O Recife de Clarice Lispector na HQ Pedra d’água

A novela gráfica Pedra d’água, de Clarice Hoffmann e Greg Vieira é um livro que se lê com a imaginação sobre o Recife e com os olhos que acariciam as imagens publicadas..

A casa onde Clarice Lispector morou no Recife l Ilustração: Greg Vieira

Ao abrir a novela gráfica Pedra dágua, de Clarice Hoffmann e Greg Vieira, no belo trabalho de reconstituição de Clarice Lispector na sua infância do Recife, eu me lembrei de Ivan Lima no rádio, quando no começo de uma partida de futebol ele falava:

– Abrem-se as cortinas do espetáculo!

A lembrança se deu porque esse é um livro que se lê com a imaginação sobre o Recife e com os olhos que acariciam as imagens publicadas. Nele, o que mais se destaca? Isso seria o mesmo que perguntar: qual amor é maior, o de Clarice Lispector pelo Recife da sua infância, ou o sobre a Clarice que amava o Recife?  Sem ter uma resposta precisa, melhor destacar, primeiro, a ideia criadora, original de Clarice Hoffmann, ao buscar a Clarice Lispector do Recife em uma novela gráfica, que em vez de nova biografia, percorre alguns dos locais da escritora na cidade. Em segundo lugar, a criação de arte do senhor artista Greg Vieira, que desmonta preconceitos de grande artista ser impossível em quadrinhos. E olhem que estamos na terra de Abelardo da Hora, Lula Cardoso Ayres e de Cícero Dias. Em terceiro lugar, os voos da personagem Esther no Recife de antes, no tempo de Clarice Lispector, nas ruas e praça do Recife de hoje. São voos alicerçados na séria pesquisa da Clarice que é Hoffmann. 

É impossível não sofrer um impacto com as imagens pintadas por Greg Vieira. Nas primeiras páginas, vemos o Hotel Central, tão lindo, tão devolvido a seu caráter de afeto pela nova dona Rosa Nascimento. Este escritor, que não tem mais andado pelo Recife como gostaria de voltar a percorrê-lo todos os dias, viu-se de imediato conquistado pela lembrança da comida boa de Rosa Nascimento, por saber que nesse hotel morou o poeta Miró da Muribeca. Daí que posso recomendar a obra de Hoffmann e Greg   aos recifenses que hoje vivem no exílio, pois é sempre assim, recifenses longe da sua cidade se tornam exilados: vocês vão ter um aperto no coração ao reverem a cidade nas imagens de Greg. Na página 21, o artista faz uma homenagem com um retrato a Tarcísio Pereira, que foi dono da Livro 7. 

Imagem para o livro de Pedra D’Água, de Clarice Hoffmann, sobre Clarice Lispector I Ilustração Greg Vieira

Mas para os não-recifenses, ou que alguma vez estiveram na cidade, pois “quem é do Recife, quem já viveu no Recife, ou quem passou um tempo no Recife, sempre dirá: eu tenho um caso pessoal com esta cidade”, como escrevemos no Dicionário Amoroso do Recife, o livro vai como um imenso cartão-postal de recuperação. E sobre quem? A gente não sabe se mais para a cidade, ou se para Clarice Lispector, para a determinada Clarice da sua infância no Recife. Como Lispector bem falou numa entrevista, recuperada por Clarice Hoffmann no livro: “Pernambuco marca tanto a gente, que basta dizer que nada, mas nada mesmo nas viagens que fiz por este mundo, contribuiu para o que escrevo. Mas o Recife continua firme”. Ou aqui: “Depois minha lembrança é de – no andar ainda vazio de móveis – olhar pela varanda na Praça Maciel Pinheiro, no Recife, e ter medo de cair: achei tudo alto demais. A casa se acabou? Mas o nome da praça continua o mesmo, segundo me informaram. É capaz do hotel localizar-se no lugar onde era a minha casa. Que acabou, acabou, acabou. Era pintada de cor-de-rosa. Uma cor acaba? se desvanece no ar, meu Deus”.

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Eu morei naquele sobrado em 1978, quando o prédio se transformara em pensão. Que diferença entre o vivido por mim e o narrado por Clarice Lispector. Bem sei, de viva morada, quando morei no “sobrado da infância de Clarice Lispector”. Em 1978, o sobrado era um pardieiro de paredes úmidas e muitos quartos. Em 78 eu não sabia que ali havia sido a casa da infância de Clarice Lispector. Para mim, até hoje, ele é soturno e irrespirável. Entrar nele, lembro bem, era entrar como os condenados que depois de um dia fora das grades voltam à prisão. O lugar era segregador e irrespirável. Hoje, está pior, como mostra o desenho real de Greg.  

Clarice Lispector

Sobre esse lugar. Clarice Lispector escreveu a bela crônica Restos do Carnaval:  

“E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu…

No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem.

Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim”.

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O texto é uma crônica imortal, cuja beleza não se extrai do mundo externo, mas do que a escritora traduz da sua exclusão desse mundo, que gira em febre violenta nos três dias de carnaval. Na biografia Clarice, de Benjamin Moser, assim aparece a última vez em que Clarice Lispector voltou ao Recife da sua infância:

“Em 30 de maio de 1976, Clarice e Olga chegaram ao Recife… Ela se hospedou no Hotel São Domingos, na mesma praça Maciel Pinheiro, a pletzele (pracinha) onde passara a infância. A velha casa, em cuja sacada a paralisada Mania (mãe de Clarice) contemplava o mundo em seus últimos dias, e que a família tivera de abandonar por temor de que desmoronasse, seguia desafiando a gravidade. ‘O sobrado só mudou a cor’, disse Clarice. Ela se sentou nos bancos da praça e ficou ouvindo, arrebatada, o dialeto pernambucano característico dos vendedores de frutas”.     

É esse Recife de Clarice Lispector que volta no livro Pedra d’água. O roteiro de Clarice Hoffmann e Clara Moreira, nas imagens de Greg, bem que podia dar um filme. Em algumas páginas, eu senti esse filme. Naquele cinema que não para de rodar na memória de todos nós.

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