O pior incendiário não foi o pirômano

(tópico 7 da série “A causa de Milosevich também é nossa”)
 

Tão tenaz é a intoxicação mental imposta pela ditadura mediática do capital a tudo que concerne à União Soviética, que mesmo intelectuais honestos, com razoável cultura política e alguma simpatia pelo marxismo não encontram mais forte argumento para condenar a política externa do Estado soviético do que o pacto nazi-soviético de 1939, ocultando que constituiu a réplica, estrategicamente lógica, ao pacto liberal-nazista de 1938, concluído em Munique, entre Daladier, Chamberlain (chefes de governo respectivamente da França e da Inglaterra), Mussolini e Hitler, ao qual foi entregue a Tchecoslováquia, mais precisamente a Boêmia-Morávia e a Eslováquia (onde se instalou uma autoridade  vassala de Hitler). O governo soviético, a despeito do tratado de defesa mútua que havia assinado com o governo tcheco, foi mantido fora das negociações anglo-franco-ítalo-alemãs.


 


 


 


Ressalvada a boa fé de alguns que não estudaram nada e apenas repetem o que lhes disse o último guru anti-comunista a que deram eram ouvidos, qualquer estudo sério sobre a diplomacia das grandes potências européias entre 1936 e 1939 põe a nu a perfídia da diplomacia francesa e britânica, que se recusavam, recorrendo aos mais torpes artifícios, a concluir uma aliança militar defensiva com a URSS. É que, na verdade, estavam empenhadas em dirigir contra ela os ânimos guerreiros do expansionismo nazista.


 


 


Em contraste com essas manobras dos círculos dirigentes da burguesia européia, taticamente espertas, mas  estrategicamente estúpidas, já que contribuíram decisivamente para os planos de Hitler, permitindo-lhe levar adiante, em ritmo acelerado, o rearmamento alemão, os comunistas, que desde o início dos anos 1920 vinham enfrentando o fascismo, infligiram aos nazistas, em seu próprio terreno e no ano mesmo em que eles tinham chegado ao poder, sua primeira derrota política. O processo de Dimitrov, com efeito, mostrou com que firmeza os dirigentes do Komintern se comportavam quando caíam nas mãos do inimigo, mas sobretudo comprovou perante a opinião internacional (composta em larga medida, é verdade, do pior tipo de cego, o que não quer ver) que os próprios nazistas tinham incendiado o Reichstag, manipulando um doente mental, o holandês Marinus Van der Lubbe.  Apoiamo-nos uma vez mais na Historia social y política de Alemania, 1800-1950 de A. Ramos Oliveira, para tirar as conclusões a partir dos dados oferecidos pelos próprios técnicos da polícia alemã e confirmados no processo:


 


 


a- O incêndio começou em vários lugares ao mesmo tempo. Van der Lubbe era pirômano. Tinha já provocado três pequenos incêndios desde que chegara a Berlim. Mas não era mágico. Dois minutos e cinco segundos após ter entrado no Reichstag, o corpo central do edifício já estava em chamas. Incêndio demais para um tresloucado só.


 


 


b- A quantidade de combustível (gasolina principalmente) utilizada foi enorme,  sem comparação com a que Van der Lubbe tinha levado.


 


 


c- Todas as portas do Reichstag foram imediatamente bloqueadas pela polícia, que só prendeu Van der Lubbe. Prova de que agiu sozinho, a despeito dos fortíssimos indícios em contrário? Não: a polícia não bloqueou uma galeria subterrânea de calefação que punha em contato o sub-solo do edifício com o palacete do presidente do Parlamento da Prússia, cargo ocupado então por um certo Hermann Goering. Por ali passaram os incendiários e para lá fugiram cumprida a sinistra empreitada.


 


 


Megalômano, como tantos outros oligofrênicos, o pobre Van der Lubbe achou que tinha feito tudo sozinho. Contribuiu assim, involuntariamente, para camuflar a ação dos verdadeiros incendiários. Condenado à morte e rapidamente executado, morreu sem saber que tinha sido apenas um inocente útil1. Ou, como disse Dimitrov em carta de 12 de outubro de 1933, dirigida ao presidente da IV Seção Penal da Corte do Reich: “Van der Lubbe nesse processo pode ser chamado o Fausto do incêndio do Reichstag e, sem a menor dúvida, por trás dele movia-se então o Mefisto do incêndio do Reichstag. Mefisto desapareceu e o miserável Fausto ficou só diante da Corte do Reich”2. É altamente provável que Dimitrov, em seu foro íntimo, estivesse já convencido de que o Mefisto em questão se chamava Hermann Goering. Mas dizer isso, naquele momento, sem qualquer prova material, só iria prejudicar sua defesa. Soaria como provocação.


