Os caminhos do desenvolvimento

O debate sobre o projeto de desenvolvimento nacional é estratégico. Este tema já foi motivo de acirrados confrontos na história do Brasil e da América Latina e hoje volta a ocupar um espaço privilegiado nesta região que se levanta e busca novas alte

No passado, na luta entre os desenvolvimentistas e os adoradores do deus-mercado, ele resultou em grandes jornadas patrióticas, como na campanha do “petróleo é nosso” no Brasil, e até em revoluções, como no México, Bolívia e Cuba; mas ele também foi castrado por golpes militares, intervenções armadas dos EUA, torturas e mortes. Debater o desenvolvimento é mexer com um assunto nevrálgico, que afeta interesses radicalmente antagônicos.




Segundo o professor José Luis Fiori, o chamado desenvolvimentismo latino-americano ganhou impulso no México durante o governo de Lázaro Cárdenas, nos anos 30. Ele se deu no rastro dos debates sobre o Estado de Bem-Estar Social na Europa. Cárdenas estatizou a produção do petróleo, promulgou medidas de proteção ao mercado interno e leis trabalhistas e adotou uma política externa independente. Por razões óbvias, ele passou a ser alvo dos ataques do imperialismo ianque e das elites nativas subalternas. Também Getúlio Vargas, no Brasil, Juan Perón, na Argentina, Jacobo Arbenz, na Guatemala, Velasco Alvarado, no Peru, e Salvador Allende, no Chile, tentaram caminhos para o desenvolvimento e foram hostilizados.


 



Agora, no limiar do século 21, o debate sobre desenvolvimento volta à tona no Brasil e na América Latina após a longa e destrutiva hegemonia do pensamento único neoliberal. Com as recentes vitórias eleitorais de forças oriundas das lutas populares e dos anseios nacionais, que teve início com Chávez na Venezuela, em 1998, e prosseguiu com o líder operário Lula no Brasil, em 2002, com Nestor Kirchner na Argentina, em 2003, com Tabaré Vasquez no Uruguai, em 2004, com o líder camponês Evo Morales na Bolívia, em 2005, e mesmo com Michele Bachelet no Chile – e que ainda pode ser reforçada por Ollanta Humala no Peru, Lopes Obrador no México e Daniel Ortega na Nicarágua –, o assunto ingressou na ordem do dia.
É certo que estas vitórias, animadoras para a luta dos povos latino-americanos, não garantem um caminho seguro para o desenvolvimento destas nações e para a integração regional – tão necessária para enfrentar a arrogância dos EUA. Hoje o capital não precisa mais de golpes e ditaduras para impor suas ordens. Como diz o sociólogo português Boaventura Santos, o mundo vive sob o “fascismo do mercado”. O simples ato de colocar um boné do MST tumultua o mercado, que ameaça e faz chantagens. Com o enfraquecimento dos estados nacionais e o aumento do poder da ditadura financeira, os caminhos para o desenvolvimento são bem mais espinhosos. Dependem de muita firmeza de propósitos e de muita habilidade política!


 



De fato, os países citados ainda não se conseguiram transitar do modelo neoliberal para um novo projeto de desenvolvimento nacional com justiça social. Esta transição ainda produzirá muitos confrontos – e não apenas eleitorais – e exigirá uma persistente e consistente acumulação de força dos setores interessados na superação da miséria social na região. Além disso, ela demandará um esforço intelectual redobrado para a elaboração das alternativas. Com a devastação neoliberal, a ortodoxia economia suplantou a política e as idéias inovadoras deram lugar aos dogmas do mercado. Até mesmo os governos eleitos com plataformas progressistas estão infiltrados por quintas-colunas que se converteram ao credo da ditadura financeira.


 



Evitar o retrocesso


 


Apesar do debate sobre o novo projeto de desenvolvimento ser estratégico, de requerer um árduo processo de elaboração de alternativas e de demandar prolongada acumulação de forças, ele hoje também passa por desafios imediatos. Não adianta eleger um belo projeto estratégico se não se escolhem os caminhos táticos para abordá-lo. Neste sentido, as batalhas eleitorais da próxima fase serão decisivas. Será difícil caminhar no rumo da soberania, desenvolvimento, democracia e justiça social se os países do continente sofrerem retrocessos; se a direita neoliberal, derrotada em vários pleitos, impor a sua revanche maligna. Neste caso, como observou o presidente Hugo Chávez, em recente visita ao Paraná, o papel do Brasil é determinante.


