“Quem Você Pensa Que Sou”: De fake e de real paixão

Em tempos de fakes news, cineasta francês Safy Nebbou monta uma história de paixão real ameaçada pelos costumes e a moral conservadora

Ao aproveitar estes sombrios tempos de fakes news, usadas para desconstruir reputações e demolir governos populares, cineasta francês Safy Nebbou (27/04/1968) discute o quanto a diferença de idade reflete a permanência dos costumes e da moral conservadora neste século XXI.

Em “Quem Você Pensa Que Sou”, tendo como tema central a relação da cinquentona professora de Literatura, Claire Millaud (Juliette Binoche), com o jovem fotógrafo Alex Chelly (François Civil) de 24 anos, ele destaca o quanto as redes sociais podem servir para esconder a idade e manipular corações e mentes em nome de apaixonada relação amorosa.

Pode-se entender a escolha de Millaud a partir da separação de seu companheiro Gilles (Charles Berling), pois agora lhe cabe a sustentação de seu casal de filhos pré-adolescentes. Em sua idade as diferenças de anos contam mais do que sua situação financeira, a não ser que ela busque outra saída. Não sendo seu caso, reconstruir com as crianças a perda de um de seus esteios torna-se quase impossível. A situação da mulher na sociedade burguesa, com seus costumes e moral conservadoras, termina por transformá-la numa marginalizada, devido a exigência de eterna juventude.

É a partir do livro homônimo da francesa Camille Laurenz que Nebbou e Julie Peyr e a própria autora transpõem para o cinema os exemplos da manipulação das redes sociais como esteio de sua construção dramática, sem entrarem em questões éticas e políticas. Apenas deixam o espectador captar as explícitas carências de Millaud. O meio encontrado por ela para viver outra paixão é criar uma espécie de dupla personalidade. Claire, seu nome real, vive numa realidade, Clara, sua falsa identidade virtual, ganha vida através do Instagram. E no meio desta duplicidade está o jovem Alex a ignorar o duplo jogo a que está sendo submetido.

Millaud cria elo amoroso com Chelly

A partir daí a dupla de roteiristas mergulha o espectador no clima de ficção científica. Inclusive na melhor sequência do filme, quando Claire deixa de ser a real para se tornar a virtual. Nebbou e seu diretor de fotografia Gilles Porte a iluminam de baixo para cima, dando a impressão de ela viver noutro universo. E pode, assim, falar como uma garota de 20 anos, quando passa dos cinquenta. Cria, assim, o elo amoroso com Chelly, difícil de ser desfeito pela diferença de idade. O que vale aqui é a capacidade de fazer o amado vê-la como uma jovem perdidamente apaixonada por ele, embora apenas virtualmente e por ignorar de quem se trata.

A questão neste tipo de dupla narrativa é sustentar a construção dramática sem parecer artificial. Neste “Quem Você Pensa Que Sou”, o espectador entende as motivações de Millaud para não perder sua capacidade de amar, ser correspondida e feliz. E sem qualquer frustração por ser cinquentona, mesmo não podendo se revelar para o amado. É quando a narrativa se torna uma fábula de difícil sustentação, pois um descuido põe tudo a perder. Existe o medo de ao ter seu segredo desvendado caia na condenação dos retrógrados e preconceituosos, como se, de repente, ao estarem juntos pareçam se encaminhar para o incesto.

E vê-se a criatividade da dupla de roteiristas ao tornar o fotógrafo Alex um símbolo da imagem. Ele vive de captar a realidade, mas Millaud o atraiu para o universo virtual, pois Clara é uma criação de Claire. Há deste modo o construído e sua criatura a fundir-se numa só pessoa. O que significa que, rompidos os empecilhos doentios e conservadores, haverá a possibilidade de duradora relação amorosa e conjugal entre a mulher mais velha e o homem ainda jovem. O que ocorre muitas vezes com o homem e ela é vista com tardio amor entre o idoso e a mulher ainda bem jovem.

Bormans levará tempo para analisar Millaud

Sem perder o tema central de “Quem Você Pensa Que Sou”, Nebbou não deixa escapar as falsas construções virtuais de Millaud e sua frustração por ter sua família desmontada. De tal maneira que acaba diante da psicoterapeuta Catherine Bormans (Nicole Garcia) no estreito espaço do enquadramento de Porte. Há certo distanciamento entre elas, dado ao conflito interior de uma e a compenetrada posição da outra, que a analisa enquanto a escuta. E passa a ideia de que Bornans levará tempo para chegar à real motivação do trauma de Millaud. O que ocorre na tela é a narrativa dos conflitos submersos de uma mulher na transição da meia para a terceira idade. E neste estágio da vida, ela já sente o inescapável peso.

Como as narrativas são o acúmulo das ações dos personagens ou sobre o que interfere em suas existências, Nebbou não deixa o espectador antever a amplitude de seu tema central. Nem dá para fazê-lo nas primeiras sequências, apenas infere-se que a Millaud da esplêndida Juliette Binoche (09/03/1964) tem um sério problema familiar a resolver. E claro ainda não absorveu as circunstâncias da perda de Gilles. E se torna, assim, a verdadeira mulher dobrada pelos escombros da desilusão. Razão pela qual acabou diante da introvertida psicoterapeuta Bormans.