 


 


Dentre os muitos momentos dignos de registro no processo de Dimitrov, os mais célebres são os de seu confronto com Goering, que compareceu na qualidade de testemunha, com o objetivo de se exibir ao mundo inteiro esmagando o prisioneiro comunista. Este, juntando a audácia de quem se considerava homem morto, ou no melhor dos casos, inquilino perpétuo dos campos de concentração, a um insuperável talento de polemista alimentado por inteligência incomum, estragou a festa do presidente do Conselho e ministro do Interior da Prússia. Concordamos com Ramos Oliveira:


 


 


A conduta do revolucionário búlgaro causou assombro.  Tamanha audácia salvou Dimitrov, porque num par de dias sua figura atraiu para si a atenção universal e ficou mais difícil para os nazistas eliminá-lo sem escândalo. Dimitrov se considerava perdido […] conhecendo o que o esperava, decidiu antecipar-se à crueldade nazista pondo no ridículo o sistema e Goering3.  


 


Goering compareceu no tribunal no dia 4 de novembro de 1933. Desde o início de seu depoimento, Dimitrov passou à ofensiva, mostrando as contradições entre as declarações do Mefisto e os depoimentos de outras testemunhas. Este, derrotado na batalha da inteligência,  não tardou a mostrar o porrete. A Dimitrov, que insistia na mais do que suspeita rapidez com que, apenas declarado o incêndio, haviam começado as prisões de comunistas, vociferou, desfazendo-se do verniz de compostura: “[…] eu estava convencido de que era preciso buscar os criminosos em vosso (dirigindo-se a Dimitrov) partido. (Ameaçando Dimitrov com o punho e berrando): Vosso partido é um  partido de criminosos e deve ser suprimido!”. Sem se intimidar, Dimitrov elogia a União Soviética e diz que os melhores filhos do povo alemão são comunistas. Goering berra mais alto: “Vou lhe dizer o que o povo alemão sabe. […] que o senhor se conduz aqui de maneira insolente e que o senhor veio aqui para tocar fogo no Reichstag. […] O senhor não passa de um malfeitor que deve ser enforcado bem alto com corda curta”. O Presidente da Corte retira a palavra a Dimitrov. Enquanto os policiais o agarravam, este ainda teve tempo de perguntar  a Goering (que continuava berrando: “Fora, celerado!”): tem ainda tempo de interpelar: “O senhor provavelmente tem medo de minhas questões, senhor Presidente do Conselho”. O outro replica, furibundo: “Presta atenção, toma cuidado, vou acertar as contas assim que V. sair da sala de audiência! Celerado!” (4)


 


 


Também Goebbels, que assumira o Ministério da Propaganda do gabinete chefiado por Hitler, compareceu ao tribunal para prestar depoimento no dia  8 de novembro. Entre outras questões e ponderações, Dimitrov observou ao depoente que  terrorismo era uma especialidade dos nazistas: “Durante o outono de 1932, quando Papen e, depois dele, Schleicher, foram chanceleres do Reich, toda uma série de ataques e atentados com explosivos foi cometida. Houve processos e pronunciaram-se condenações à morte para certos nacional-socialistas”. Goebbels tenta sair pela tangente: “É possível que provocadores tenham sido enviados […] ao seio do partido (nazista) para cometer tais atentados”. Dimitrov lembrou então que Hitler tinha felicitado solene e ostensivamente membros de seu partido condenados à morte por assassinato e que, logo ao chegar à chefia do governo, decretou anistia geral para todos os nazistas presos por terrorismo. Goebbels respondeu que seu governo não podia deixar na prisão “homens que, arriscando a vida e a saúde, tinham travado a luta contra o perigo comunista”5. Mesmo raciocínio, no fundo, que o das autoridades estadunidenses ao libertar o arqui-terrorista Posadas Carriles.  


 


 


 


Notas


(1)   A. Ramos Oliveira, op.cit., pp.236-237.


(2)   Georges Dimitrov, Oeuvres Choisies, volume I, Sofia-Presse, 1972, pp. 406-407.


(3)   A. Ramos Oliveira, op.cit., pp. 238-239.


(4)   Resumimos Dimitrov, Oeuvres Choisies, ib., pp. 415-420.


(5)   Resumimos ib. pp. 421-429.


 


 


(continua)


 

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