 



A direita brasileira, que não tem qualquer compromisso com a nação e nem com o progresso do seu povo, fez uma opção clara para a sucessão presidencial de outubro próximo. Ela bancou um candidato altamente conservador, portador de um programa ultraliberal. Geraldo Alckmin possui formação de direita, avessa a qualquer diálogo, que bebe na fonte da seita fascista Opus Dei. Além disso, ele não esconde a intenção de retomar as negociações da Alca, que tornaria o Brasil uma colônia dos EUA sem qualquer autonomia para o desenvolvimento; de iniciar uma nova rodada de privatizações; de reduzir os gastos sociais; e de impor as contra-reformas trabalhista e previdenciária. O seu slogan é explícito: “Menos Estado e mais mercado”.


 



Os mentores de Alckmin são adeptos do mais brutal liberalismo. Tentam estigmatizar qualquer projeto de desenvolvimento como sendo obra dos “populistas”. Mendonça de Barros, responsável pela privataria na gestão FHC e coordenador do programa tucano, critica o governo Lula por ter brecado as privatizações e por contratar servidores. Quer a entrega das jóias da coroa. José Pastore, ícone da precarização, diz que os direitos trabalhistas engessam a economia. Já o embaixador Rubens Barbosa desanca a política externa de Lula e prega o alinhamento com os EUA. Como o neoliberalismo não combina com democracia, Pastore propõe a pulverização dos sindicatos e Xico Graziano exige a criminalização dos “bandidos do MST”.


 



A ameaça da revanche neoliberal, que só os sectários não enxergam, colocaria em risco a recente guinada à esquerda na região. Em síntese, a construção do projeto de desenvolvimento passa pela eleição de 2006. O que está em jogo não é apenas o futuro do Brasil, mas da própria América Latina. Uma vitória do bloco liberal-conservador atrasaria ainda mais qualquer projeto de desenvolvimento e justiça social. Não é para menos que Hugo Chávez, no encontro citado com 1.200 lideranças do MST, alertou: “Todo o governo de direita se ajoelha perante o império. A volta da direita seria um golpe não só para o Brasil, mas também para a Venezuela e para o projeto de integração da América Latina… Se fosse brasileiro, votaria em Lula”.


 



Avançar nas mudanças


 


Mas não basta apenas evitar o retrocesso. É preciso também avançar nas mudanças no Brasil como única forma de viabilizar a construção de um verdadeiro projeto de desenvolvimento. Neste sentido, a primeira experiência do governo Lula esbarrou em muitas limitações, nem sempre entendidas pelos mais iludidos. Ela se deu na contra-mão da ofensiva imperial dos EUA; legou uma herança maldita, que devastou o país e desestruturou o trabalho; não conseguiu maioria institucional; e padeceu da fragilidade dos movimentos sociais. As forças populares elegeram o presidente, mas não tomaram o poder; venceram a eleição, mas não fizeram uma revolução; derrotaram o neoliberalismo, mas este permanece hegemônico no mundo!


 



Além das limitações objetivas, o governo Lula também cometeu erros grosseiros. O principal deles se deu no campo político. Ele apostou no ilusório caminho da conciliação como a única forma de implementar as mudanças exigidas nas urnas. Mas não se faz omelete sem quebrar ovos! O pecado original da conciliação de classes ficou patente na opção de não mobilizar o povo para pressionar pelas mudanças, na ausência do esforço pedagógico de conscientização e mobilização da sociedade. Ele priorizou a negociação no terreno institucional, que é totalmente minado e permeável às práticas fisiológicas. Para acalmar o poderoso deus-mercado, o governo manteve a política macroeconômica que serve aos interesses da ditadura financeira e ainda implementou algumas contra-reformas da agenda neoliberal, como a da Previdência Social.  


