Saddam Hussein, novo mártir dos árabes

Na primeira semana de janeiro – e não havia como ser diferente – iniciei nossa coluna semanal comentando o fato de maior importância política do Oriente Médio hoje na atualidade: o assassinato político de Saddam Hussein. Executado às 5h da manhã do dia

Comentamos as repercussões políticos mais imediatas. Ocorre, porém, que muitas coisas mudaram dessa data até hoje. Análises a que pude ter acesso mostram o que já apontávamos: Saddam morreu como um mártir, um herói para os sunitas e os árabes em geral (1).


 


Um mártir e os erros americanos


 


A morte de Saddam, praticamente encerra um ciclo no Oriente Médio. Ele era um dos últimos líderes árabes, nacionalistas e patriotas, surgidos entre as décadas de 1950 e 1960. Faria este ano 70 anos (nasceu na década de 1930). Encerra o ciclo de líderes, mas não quer dizer que as idéias que ele expressava tenham encerrado o seu vigor e deixado de ter defensores. Muito ao contrário. Pode-se sentir, ver, presenciar, atestar, observar, com indicadores em várias partes do mundo e da América latina, mudanças de ares nos rumos da economia e da política. Agora mesmo, quando escrevo esta coluna semanal, o presidente Chávez da Venezuela, anuncia “um novo socialismo, do século XXI”.


 


Saddam era herdeiro de idéias e propostas defendidas pelo grande líder dos árabes, Gamal Abdel Nasser, que governou o Egito entre 1956 a 1970, quando faleceu. Criou uma espécie de pan-arabismo, um nacionalismo árabe especial, que, inclusive, flertava com o socialismo soviético e tinha apoio da antiga URSS. Esse movimento foi muito forte na Síria e no próprio Egito, além do Iraque e do Líbano. Hoje refluiu muito, mas no Iraque de Saddam era muito forte. É claro que não se governa um país por tanto tempo como Saddam – foram 24 anos – sem criar arestas internas e externas. A sua gestão contrariou interesses poderosos, especialmente os americanos.


 


Saddam aderiu, ainda jovem, ao Partido Baath, cujo nome completo é Partido Socialista da Renovação Árabe. A fundação dessa organização, que surgiu na Síria em 1947, a partir das idéias de Michel Aflack. Quando estive em diversos cursos e contatos com embaixadas árabes no Brasil, indagava sobre que socialismo seria esse e a resposta vinha sempre assim: “é o nosso socialismo, o caminho dos árabes para o socialismo”. Talvez uma experiência nova, que hoje Chávez vem tentando, com peculiaridades latinas.


 


Apesar dos problemas e dos erros cometidos, Saddam simbolizava o que ainda havia restado no OM do nacionalismo árabe das décadas de 1950 a 1960. A mídia grande pouco noticiava dos feitos positivos de sua gestão. Entre esses, o que mais se escondeu no ocidente, foi a nacionalização do petróleo. Mais exatamente em 1968, já como vice-presidente, Saddam deu os primeiros passos nesse sentido, retirando das trans-nacionais do petróleo a exploração no país, e criando uma estatal, nos moldes da nossa Petrobrás, para cuidar da prospecção, extração, refino e distribuição do “ouro negro”.


 


Saddam promoveu ainda uma ampla integração dos curdos, que vivem ao norte, à sociedade iraquiana. Dos quatro países onde se espalham, foi no Iraque que esse povo teve a sua dignidade mais respeitada, estudando em escolas bilíngües, com ampla autonomia regional e um parlamento próprio. Os escritórios do governo central funcionavam com duas bandeiras.


 


Mas, o grande legado de Saddam, especialmente após o fim da guerra com o Irã em 1988, foi a defesa da nação árabe, de sua independência e autonomia. Falava em libertação da palestina das mãos dos sionistas; defendia a substituição dos governos títeres de Washington que proliferam na região do Golfo, as chamadas petro-monarquias; sempre apoiou a criação do Estado palestino; defendeu a união dos povos árabes contra o imperialismo norte-americano.


