Sra Henderson Apresenta

História de uma resistência
Diretor inglês Stephen Frears conta em seu filme a história do teatro Windmill, que resistiu às bombas da força aérea de Hitler, na II Guerra Mundial, e o puritanismo do governo conservador britânico

Arte e mecenato sempre caminharam juntos no mundo das artes. De um lado fica o/a ricaço/a interessado/a em patrocinar a produção artística e de outro o artista voltado para a criação. Quando ambos se unem  costuma sair algo de produtivo. Pelo menos era assim até que o capital pura e simplesmente penetrou na área cultural e transformou a criação artística em produto. Em “Srª Henderson Apresenta”, do inglês Stephen Frears, ainda prevalecem as relações entre a burguesia, o artista e sua arte. E no melhor dos mundos, o artista por várias artimanhas consegue ser patrocinado sem interferência do/a mecenas. Parece simples, mas Frears nos mostra o quanto ele, o artista, tem de usar de sua criatividade, manipulações e, muitas vezes, rispidez para que sua criação saia de acordo com o pretendido.
          
Em “Srª Henderson Apresenta”, tudo pode ser resumido numa simples frase: burguesa perde o marido que se enriqueceu na Índia, quando esta era colônia inglesa, e entediada com a viuvez decide comprar um teatro abandonado. Seria puro capricho, caso não contratasse para administrá-lo e, também dirigir as peças que nele seriam apresentadas, um competente administrador teatral anglo-holandês. Só que a burguesa Laura Henderson (Judi Dench), que iniciara o negócio como “passa tempo”,  não poderia imaginar que seu investimento acabaria por gerar outro tipo de manifestação.Sua diversão acaba se tornando um ponto de resistência ao puritanismo do governo britânico e baluarte contra os alemães  durante a II Guerra Mundial. Mas também lucro garantido, pois seu administrador/diretor, Vivien van Damm (Bob Hoskins), termina por produzir espetáculos que se tornam uma mina de ouro.
            
Frears usa a história real do Teatro Windmill, no West End londrino, para recuperar o vaudeville (espetáculo com música, comédia e dança), com toda a suavidade, encanto e sonho que esse gênero popular pode render. E sem perder a corrosividade normalmente presente em seus filmes (“Ligações Perigosas”, “Os Imorais”). “Srª. Henderson Apresenta” tem a leveza dos antigos musicais, com boas canções e belas coreografias da dupla Eleonor Fazan e Debbie Astell. De repente, têm-se a sensação de que haverá sapateado, passos sincronizados, mas Frears foge aos clichês dos musicais americanos. A criatividade de seu filme está não só nos números musicais, mas na forma que encontrou para introduzir nos esquetes os nus femininos. Eles completam o quadro, como molduras, que ilustram o número musical.
             
Mas, como nas análises de Marx, em “O Capital”, o Windmill da Srª Henderson, ao regressar ao vaudeville, escapa ao lugar comum do teatro de variedades londrino, em 1937. Obtém grande sucesso e enorme lucro, mas logo é imitado pelos concorrentes, e o que era seu diferencial vira um pesadelo, pois o empreendimento passa a dar prejuízo. Com isto, a Srª Henderson, que passara a gostar não só do passatempo engenhoso, mas também dos lucros, procura outro diferencial para manter seu rendimento. 
                
Os tempos, embora pós-vitorianos, não permitiam grandes vôos estéticos e temáticos, e ela queria divertir a alta classe londrina, mas de forma “inovadora”. E encontra um meio de manter o seu público. Para isto precisa da autorização de ninguém menos do que o primeiro-ministro inglês, Chanberlain (Christopher Guest). A forma com que o aborda e a seqüência do almoço que ela lhe oferece são hilariantes. Parecem saídas das páginas de Henry Miller, em tarde de lorde. Chamberlain, à medida que prova os mais variados pratos e bebidas que ela lhe oferece, vai aceitando suas idéias, com uma e outra modificação. 
               
Ao término da conversa, ela consegue convencê-lo de sua idéia, e o “puritanismo de estátua nua” é introduzido no teatro inglês. O nu mostrado no palco, segundo Chamberlain, não deveria chocar, mas ser apenas um adorno a mais do espetáculo. Mas o simples fato de o nu feminino ser emoldurado já demonstra o quanto se precisaria avançar para se chegar à total liberdade de criação. Ironicamente, as mulheres vistas no palco são elevadas ao status de deusas, seres inacessíveis, pois despossuídas inclusive dos movimentos que as humanizariam. Assim, o que era para não chocar, acaba por denunciar a hipocrisia da alta classe inglesa, que nos bastidores zombava de tudo aquilo.
                
Frears enfatiza este fato com o choque entre duas personalidades fortes: Laura e van Damm, interpretados pelos sempre ótimos, Judi Dench (“Elizabeth”) e Bob Hoskins( “Mona Lisa”, de Neil Jordan, e “Doce Amanhã”, de Eton Egoyan). Eles se digladiam durante todo o filme; cheios de armadilhas, frases cortantes, se atraindo e se distanciando, para deleite do público. São duas pessoas que sabem que dependem uma da outra para fazer o negócio fluir, mas, por teimosia, traem seus próprios sentimentos.
              
Em meio ao riso provocado pelos choques entre Laura Henderson e van Damm e canções inspiradas, Frears pontua o filme com uma nota de realismo, ao seu estilo. Com notas ásperas, de desencanto, narra o romance da bela Maureen (Kelly Reilly) com o jovem soldado que está prestes a partir para o front. Justo ela que se expunha no palco, mas que levava vida recatada, termina por se enredar num caso, que a leva a um impasse. Mesmo assim, o espectador sente-se envolvido, tomado pela necessidade de paixão entre os dois jovens. 
               
Num final, apoteótico, em meio às bombas hitleristas, a Srª Henderson se revela e, ao fazê-lo, tenta se redimir de algo que provocara com as melhores das intenções, mas que termina de forma trágica. Frears, como se a retomar a leveza do filme, repõe logo a história em seu lugar, retomando a narrativa original da sobrevivência do Teatro Windmill.
              
O Windmill, legendário teatro londrino, mesmo sob bombas dos aviões de Hitler, manteve o espetáculo em cena. Foi uma forma de resistência não só da arte diante da barbárie, mas também ao puritanismo inglês, ainda que seu espetáculo servisse mais a alta classe.George Fenton, autor da trilha sonora, criou canções para o filme, que lembram muito a época de ouro dos musicais americanos, porém o romantismo que delas emana reflete mais um tempo que passou, de que algo que ainda possa ser imitado. 
              
Foi outra época, um tanto ingênua à luz do racionalismo-consumista de hoje. O idealismo da Srª Henderson, que lhe trouxe glória e serviu para os artistas ingleses resistirem à Hitler, foi soterrado pela aliança canina de Tony Blair com o brucutu George Bush. É trágico!


               
Srª Henderson Apresenta (Mrs. Henderson Presents), Inglaterra, 2005, 108 minutos, 14 anos. Direção: Stephen Frears. Elenco: Judi Dench, Bob Hoskins, Will Young, Kelly Reilly.

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