Para o dia do frevo

O frevo se renovou? Mas o que é mesmo renovar? — Certamente, não é repetir. Certo. Será algo então jamais visto, tão novo quanto seria um extraterrestre para o nosso convívio?

O frevo, que antes se tocava todos os dias nas rádios do Recife, hoje tem apenas 2 dias, além do tempo de carnaval: 9 de fevereiro e 14 de setembro. Em 09/02, comemora-se o dia em que apareceu no Jornal Pequeno, de 9 de fevereiro de 1907. Em 14/09, faz-se uma homenagem ao jornalista Oswaldo Oliveira, nascido em 14 de setembro de 1882, que teria batizado a palavra frevo. O certo é que a dança, o ritmo, a manifestação musical surgiu no século dezenove, bem antes que os intelectuais e jornalistas achassem digno de registro o seu nome. Mas não é sempre assim? O povo cria, e os dicionários e eruditos depois querem ter o domínio.

O texto a seguir é uma adaptação do verbete Frevo no Dicionário Amoroso do Recife. Ele será lido na noite desta sexta-feira, entre 22 e 23 horas, por Marcelo Araújo na Rádio Jornal do Recife .

Ao texto para o rádio.

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 No Aeroporto dos Guararapes, ou Gilberto Freyre, pode ser vista uma reprodução do quadro Frevo, de Lula Cardoso Ayres. Ele bem que podia ser uma primeira aproximação do frevo dançado em Pernambuco.  Ele é imagem precisa e preciosa de um tempo do frevo ao ser dançado nas ruas, numa dança que os pernambucanos chamam de “fazer o passo”, e haja passos, saltos, acrobacias, explosão de energia humana. Dizemos explosão e, para quem não viu nem conhece, esclarecemos que isso não é bem uma metáfora. No reino animal, o fenômeno que mais lembra o passo da gente, quando os metais de sopro jogam no calor, para o azul do céu o frevo Vassourinhas, no reino animal o que mais lembra o passo coletivo é um estouro de boiada.

A poeira sobe. Os gritos de libertação se gritam com força. É uma felicidade, um desassossego e um sufoco. Quando Vassourinhas é anunciado como se deviam anunciar os batalhões na guerra, e quando por fim, num surto, Vassourinhas avança, sobe uma nuvem de violência no ar. É uma forma de ser de Pernambuco, desde a bebida, a grossa aguardente, aos pratos da gastronomia, que mais se devia chamar de gastro-violência. Nada de mais ou menos. É preto negríssimo, ou é branco de incandescer. Ou estás vivo, ou estás morto.

O frevo de rua, que vem encantado em instrumentos de sopro, de metais, e mais está para sangue coagulado de porco, que melhorado com suas vísceras chamamos de sarapatel, o frevo de rua ainda guarda elementos de música de guerra. Nelson Ferreira, que era maestro supremo do gênero, dava uma lição bem prática: “Peguem o Hino Nacional. Toquem rápido, mais rápido… isso já é frevo”. E de rua, ele foi para o frevo-canção, que se espraiou para o frevo de bloco, com um andamento mais leve, suave, mais família e menos raivoso, digamos assim.

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“Por que o frevo não se renova?”, me perguntou uma vez o amigo Joaquim Ancilon no Pátio de São Pedro, enquanto ouvíamos frevos de bloco. Joaquim era um professor, um homem honesto, mas nem por isso imune a perguntas de provocação. E em que momento oportuno ele fez a pergunta! Porque lá no palco a senhora Lilia, ex-presa política, cantava:

“Felinto, Pedro Salgado,
Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas,
Pirilampos, Apôis-Fum,
Dos carnavais saudosos?

