Obrigado por me fazer escutar a cor dos passarinhos

 Quando escrevi o primeiro texto desta coluna Francisco ainda era um pingo de gente de menos de dois meses que exigia toda a nossa atenção e pouco nos dava em retorno. Hoje, com seis meses e meio, ele exige ainda mais, a diferença é que agora ele retribui a nossa dedicação e amor com um repertório de risos, gestos, falas e caras que cresce numa velocidade espantosa e provoca uma onda de encantamento sem fim em mim e em minha parceira, Carol.

E é justamente neste momento tão especial e prazeroso que ela, a pessoa mais responsável por tudo isso, terá que passar longas horas longe de casa ao retomar a sua pesada rotina de trabalho. Por isso, hoje eu peço licença para escrever um pouco sobre gratidão, parceria e admiração.

Poucas foram as vezes em que eu escrevi diretamente sobre Carol nesta coluna quase-quinzenal. Alem do motivo óbvio – o objetivo da coluna é falar sobre pais e paternidades a partir da perspectiva de gênero e tendo o feminismo como inspiração –, há outras importantes razões para isso. 

Os primeiros dias de vida de Francisco foram o suficiente para eu me dar conta que observar o desenvolver da sua relação com Carol se tornaria uma fonte de prazer e de aprendizado imensurável. No entanto, não acredito que caberia a mim escrever sobre os desdobramentos deste lindo, poderoso e particular encontro entre uma mãe e o seu filho.

Além disso, existem excelentes espaços de troca e de fonte de informação sobre gestação, parto e maternidade voltados principalmente para as mães e futuras mães e organizados, na maioria das vezes, por elas. Numa rápida consulta a amigas que são mães e/ou que trabalham com o tema cheguei à seguinte lista que representa um pequeno pedaço de um imenso e revolucionário corpo de conhecimento: Buxixo de Mães; Cientista que virou mãe; Grupo Virtual de Amamentação; Humanize-se; Livre Maternagem; Mães com Ciência; Não me chamo mãe; O Renascimento do Parto; Rede Pela Humanização do Parto e do Nascimento/Rehuna e Uma mãe feminista.

Isso não quer dizer que homens não possam contribuir com este campo. Eles não apenas podem como muitos o fazem com extremo respeito e competência, como o pediatra Daniel Becker, do “Criar & Crescer”, cujos vídeos são um imenso sucesso aqui em casa; o pediatra espanhol Carlos Gonzáles, do excelente livro “Bésame Mucho” e o Dr. Marcus Renato, que pesquisa e promove o aleitamento há mais de 20 anos.

Mas o tema hoje é gratidão, parceria e admiração e cá estou eu a tergiversar… Na verdade, desde o nascimento de Francisco que eu tento escrever algo assim, mas ao tentar concatenar as palavras tudo parece pequeno frente à experiência real.

Vendo os dias passarem e o retorno de Carol ao trabalho se aproximando, um sentimento de urgência foi batendo. Com o marco dos seis meses de amamentação exclusiva atingido, isso apenas cresceu e me vi desejando ainda mais celebrar essa mulher e assim, de alguma forma, todas as mulheres que entregam seus corpos e uma quantidade assombrosa de energia para uma tarefa tão árdua quanto bela e importante.

Mas eis que outro desafio bate à porta, a introdução alimentar. E o sono do pequeno insiste em não engrenar. E de repente ele começa a ensaiar engatinhar (por enquanto só sabe passar a marcha à ré) e dias depois passa a bater palmas quando cantamos parabéns… E o danado do texto seguia emperrado até que ela me fez uma pergunta, uma que vira e mexe surge, sem motivação aparente.

“Dani, você acha que eu sou uma boa mãe?”.

Não sei precisar quantas vezes escutei essa pergunta desde o nascimento de Francisco, talvez umas seis, e em todas elas a minha resposta foi muito parecida, pois a verdade tem essa mania de ser simples: que ela estava fantástica, que eu não sabia como ela poderia ser melhor e que Francisco era um bebê sortudo demais por tê-la como mãe. Invariavelmente, ela chorava, eu chorava, nos abraçávamos e ela concordava comigo, mas duma forma ainda reticente “Eu sou, né?”. Mas dessa vez a minha resposta foi um pouco diferente.

