o que se passa à sua volta, o pequeno Schlomo é o retrato do deserdado moderno: culpam-no por algo que desconhece, odeiam-no por ter pele escura e não o aceitam por professar uma cultura que tentam sufocar. Sua única saída, embora tenha o carinho e o apoio dos pais adotivos, é voltar-se para a mãe que, na tentativa de fazê-lo sobreviver, o enredou numa teia, que ele não sabe como deslindar.
         
Milhaileanu, ao abordar estas questões, o faz não pelo choque entre duas culturas, mas pela resistência que uma cultura pode representar ao se transformar numa identidade,verdadeira marca que uma vez matizada não mais se desmancha. Ela é que faz Schlomo resistir, mesmo que apreenda preceitos judaicos. A culpa que, pelo fato acontecido a seu irmão e a lembrança de sua mãe, deveria fragilizá-lo termina por fortalecê-lo.
         
Talvez Milhaileanu e Michel Blanc pensassem na cultura como forma de resistência. É ela que impede que o etíope Schlomo sucumba. Não é o multiculturalismo que permite sua sobrevivência, mas a originalidade de sua cultura de deserdado, também milenar, que o torna um resistente. Em cada etapa de sua vida, ele pensa em suas raízes de forma diferente. A culpa vai se transformando em algo menos doloroso, numa maneira de entender quem ele é. As imagens da televisão, mostrando a persistência da situação precária de vida, desumana,de seu povo, o faz estruturar-se para retirá-lo daquela situação. Aqui Milhaileanu e Michel Blanc usam a estrutura mítica do mentor (1), o guia espiritual dos falashas, Ues, como elo entre ele e sua mãe, entre sua nova terra e a busca de uma nova identidade. De forma sutil, numa saga onde sobressaem guardiães ( o rabino, pai de Sarah, apaixonada por Schlomo) e outros mentores, eles, Milhaileanu e Michel Blanc, se permitem usar estruturas típicas de filmes de aventuras. Se bem analisado, está tudo ali, sem meios tons. São os mentores (Yael, o avô, Ues, o delegado) e o guardião (o pai de Sarah) que mostram o enorme fosso existente entre ele, Schlomo, negro, e a estrutura sócio-racial israelense.
           
            
Judeus de outras nações também são discriminados
            
Schlomo é também o herói que sobrevive a várias tentativas de retirá-lo de seu caminho. Numa delas, depois de rejeitado pelo pai de Sarah, ele entra numa delegacia para entregar-se. Seu segredo, no seu entender, deveria ser revelado para pôr fim a seu sofrimento. Desmancha-se diante do delegado judeu-polonês que o demove daquele intento, contando-lhe que também passara por problemas semelhantes de rejeição. Ele então ganha impulso, ajudado pelo avô, pai de Yael, sua mãe adotiva. Termina no kibutz, fazenda agrícola do tempo em que Israel se pretendia uma sociedade socialista, a partir da coletivização da terra e da exploração do espaço e da repartição da produção, como forma de educar os israelenses na formação de seu Estado. Dali ele sai transformado, igual aos heróis que passam por testes e desventuras. Enquanto eles, os heróis comuns, vão atrás de seus algozes, Scholomo decide sair em busca de suas raízes, num patamar superior.
           
Aqui a forma usada por Milhaileanu e Michel Blanc inverte realmente o papel de herói. Schlomo não faz justiça com as próprias mãos, não pune seus algozes simplesmente como nos filmes policiais e de aventuras. Os vilões, por demais visíveis, não mais lhe interessam. Mira ao longe, lá onde estão seu povo e sua mãe, que espera um dia encontrar. Precisa não lutar contra os vilões, mas salvar seu povo, lhe ser útil de alguma forma. Para isto usa o que está a seu alcance. Consegue formar-se em Medicina na França, devido ao status classe média de sua família adotiva. Uma família que se define de esquerda e se opõe à política de ocupação dos territórios palestinos pelo governo israelense. Schlomo, tomado pelo seu duplo dilema, a princípio adota uma posição conservadora, mas logo a substitui por outra, em que pesa a busca de suas raízes e a influência da família adotiva.
            