 


 
Apesar dos equívocos, é um absurdo afirmar que o governo Lula é igual ao de FHC, como gritam alguns rancorosos. Isto não corresponde à verdade. Na política externa, vital para o projeto de desenvolvimento, o governo Lula foi ousado. Não fosse a vitória eleitoral das forças populares, o tratado colonial da Alca vigoraria desde janeiro de 2005; Alcântara seria uma base militar dos EUA; e a economia estaria mais vulnerável. Lula também ampliou as relações democráticas ao não criminalizar o movimento social, bem diferente de FHC que acionou o Exército contra a greve dos petroleiros. Quem viveu sob a ditadura sabe a importância da democracia para o avanço das lutas do povo. Não é partidário do quanto pior, melhor!


 



Outra diferença significativa se deu nas políticas sociais. O presidente Lula, até por sua origem de classe, é mais sensível aos problemas do povo. Seu governo procurou valorizar o aparelho de estado, ao retomar a contratação de servidores e ao investir recursos recordes nos programas sociais. Para os que dizem que tais medidas são assistencialistas, o economista Marcio Pochmann não vacila em afirmar que “as críticas revelam preconceito de classe”. Mesmo na área econômica, a ortodoxia neoliberal sofreu alguns revezes com a ampliação do micro-crédito, o estímulo à agricultura familiar, o reajuste do salário mínimo, entre outras medidas desenvolvimentistas que explicam o acanhado reaquecimento da economia na última fase.


 



É evidente que estes e outros avanços ainda são tímidos diante da crônica dívida social brasileira, que eles não representam a almejada transição do neoliberalismo para o novo projeto de desenvolvimento nacional e que eles estão bem abaixo das expectativas geradas com a eleição de Lula. É compreensível a existência de um clima de certa frustração numa fatia da sociedade, principalmente nos centros urbanos, e também a confusão e fragmentação reinantes em setores do movimento social organizado. Mas isto não pode nos cegar. Na atual correlação de forças, não existe a possibilidade de uma ultrapassagem pela esquerda do governo Lula – o risco é o do retorno da direita. Também seria um crime qualquer postura abstencionista.


 


 


Superar os entraves


 


 


O desafio atual é evitar o retrocesso e avançar nas mudanças, criando as condições para que um segundo mandato popular e democrático transite de fato para o novo projeto de desenvolvimento. Um exército não avança descuidando das trincheiras já ocupadas. Neste rumo, é preciso superar os obstáculos que freiam o crescimento e entravam a construção de uma nação desenvolvida, soberana, democrática e justa. Qualquer manual de economia ensina que o crescimento depende, acima de tudo, dos investimentos. A experiência também revela o erro dos que afirmam que primeiro é preciso crescer para depois distribuir as riquezas. A valorização do trabalho e as políticas públicas reforçam o crescimento ao estimularem o mercado interno.
Para garantir maiores investimentos públicos e privados e distribuir riquezas, entretanto, é um imperativo superar o modelo neoliberal. Sem romper com esta camisa-de-força não há como implementar um projeto de desenvolvimento consistente, acelerado e duradouro. O tripé neoliberal – política monetária restritiva, política fiscal contracionista e política cambial de libertinagem financeira – impediu que o governo Lula promovesse maiores avanços no país. Mesmo as tímidas mudanças efetuadas foram ofuscadas por essa orientação econômica ortodoxa que serve principalmente ao capital financeiro. Vale a pena apresentar alguns números e análises para demonstrar os efeitos perversos deste tripé neoliberal.


 



– Arrocho monetário. O Brasil é campeão mundial em taxa de juros. Sob o dogma de que é vital manter a meta de inflação, o Banco Central adota uma política que inibe o crédito e desestimula a produção. Para o economista Ha-Joon Chang, autor do best-seller “Chutando a escada”, essa orientação é irracional. “Isto está matando o investimento. Se olharmos para os países que se desenvolveram na década de 60, veremos que a Coréia do Sul tinha taxas de juros negativas. Uma taxa de mais de 10% é um sinal claro do governo para que você não invista na atividade produtiva e invista em títulos da dívida pública… Por que o Brasil não pode ter uma inflação de 10 a 15%? No período de superaquecimento da Coréia do Sul, a inflação era de 17 a 20%. Não há estudos que defendam de modo categórico índices de inflação abaixo de 10%”.


