Sobre camarões, status, ossos e pés de galinha

No Brasil a desigualdade social absurda não é apenas um fato social e muito menos um fato condenado genuinamente por todos, mas faz parte sim de um projeto de sociedade que expressa modos de vida de classes e estratos de classe privilegiados, que medem sua riqueza e sua felicidade não pelo que tem ou são, mas pelo que o outro não tem e não é.

Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Causou revolta no clã Bolsonaro o fato de pessoas sem teto comerem camarão num evento em que o ator e diretor Wagner Moura estava presente, por ocasião da exibição de seu filme, Marighella, aos membros de uma ocupação em São Paulo.

Segundo um deputado Eduardo Bolsonaro indignado em suas redes sociais, tratava-se ali de um movimento sem-teto “nutela”, e não “de raiz”. A refeição servida no referido evento foi “acarajé no prato”, iguaria de origem baiana que leva camarão e que foi doada por uma empresa amiga do movimento. Mas isso é mero detalhe.

O camarão (em tamanho médio) custa uns R$ 25,00 o quilo numa peixaria de colônia de pescadores aqui pras bandas do Recife. O pé de galinha está custando R$ 9,00 o quilo nos supermercados populares. O osso de primeira em torno de R$ 17,00 o quilo. A carne de segunda está mais cara do que o camarão médio. Não se trata aqui, portanto, de análise de preços, de custos de produção da refeição, mas sim de status, do lugar que supostamente caberia a cada grupo social neste sistema de estratificação. Não se trata do valor de troca ou equivalência do camarão com outras opções, mas sim de uma espécie de valor e permissão de uso de determinados produtos, bens e serviços pelos grupos sociais.

Esta régua elitista e higienista coloca o camarão como simbólico na sua escala de ostentação, assim como também é parâmetro o uso de itens como viajar de avião, viajar pra Disney, frequentar determinados lugares, ocupar determinados espaços de poder, ingressar em universidades e sobretudo em cursos “de elite”, como medicina por exemplo. Quem não se lembra da revolta dos médicos contra a chegada de profissionais cubanos para ocupar este nicho? Quem não se lembra do ministro Paulo Guedes revelando sua perplexidade com empregadas domésticas indo pra Disney? O pacote ideológico é o mesmo.

A refeição dos sem-teto de verdade, dos “sem-teto raiz”, como classificou Eduardo Bolsonaro e os seus seguidores, deveria, na visão deles, ostentar ossos e pés de galinha, ou mesmo um guisadinho de carne de segunda, mais cara que o camarão, porém “adequada” ao status dos sem-teto. Ou talvez ainda um bom pão com mortadela, que já simbolizaria o lugar clássico desses pobres no nosso “belo quadro social”, como já reclamava nosso Raul Seixas.

O núcleo duro do pensamento externado por Eduardo Bolsonaro neste episódio revela não uma posição tosca, burra e isolada dos aloprados do bolsonarismo, mas uma posição ideológica e uma visão de mundo de parcela significativa da sociedade brasileira. Estou convencido de que o forte sentimento antipetista e antiesquerda na política brasileira, o golpe contra Dilma, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro, lastrearam-se fortemente nesta visão de mundo, de preservação de uma forte desigualdade social e consequente manutenção do status de uma classe média mais abastada e absolutamente miserável de espírito.

A ascensão da pobreza a um outro patamar de consumo incomodou e incomoda esta gente. Na “cobertura” deste edifício social, como aceitar um operário na Presidência, enchendo os corredores do poder de “gente de baixo”? Como aceitar no poder alguém que acha que os pobres podem comer picanha e verbaliza isso aos quatro ventos, como parte de suas propostas? Logo a picanha?!

Isso nos indica e nos faz refletir que no Brasil a desigualdade social absurda não é apenas um fato social e muito menos um fato condenado genuinamente por todos, mas faz parte sim de um projeto de sociedade que expressa modos de vida de classes e estratos de classe privilegiados, que medem sua riqueza e sua felicidade não pelo que tem ou são, mas pelo que o outro não tem e não é.

A questão é séria, séria demais, mas juro que me dá uma vontade danada de fazer uma campanha, uma vaquinha, pra comprar caviar e oferecer pra uns sem teto num evento especial. E filmar, e fotografar as pessoas comendo este super símbolo do privilégio, só pra ver os miseráveis de espírito morrendo de raiva e de inveja.

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