 


A mídia americana conviveu com o dilema de mostrar ou não vídeos que circularam pela internet com a gravação dos últimos minutos do enforcamento, feitas provavelmente por celulares de guardas que acompanharam a execução. Preferiu omitir essas imagens. Nada se falou da “pena de morte”, mesmo que ela seja adotada nos EUA na maioria dos estados. Era como se vivesse uma “metáfora” terrível, no dizer do professor Alexandre Keyssar, pois o resultado de um falso julgamento haveria de levar o Iraque a um caos ainda maior.


 


Também se soube posteriormente que Saddam deu instruções claras a seus advogados no sentido de que, em hipótese alguma, entrassem com pedidos de clemência, direito que ele teria segundo leis iraquianas. No dia 28 de dezembro Saddam chamou à sua cela, ainda sob cuidados dos americanos, dois dos seus advogados para passar-lhes as suas últimas instruções.


 


Saddam já virou mártir. Morreu nas mãos dos novos cruzados. Quero compartilhar com nossos leitores, quais as minhas impressões do porquê isso ocorreu:


 


> Saddam enfrentou com firmeza os seus algozes. Recusou o capuz para cobrir o rosto, comum nos enforcamentos e olhou nos olhos de seus carrascos, que, o tempo todo lhe ofendiam e dirigiam-lhe palavras de humilhação, coisa nunca vista em execuções em qualquer parte do mundo que ainda adote a pena capital;


 


> Saddam morreu com um alcorão em suas mãos. Rezou uma surata do livro sagrado dos muçulmanos. Imagens mostram que seus algozes sequer deixaram que ele concluísse a oração. Suas últimas palavras foram: ''Sem mim, o Iraque é nada”. Talvez sejam proféticas. A história mostrará isso mais dia menos dia;


 


> A execução de Saddam – isso vai ficando cada vez mais claro – foi um acerto de contas, uma vingança dos vencedores da guerra, uma vendetta, como se diz em italiano. Xiitas e curdos, discriminados durante o governo de Saddam, aliaram-se aos americanos ocupantes para derrotar os sunitas. Xiitas, liderados pelo premiê Maliki, não souberam sequer disfarçar seu regozijo com a execução, desmascarando totalmente a farsa do “julgamento” e o completo despreparo do governo para conduzir o Iraque a novos tempos;


 


> Saddam proclamou quatro dias antes de sua execução, que a força dos iraquianos era a unidade do povo do Iraque contra os inimigos e a sua própria civilização de mais de três mil anos;


 


> Saddam saudou do patíbulo não só a Palestina Livre e Árabe, mas disse com ênfase: “Vida longa à Jihad! Vida longa aos mujadeddins (guerrilheiros islâmicos)!”;


 


> A humilhação do presidente assassinado não ocorreu apenas nos dois minutos em que esteve frente à frente de seus carrascos. Segundo várias testemunhas, quando os americanos o entregaram aos iraquianos, em frente à cela em que passou a madrugada, entre uma hora e cinco da manhã, ele foi humilhado. Guardas passavam em frente à sua cela e mostravam-lhe cordas de sua forca, dizendo “está te esperando”, dançavam em sua frente e contavam piadas;


 


> O sentimento da maioria das pessoas, árabes ou não, religiosos tanto xiitas como sunitas, que gostavam ou não de Saddam, passou a ser de que ele agora era um mártir, uma vítima, um herói dos árabes. Foi como se todos os seus erros passados tivessem sido esquecidos de uma hora para outra. Foi como se algum ódio que algumas pessoas sentiam por ele tivesse instantaneamente se transformado em solidariedade;


 


> Saddam, com sua atitude altiva e firme no patíbulo, acabou ajudando os árabes a retomarem seu orgulho ferido e abalado por anos de humilhação pelo ocidente cristão e capitalista. A imagem de três anos antes, em dezembro de 2003, quando foi aprisionado em sua cidade natal, Tikrit, num buraco, barbudo e há dias sem banhar-se, ao Saddam que foi visto na forca, ocorreu uma mudança profunda na mentalidade das pessoas. Ai reside o erro central da decisão de enforcá-lo. Mas, essa decisão estava tomado por Bush desde então e nada o demoveria disso;


 


> Saddam passou a imagem, sempre, de um presidente forte e morreu da mesma forma, como um homem forte, destemido, herói para os árabes;


 


Poemas inundaram celulares no OM, conclamando coisas do gênero: “prepare a arma que vingará Saddam”. Muitos falavam de balas que irão trespassar o premiê iraquiano Nouri el Maliki. A sede de vingança é imensa hoje no mundo árabe e o ódio sectário poderá aumentar imensamente com isso, pois xiitas podem ser maioria no Iraque e no Irã, mas são minorias em todos os outros países árabes.


