“Papicha”: Ode à vida e a liberdade

A dura vida das argelinas em meio à guerra civil e aos dogmas e preceitos religiosos na década de 90 leva um grupo de garotas a outros caminhos.

As primeiras sequências deste “Papicha” são antológicas e de admirável concisão. Há algo a mais nas atitudes de duas garotas que acabam de descer do ônibus de madrugada numa rua deserta de Argel, capital da Argélia. Elas se põem a cobrir a cabeça com o véu (hijab) e a vestir uma espécie de bata (haik) para cobrir o corpo. Logo entram pela rua paralela onde são amedrontadas pela desenfreada perseguição de carros pelas ruas parcamente iluminadas. O clima é de filme policial, bem podiam ser os policiais em desenfreada perseguição aos suspeitos.

Toda esta impressão leva à surpresa por envolver duas garotas àquela altura à procura de um táxi. Mas são cercadas não pelos policiais, mas por integrantes do fundamentalista Exército de Salvação Islâmica, envolvido na guerra civil argelina (26/12/1991-08/02/2002). Uma de suas ações era manter a obediência aos preceitos mulçumanos. Mas, embora elas tenham procurado seguir os dogmas religiosos, eles não as perdoam por serem garotas e estarem de madrugada na rua. O espectador entende, assim, a camisa-de força na qual os fundamentalistas mantêm as mulheres.
Este é o tema central de “Papicha”, estruturado como um drama pela cineasta argelina, Mounia Meddour (1980), a partir de roteiro escrito com sua parceira Fadette Drovard. Parte do que transcorre na tela, neste seu filme de estreia, advém de sua experiência de seis anos aterrorizada pelos confrontos entre o Exército de Salvação Islâmica (ESI) e a Frente de Libertação Nacional (FLN). Foi o bastante para ela emigrar com sua família para a França aos 17 anos, em 1997. Durante cerca de 11 anos de guerra civil na Argélia mais de 150 mil vidas foram ceifadas. Os combates contra as mulheres estavam centrados na repressão religiosa.

Nedjma e Shirine têm alegria de viver

Meddour a transforma na história das amigas Nedjma (Ljna Khoudri) e Wassila (Shirine Boutella). Estudantes universitárias do Curso de Alta Costura, elas dividem seu tempo entre os estudos e a diversão noturna, às idas à praia e os encontros com seus namorados. Meddour faz aqui o contraponto entre o medo provocado pela repressão religiosa e o quanto as jovens se auto reprimem. Há de um lado o temor da “punição divina” no pós-morte e de outro a implacável perseguição dos fundamentalistas e da própria sociedade conservadora. Dualidade à qual Nedjma e Massila não se submetem, pois tem suas próprias defesas e aspirações.

Por construí-las como personagens com ideias próprias e disposição para alcançar seus objetivos, Meddour faz belo contraponto entre a felicidade e as imposições de preceitos e dogmas. Elas são cheias de vida e suas ideias as levam à amizade, à paixão pelos namorados e às criações de alta costura. Não que elas neguem ou combatam a crença muçulmana, só não aceitam as restrições impostas pelos fundamentalistas. Estes são vistos como ceifadores de sua alegria de viver. Como qualquer jovem de sua idade, elas apreciam a praia, o banho de mar e divertir-se à noite.

Esta forma de passar ao espectador outra combinação de crença e vida leva Meddour a pôr o espectador diante de seus próprios impasses. A jovem Nedjma se divide entre a família, a faculdade e o namorado Mehdi (Yasin Hovicha). Ele, como qualquer jovem argelino classe média, sonha em emigrar para a França, onde arranjará um emprego e ela irá cuidar da casa. Chocada com tais ideias, ela se nega a aceitar as propostas dele. Seu caminho já está traçado e incluem sua independência como mulher. O casamento é visto por ela como compartilhamento não escravidão conjugal.