 



– Superávit primário. Cerca de 40% dos recursos arrecadados pela União são utilizados como reserva de caixa dos banqueiros, restando menos de 5% para os investimentos. A desproporção é chocante. Um mês de pagamento de juros equivale ao dispêndio anual do Sistema Único de Saúde; quinze dias equivalem ao gasto anual com a educação; dez dias, aos recursos do Bolsa Família; um dia cobre os gastos previstos na construção de habitações populares; um minuto corresponde à alocação anual de recursos para defesa dos direitos humanos. Na prática, o superávit primário significa que o governo retira da economia cerca de R$ 80 bilhões por ano para pagar parte dos juros da dívida. Há uma brutal transferência de renda dos pobres (os maiores pagadores de impostos) para os ricos (os detentores de títulos da dívida).


 



– Libertinagem financeira. Com a desregulamentação promovida pelo governo FHC, o Brasil virou um paraíso da especulação financeira. O capital volátil ingressa e abandona o país sem qualquer controle, sem qualquer compromisso com o desenvolvimento. Na busca de maior rendimento, ele age rapidinho – é um capital motel! Isto inviabiliza os investimentos na economia, inibe qualquer política cambial que favoreça a produção. Como explica o economista Carlos Lessa, “a movimentação sem regras da riqueza financeira impede o controle e até mesmo o cálculo da taxa de câmbio, ameaçando desorganizar o sistema de preços em que se baseia a economia real. O capital financeiro adquire um poder de veto sobre quaisquer decisões da. Encurralado, o governo se torna refém da movimentação financeira. O poder soberano troca de mãos”.


 


Pressão da sociedade


 


Estes entraves neoliberais, entre outros, impedem as mudanças necessárias e urgentes no Brasil. Qualquer projeto de desenvolvimento passa pela imediata redução ou eliminação do superávit primário; pela queda acentuada da taxa básica de juros; pela administração do câmbio em patamares favoráveis à produção; e pelo controle da entrada e saída do capital volátil. Hoje, o Brasil tem uma taxa de investimento produtivo de 19,6% do PIB. Em 2004, a média mundial foi de 22%; já nos países emergentes, ela atingiu 35%. Sem destravar os investimentos, o país não terá como crescer a uma taxa média anual de 5 a 6%. Segundo vários estudos, um crescimento desta ordem resultaria na geração de 2 milhões de empregos ao ano.


 



Mas para implementar o projeto de desenvolvimento é imperativo vencer as eleições de outubro próximo. O caminho das mudanças no Brasil passa, hoje, pela reeleição de Lula presidente. Ela é que possibilitará alterar a correlação de forças na sociedade. Para vencer, o bloco popular-democrático de sustentação do governo Lula precisará repactuar suas forças, reforçar o seu núcleo de esquerda, reativar as relações com movimentos sociais e neutralizar os setores de centro – que serão fiel da balança na eleição. Será preciso reforçar a denúncia da herança maldita, já que FHC é detestado pelo povo; fazer as comparações entre os governos, já que Lula ganha em todos os quesitos; e sinalizar com as mudanças para o segundo mandato.


 



Nesta batalha, os movimentos sociais e os partidos de esquerda têm papel decisivo. Eles devem evitar os extremos da passividade acrítica ou do voluntarismo esquerdista. Precisam preservar sua autonomia e agir com inteligência política, reforçando a pressão social diante do “mercado”. Não atual fase da globalização neoliberal, não basta eleger governos progressistas. É preciso co-governar! A implementação do projeto nacional de desenvolvimento tornou-se a forma de aproximação do objetivo socialista, da superação da barbárie capitalista. As forças políticas e sociais comprometidas com este objetivo não podem se omitir. O projeto de desenvolvimento nacional e da integração latino-americana passa pela sucessão presidencial. 



 


* Exposição apresentada no seminário “Desenvolvimento com distribuição de renda e participação dos trabalhadores”, promovido pelo Assembléia Legislativa de São Paulo, em 27 de abril; e na abertura do 11o Conselho de Entidades de Base (Coneb) da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 15 de abril.

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