Trata-se, enfim, de uma trama bem urdida por Nebbou, Laurenz e Peyr. Não se restringe à narrativa, estende-se à construção dos personagens. Principalmente não deixando Millaud sucumbir às retrogradas imposições do sistema burguês. Tanto que o olhar feminino na estruturação deste “Quem Você Pensa Que Sou” não a deixam parar de pensar em sua relação com o jovem Alex. É desenvolvida de modo a deixar o espectador montar os rumos da narrativa desta densa história sobre o real e o falsificado.

Trauma ainda penaliza a sofrida Millaud

A narrativa em grande parte desenrola-se em ambientes fechados ou estreitos espaços das ruas. Gilles Porte, mesmo quando isto se dá, deixa as sombras predominarem, de modo a refletir o estado psicológico de Millaud. Ela é introspectiva, não chega mesmo a se dar conta dos efeitos de suas duplas armações. Uma delas é não se distanciar de Alex, temendo que ele acabe optando por sua ex-namorada. É quando o procura pela cidade, principalmente nos terminais de metrô. E se não o encontra entra em contato com seu amigo e confidente Ludo (Luidovic Dalaux).

São nestas sequências que o espectador entende o dilema de Millaud. Ainda bela aos cinquenta anos, ela não foge ao que lhe dará a chance de adentrar a outro universo. Inclusive o de frequentar bares e se divertir, há ainda o vazio deixado por Gilles. Entende-se a bela construção dramática de uma personagem contemporânea. Afinal, Nebbou constrói aqui, a partir do romance de Camille Laurenz, o dilema comum às mulheres caminhando para terceira idade em idêntica situação ou pior. As opções a compartilhar com os homens se reduzem às exigências da eterna juventude. Em sua idade, as opções não só rareiam, como são raros os bons companheiros.

Devido a isto, toda a narrativa está mesclada às suas rememorações diante de Bormans e à “dupla personalidade fake”. Sua insatisfação com ela se manifesta devido à estudada imobilidade, quando esperava dela um diálogo em que pudesse trocar ideias sobre seus impasses presentes. Foge à sua compreensão que Bormans ao ouvi-la todo um trabalho de reconstrução de seu trauma está sendo feito pela psicoterapeuta. No momento adequado, ele emergirá com a força que irá clarear o que tornou sua existência uma infindável tortura. Comportamento comum na relação terapeuta-paciente, mesmo que Millaud buscasse tão só a amizade dela.

Cura cabe apenas à psicoterapeuta

Numa das melhores sequências deste “Quem Você Pensa Que Sou”, Millaud se irrita com Bormans a ponto de provocá-la com perguntas sobre sua vida conjugal. Com toda frieza, embora dê sinais de irritação, ela contorna o impasse e segue adiante. A veterana e ótima atriz e cineasta argelina (Um Belo Domingo, 2014), radicada na França, Nicole Garcia (22/04/1946) se atém ao prescrito no roteiro e lhe acrescenta o olhar distante e evasivo. É de uma frieza de se impor à irrequieta paciente. A sensação é que Millaud quer entender o que se passa com ela, mas o forte bloqueio interior não lhe permite expor as motivações do trauma.

Chegar a elas, que significa a cura, cabe exclusivamente a Bormans ou qualquer outro psicoterapeuta. Sua aparente introspecção é, na verdade, sua técnica para levar Millaud a lhe expor que houve o choque e que ele bloqueou, sobretudo, o entendimento da profundidade do trauma causado por alguém do qual jamais esperava se separar. E só daí virá o alívio e o retorno de sua capacidade de voltar a amar, ainda que o conservadorismo da sociedade burguesa se esforce para isto não ocorrer.

Ao invés de criar subtramas entrelaçadas, Nebbou optou por três linhas dramáticas num contínuo até o desfecho. É por meio delas que descontrói o preconceito contra a mulher da meia idade: I – Millaud sofre com o conservadorismo burguês; II – Ela se vale do fake News da plataforma do Instagram para escapar às estigmatizações da mulher mais velha que se casa com o homem mais novo; III – As barreiras são derrubadas e a escolha cabe unicamente aos dois enamorados. Mas é também neste desfecho que Rebbou e sua co-roteirista mudam de foco.

Só cabe a Millaud e Alex superar os preconceitos

Há nas sequências da terceira parte do filme uma eficiente mudança na estruturação narrativa. Nebbou, Laurenz e Peyr desconstroem as principais linhas dramáticas. Há uma sucessão de desencontros entre os personagens a remeter às comédias dramáticas e aos dramas românticos das décadas de 40 e 50. Não são apenas os costumes e o conservadorismo burgueses que impedem Millaud e Alex de ficarem unidos. Eles só irão superar os preconceitos se ativerem apenas ao que interessa a eles e aos seus.

Quem Você Pensa Que Sou. (Celle Que Vous Croyez) França. Drama.2019. 102 minutos. Ficha técnica:. Trilha Sonora: Ibrahim Maa Louf. Montagem: Stéphane Pereira. Fotografia: Gilles Porte. Roteiro: Safy Nebbou, Camille Laurenz e Julie Peyr, Direção: Safy Nebbou. Elenco: Juliette Binoche, Nicole Garcia, François Civil, Jules Gauzelin, Marie-Ange Casta, Charles Berling.

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