Nedjma é vítima de assédio sexual

Com estes fios dramáticos, Meddour abre o leque narrativo dando complexidade à história das amigas Nedjma e Wassila. A todo momento ao frequentar a faculdade, Nedjma é vítima de assédio sexual, visto pelos machistas como algo normal para conquistar a mulher. É o modo de eles se mostrarem homens. As mulheres ao seu ver não passam de objetos de desejo à sua disposição. Numa sequência um dos jovens chega a lhe dizer que o Alcorão não admite a mulher trabalhar. E ela, como qualquer outra de seu grupo, não vê tal assertiva como uma forma de liberação da mulher.

O espectador capta a cada sequência a capacidade de Meddour abordar tão explosivo tema apenas através da contraposição. O centro da resistência ao fundamentalismo acaba se instalando na Faculdade de Alta Costura. E o modo de torná-lo vivo é por meio das ideias de Nedjma. E se materializa na organização do desfile das criações de peças femininas. A resposta dos fundamentalistas é usar suas metralhadoras para combater o que ameaçava sua suposta liderança na faculdade e o controle das mulheres. A sequência leva ao terror e ao sangue, reflexos da insanidade.

São sequências de grande impacto pois são encenadas em salas e corredores, portanto em cenários montados em estreitos espaços, a lembrar a realidade imposta pelos atentados do Estado Islâmico. Exige muita coragem e disposição de Meddour para a denúncia imagética. A trama por ela montada em contínuo, sem qualquer subtrama, exige tanto criativa encenação de sua parte, quanto da direção de fotografia por Léo Leffevre e a eficiente montagem de Damien Keyeux. Ambos levam o espectador a sentir o peso da perseguição sofrida pelas mulheres argelinas e não só elas, pois há muitos países governados pela extrema direita.

Desfecho é de arrepiar os fundamentalistas

Como este não é um drama pessimista a ignorar a capacidade da mulher para se guiar por suas motivações e não temer concretizar seus sonhos, Meddour torna Nedjma uma destemida líder de suas colegas de classe. Principalmente quando o apoio com o qual contava lhe escapa de maneira atroz. É como se todas as conquistas da Revolução Feminina dos anos 60 e das décadas seguintes se esboroassem e elas tivessem de voltar à submissão e perder seus empregos nas fábricas e nos escritórios. E, sobretudo, deixassem de compartilhar com os homens o sustento da casa.

O desfecho deste “Papicha” é de arrepiar qualquer fundamentalista que vê ameaça em toda iniciativa de liberação da mulher, como se isto tornasse o homem escravo de sua companheira. O que Nadjma e suas companheiras querem é revolucionar a moda nos países árabes, sejam fundamentalistas ou não. Meddour coloca-as numa posição privilegiada ao mostrar seu papel numa sociedade estagnada em sua estruturação política, econômica e social. E os raivosos fundamentalistas se esforçam para continuarem numa sociedade medieval, tendo a mulher como escrava.

Meddour retira costumeiro pessimismo de sua narrativa

Com estas premissas, Meddour retira sua estruturação dramática do costumeiro pessimismo dos filmes que tratam da ameaça do fundamentalismo. Não só encadeia sua narrativa em contraposição a estas obras, como dota suas personagens de energia e alegria de viver, ainda que sob constante ataques às suas vidas. E como mulher lança um olhar à sua volta e vê o quanto de atraso o fundamentalismo traz para os países que estão sob o seu controle. E termina por mostrar o claro conflito entre ele e a libração da mulher, portanto de grande parte dos habitantes do Planeta Terra. Mudar é preciso.

Ficha Técnica

PAPICHA. EUA, França, Argélia, Bélgica, Qatar. Drama. 2019. 145 minutos. Trilha sonora: Rob. Montagem: Damien Keyeux. Fotografia: Léo Leffevre. Roteiro: Mounia Meddour/Fadette Drovard. Direção: Mounia Meddour. Elenco: Lyna Khoudri, Shirine Boutella, Amira Hilda Douaouda, Zahra Manel, Yasin Houicha. Indicações: Oscar 2020 de Filme Estrangeiro, como representante da Argélia. Participante da Mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes 2019.

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