Eu busquei a “A criança e o seu mundo” (Winnicott, 1957), que desde o inicio da gestação se tornou o meu livro de cabeceira e depois de o folhear apressadamente, parei na página 28 e disse que iria descrevê-la usando as palavras do grande pediatra e psicanalista:

“(…) o prazer que você pode extrair do complicado negócio de cuidar de uma criança é vitalmente importante do ponto de vista do bebê. O bebê não quer tanto que lhe dêem a alimentação correta na hora exata como, sobretudo, ser alimentado por alguém que ama alimentar seu próprio bebê”.
Winnicott continua, dizendo que quando a mãe sente prazer nos cuidados cotidianos do bebê, isso é como o “raiar do sol” para ele. Além de amar e saber expressar o amor em toda e qualquer ação de uma forma que eu nunca havia visto, Carol geralmente é a última pessoa que Francisco vê antes de dormir e a primeira que ele vê ao acordar, junto aos primeiros raios do sol (e algumas vezes mesmo antes dele!).

Quadro da artista Lissa Andrade – Bordados Livres 

Voltarei ao sol em breve, mas antes disso, preciso dizer que nunca interpretei essa pergunta como um sinal de fraqueza. Pelo contrário, vejo como um sinal inconteste de coragem e maturidade. Fraco sou eu, que tenho a mesma dúvida em relação a como estou me saindo como pai mas num misto de arrogância e medo bem masculinos geralmente permaneço caladinho.

Mesmo assim, fica a questão, por que tantas e tantas mulheres tão profundamente dedicadas à maternidade (mesmo quando o prazer se mostra escasso) se vêem rotineiramente imersas em sentimentos de insegurança e culpa? Que pressão brutal é essa que a sociedade joga nos ombros das mulheres-mães? Já abordei um pouco esse tema e vocês certamente encontrarão reflexões muito mais ricas feitas por mulheres nos links indicados acima, por isso não aprofundarei o assunto. Mas não posso deixar de comentar um ponto…

Toda e qualquer mãe e todo e qualquer pai estão fadados a falhar com seus filhos incontáveis vezes, por isso, não aconselho ninguém a pensar compulsivamente no assunto. Quem toma esse rumo corre um grande risco de encontrar desilusão e desespero ao invés de algum tipo de resposta ou alento.

Certamente, muitos pais também são ocasionalmente tomados por culpa e insegurança, no entanto, apenas as mães parecem se ver numa espécie de via crucis durante o primeiro ano da criança. Apenas elas são ostensivamente questionadas e culpabilizadas por toda e qualquer coisa e por toda e qualquer pessoa também. Enquanto as mães padecem no paraíso, parece que aproveitamos o mesmo cenário para tirar aquela foto caprichada com as/os filhas/os para postar no Instagram.

Finalmente voltando ao sol. O que me pareceu a princípio uma ótima ideia soou um tanto pesado no dia seguinte, afinal, ser o sol de alguém é uma responsabilidade e tanto. Mas ser mãe e ser pai é de fato uma responsabilidade gigantesca e fugir dela certamente não é a melhor coisa a fazer, em especial para as crianças. Faço aqui então um adendo. Mantenho a metáfora na condição de que Francisco desfrute de dois deles, como se o tal segundo sol da música de Nando Reis tivesse finalmente chegado. Claro, com a condição de serem dois sois cientes da sua força para gerar e para destruir e por isso mesmo, dispostos a uma afinada colaboração para a criação de necessárias sombras e sempre prontos para acolher e celebrar os dias nublados e chuvosos.

Uma relação assim requer esforço, parceria e especialmente, amor, respeito e confiança.

Carol, te admiro de uma forma que é até difícil de expressar, mas prometo que continuarei sempre tentando. Te ver amamentando Francisco é seguramente a coisa mais linda que já vi na vida. Testemunhar a força e a beleza da tua dedicação a ele muitas vezes me faz sentir pequeno e isso é bom.

Inspirado no lindo presente de Helena e Diogo e motivado pela minha incapacidade de transmitir tudo o que estou sentindo, peço licença ao grande Manuel de Barros, que você tanto ama:

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Obrigado por trazer este lindo delírio para a nossa vida. Obrigado pela confiança e pela parceria incondicional (inclusive lendo e me ajudando com os textos desta coluna, inclusive este!). E obrigado à vida por ter entrelaçado os nossos caminhos.

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