Na alta madrugada
O coro entoava
Do bloco a marcha-regresso
Que era o sucesso
Dos tempos ideais
Do velho Raul Morais:
‘Adeus, adeus, ó minha gente,
que já cantamos bastante…’
E Recife adormecia
Ficava a sonhar
Ao som da triste melodia… “

Não sei se foi o calor do uísque ou da raiva diante da pergunta, não sei se foi a lembrança da fase de ouro do frevo, com Nelson Ferreira, Capiba, Levino Ferreira, Edgard Moraes, João Santiago; não sei se foi a recordação do que um dia escrevemos sobre o gênio de Nelson Ferreira, quando dissemos que esses compositores de frevo de Pernambuco tinham o dom de falar do sentimento da gente com uma voz que atravessava a parede de uma sala vizinha. Queremos dizer, dissemos, não somos nós que falamos, mas esses compositores se referem ao que sentimos com tamanha intimidade que são essa maravilha ainda não descoberta: um parente, amigo, da infância, com quem não brigamos que tem crescido em nosso afeto, nutrido no tempo incessante… não sei. Mas deve ter sido uma mistura de tudo isso, porque à pergunta:

— Por que o frevo não se renova?

Respondi com outra:

— Por que Dante não se renova?

Por que um clássico não se renova? Por que não temos mais A Divina Comédia? Por quê? As obras seminais, que fundam o nosso ser, não se renovam, não se encontram no mercado, não estão à venda. Estão para sempre, para a nossa reconstrução. A sua modernidade é a sua infindável permanência. A sua renovação é o seu dom de ser insubstituível. Ora. Mas ainda assim, ficamos matutando. Ficou um travo de coisa ruim, de coisa que não está resolvida, na garganta, no peito. Está certo, viemos pensando, está certo, Nelson Ferreira hoje é impossível, ninguém mais, nunca mais será Nelson Ferreira, o grau de excelência que ele alcançou não se faz mais. Certo. Mas por que o frevo tem que ser somente à maneira e feição de Capiba, Nelson e Levino? Ora, se Dante não se renova, a poesia continua e continuará em outras faces que não a de Dante. Sim, e por que não, como não? É impossível hoje algo como a Evocação número 1, é certo. É absolutamente improvável, absurdo, que se faça de novo Último Dia, de Levino Ferreira.

O frevo se renovou? Mas o que é mesmo renovar? — Certamente, não é repetir. Certo. Será algo então jamais visto, tão novo quanto seria um extraterrestre para o nosso convívio? E se assim for, como dizer que essa coisa jamais vista ainda é do mesmo gênero, do frevo? Ora. Então esse renovar deve com mais certeza aliar, resolver a tradição no presente. Há caminhos ainda não percorridos, a partir mesmo da tradição. Como pode ser visto com a orquestra Spok em suas apresentações. 

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Olhem de novo, incrédulos. Que me dizem, ó insensatos? O ET não precisa ser a negação do humano. Spok vai no caminho das estrelas, na jornada das estrelas. Aquelas antecipações de Felinho ao executar Vassourinhas antes de 1950 agora são retomadas pela orquestra de Spok, ao improvisar com liberdade sobre a base da história do gênero, livre com liberdade, que sem ela nada se cria nem se transforma. Dele disse o maestro e compositor Clóvis Pereira: “A Spok Frevo, afinadíssima e conduzida por Spok, é uma orquestra formada por jovens de irrecusável talento musical e nos mostram que o frevo está mais vivo do que nunca, evoluindo cada vez mais até o alvorecer do novo século. Quem viver verá!”. Que dizer, então, em outro ponto, de J. Michiles, autor de muitos sucessos na voz de Alceu Valença? Me segura senão eu caio, Diabo Louro, Roda e Avisa. Que dizer do Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério? Que dizer da ação civilizadora de Antonio Nóbrega, que dança, toca, canta e distribui o gênio do frevo em todo o mundo?  Como veem, o mundo continua, a vida segue, apesar da saudade que dá na gente de Nelson Ferreira em todos os carnavais.

Nem sequer sonhávamos com algo assim, a renovação criadora, que pula da estagnação. O frevo venceu. Todos podemos afinal dizer que o frevo venceu desde 9 de fevereiro de 1907. Toca, maestro Spok!

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