 


Seguem os impasses


 


No momento que esta coluna vai ao ar na Internet, quinta-feira, os jornais devem ter publicado o novo anúncio dos planos de Bush para o Iraque. Deve aumentar em pelo menos 20 mil homens que irão somar-se aos outros 140 mil soldados que se encontram estacionados para a ocupação do Iraque. Seguirá não aceitando sequer uma recomendação do relatório Baker-Hamilton que lhe foi entregue em dezembro, especialmente a de negociar e pedir apoio dos países vizinhos para a reconstrução do Iraque. Sejam elas a Arábia Saudita, sunita, ou o Irã xiita. Não haverá saída em curto prazo.


 


Paralelo a isso, se não bastasse a crise generalizada, a desmobilização do exército nacional iraquiano, a derrubada e perseguição de uma elite que governava o Iraque há décadas, vem agora a notícia amplamente divulgada, que uma lei polêmica será enviada ao parlamento de maioria curda e xiita, autorizando que empresas estrangeiras controlem, explorem, refinem e exportem o petróleo iraquiano, quebrando completamente o monopólio não só estatal, mas árabe. Hoje, bem ou mal, toda a receita do petróleo vai para as mãos dos árabes, em todos os países do OM. No Iraque foi essa a riqueza que fez com que o país sobrevivesse 12 anos seguidos de bloqueio odioso determinado pela ONU em fevereiro de 1991.


 


Bush seguirá sendo o mesmo Bush que desprezou a ONU, na busca de uma autorização para os ataques em março de 2003. A mesma ONU que em 1990 havia dado essa autorização, agora provavelmente a recusaria. Assim, a opção pela unilateralidade do governo americano, por exclusivismo e pelo isolamento da comunidade de nações. Com essa postura, não haverá paz mesmo no Iraque. Não se trata de discutir se o país vive ou não uma guerra civil, mas como ela poderá ser minimizada ou se vai se intensificar. Minha modesta opinião: o conflito vai se acirrar cada vez mais e o governo dos xiitas Maliki e sua “turma” vai viver dias cada vez mais difíceis, assim como os soldados americanos por lá estacionados.


 


 


(1) As fontes que consulto esta semana para a coluna são: 1. “Quem precisa de um mártir?”, de autoria de Vaguinaldo Marinheiro, da Folha do dia 6 de janeiro de 2007, página A2; 2. “Saddam não quis clemência”, de Hala Jaber, do The Sunday Times, republicado no Estadão do dia 8 de janeiro de 2007, página A10; 3. “Metáfora terrível para os EUA”, de Alexandre Keyssar, na Folha do dia 7 de janeiro de 2007, página A13; 4. “Revolta árabe com execução transforma Saddam em mártir”, de Hassan Fatah, no Vermelho de 6 de janeiro de 2007; 5. “De tirano à mártir”, de Antônio Luiz M. C. Costa, na Carta Capital de 10 de janeiro de 2007, página 42; 6. “Saddam esta morto. E o Iraque?”, de Beatriz Velloso, em Época de 8 de janeiro de 2007, página 52; 7. “Nome de Saddam será bandeira da vitória da nação iraquiana”, de Carlos Lopes, no Hora do Povo de 5 de janeiro de 2007, páginas 5-7; 8. “A vingança dos vencedores”, de Fareed Zakaria, editor internacional da Newsweek, publicado em Época de 8 de janeiro de 2007, página 55; 9. “Lei pode abrir setor petrolífero a estrangeiros”, de Danny Fortson, Andrew Murray-Watson e Tim Webb, na Folha de 8 de janeiro de 2007, página A7; 10. “EUA precisam recorrer à diplomacia”, de Wesley Clark, no Estadão de 10 de janeiro de 2007, página A13.

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