Tragédia dos povos oprimidos não cessa sob neoliberalismo
           
Suas ações não são do herói apenas, mas de alguém que tem uma missão. Socorre o garoto palestino baleado pelas tropas israelenses e quase é sacrificado por isto. Assiste, pela TV, o circulo vicioso que vive seu povo, ainda nos campos de refugiados, e sai à procura da mãe – aqui com o duplo sentido de retorno a terra e à proteção materna. A TV tem em “Um Herói do nosso tempo” um papel diferente – o de catalisadora, de olhos bem abertos para atrair a atenção do telespectador para as injustiças mundanas. Ela é que, pela constância, não o deixa esquecer quem é e o que lá continua a ocorrer. A tragédia dos povos oprimidos nestes tempos de globalização e neoliberalismo é constante, ela não cessa, dada à voracidade dos países imperialistas, EUA à frente, em saqueá-los até nada mais existir, tão só o deserto, mesmo que custe o sacrifício de milhares de vidas humanas, fauna e flora.
          
Em meio ao turbilhão em que vive o herói, ou se optarem, o anti-herói, Schlomo, há o que acentua não só a saga, mas também o melodrama (drama e música); o amor de Sarah por ele ao longo de dez anos. A música e o humor pontuam este traço. Sarah não o vê negro, mas tão só o adolescente, depois o homem. Sacrifica-se por ele e o ganha. Ambos são frágeis diante da brutalidade do racismo que se abate sobre eles, pois ela, ao amá-lo, também se torna vítima da discriminação do pai, que prega os ensinamentos da Torá, não a convivência entre dois jovens, que mesmo sendo judeus têm a coloração da pele diferente. Mas, nesta etapa da narrativa, Schlomo já expandiu sua visão, está para além da simples disputa pela afirmação de sua negritude. Quer unir amor e missão, para usar o termo do mitólogo Joseph Campell, em “O Herói de Mil Faces”, obra que deve ter sido assimilada por Milhaileanu e Michel Blanc e revertida em outra forma e significado.

          

Retorno a seu país o põe em paz com sua consciência

         
O fato de ser negro agora é apenas um dado. Já não importa que lhe digam o que já sabe. Venceu todas as etapas de afirmação e de consciência, assimilou uma cultura, através da religião, que é agora parte dele. Assim, está livre para cumprir a etapa final de sua missão. Mas não deixou em momento algum escapar sua real cultura, sua verdadeira identidade. Por isto optou pelo retorno ao útero materno, no duplo sentido, repito, de país, e de reencontro com a mãe. A cena em que ele, descendo de uma caminhonete em pleno deserto, ajoelha-se e reverencia seu país é mais uma reabsorção de seu eu, do que uma obediência a seu novo credo: o judaísmo. Neste momento, a religião perde o sentido, entra a opção pela assistência a seu povo e a redenção, que muitos viram como algo que enfraquece o final de “Um Herói do nosso tempo”.
           
Pelo contrário, Milhaileanu e Michel Blanc mantiveram as convenções do herói, mesmo que anti-herói, ou que se queira chamar. E, ao conservá-las, reforçou sua opção por seu povo e o reencontro consigo mesmo. Além disso, preserva sua identidade cultural, sendo a nova cultura uma assimilação para enriquecer o seu novo papel, não uma camisa de força, que o faria rejeitar seu eu. A forma, deste modo, serve ao conteúdo, num filme cujos 140 minutos não se percebe, pois suas várias camadas nos convidam a refletir sobre as nuances do racismo, a tragédia dos refugiados, a necessidade de se encontrar novas formas de resistência num mundo supostamente multifacetado, mas que, pela confusão que causa, parece não ter saída alguma.
         
Pela visão de Milhaileanu e Michel Blanc, ela não está na permanência de Schlomo no Primeiro Mundo, mas nas próprias regiões do planeta onde as tragédias se sucedem. Schlomo usa o aprendizado que teve em Israel para contribuir senão para solucionar os problemas que o afligem, mas pelo menos aplacar sua angústia e a necessidade de ajudar seu povo.

Referência: (1)Vogler, Christopher, A Jornada do Escritor, Estruturas Míticas para Contadores de Histórias e Roteiristas, Ampersand Editora, 1997, pág. 81
(2) idem, obra cit.
Um Herói do Nosso Tempo (Vas, Vis et Deviens). França/Israel, 2004. 140 minutos. 10 anos. Direção. Radu Milhaileanu. Elenco: Moshe Agazai, Yael Abecassis, Roschy Zem, Moshe Abebe.
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