O movimento estudantil volta a um passado perdido?

Me gustan los estudiantes, porque son la levedura
Del pan que saldrá del horno, com toda su sabrosura
Para la boca del pobre, que come com amargura
Caramba y zamba la cós, viva la literatura



(Violeta Parra, em Me gustam los estudia

No ano em que se rememoram os trinta anos dos protestos estudantis contra os desmandos do governo militar, quando milhares de estudantes se manifestaram nas universidades e foram às ruas, em 1977, em luta pela anistia dos presos políticos, resultando em prisões e vários feridos, estudantes de várias partes do Brasil retornaram a cena política e social.


 


Naquele ano, numa espécie de ante-sala de outros movimentos, em especial dos sindicalistas do ABC, os estudantes também bradaram a palavra de ordem pela Anistia. Em 30 de março, em São Paulo, ocorreu a primeira manifestação estudantil fora do campus, através de uma passeata de cinco mil estudantes, que seguiu do campus da USP até o Largo de Pinheiros sob vigilância de forte aparato policial.  Era um ensaio para as concentrações que os estudantes fariam no mês de maio, reunindo milhares de pessoas, enfrrentando o aparato policial montado pela repressão, na conjuntura pré e pós Pacote de Abril de 1977, dando início à Jornada Nacional de Luta pela Anistia.


 



As manifestações de São Paulo foram o marco para o movimento que se expandiu para todo o País. Em 4 de junho, trinta anos atrás, houve a tentativa de realização do 3º Encontro Nacional de Estudantes, em Belo Horizonte, com a prisão de mais de 400 estudantes, delegados eleitos em todo o País, após 11 horas de cerco policial da DOPS ao campus da UFMG.


 



O tiro da repressão saiu pela culatra: em São Paulo, mais de mil universitários das universidades paulistas se declararam em greve de protesto  contra o governo por impedir o evento na capital mineira. Os estudantes, não entendiam as forças policiais que mantinham a Ditadura Civil-Militar, eram a ponta de um iceberg de outros movimentos que expressavam a crise do regime. Em finais de setembro, a censura e a repressão pouco podem fazer e os estudantes realizam, na PUC/SP, o seu 3º Encontro Nacional. No primeiro dia, em 22 de setembro, a polícia, comandada por Erasmo Dias, invadiu o campus e deteve 2 mil estudantes, resultando em vários feridos e cinco moças gravemente queimadas por bombas de efeito moral.


 



Dali em diante não haveria mais como a Ditadura segurar os movimentos, iniciados pela luta em defesa da Anistia, na qual os estudantes mais uma vez foram linha de frente. Cerca de dois anos depois, em 29 de maio de 1979, iniciava o 31º Encontro Nacional de Estudantes em Salvador-BA, para reconstrução da UNE.


 



Passaram-se trinta anos desde 1977. Atualizando suas reivindicações e trazendo à tona demandas em torno da defesa da Universidade Pública, Gratuita, Estatal e de Qualidade, em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras importantes cidades, novamente os estudantes voltam a se manifestar no interior dos campi e nas ruas do País.


 



Em 3 de maio, passados um mês do movimento da UNICAMP, cerca de 400 estudantes também ocuparam a reitoria da USP, contra os decretos do governador de São Paulo. O movimento estudantil organizado se contrapõe à tentativa da retirada de milhões de verbas das universidades estaduais paulistas e se coloca contra a tentativa da quebra da autonomia administrativa que procura submeter às Instituições Estaduais de Ensino Superior daquele estado a uma secretaria de ensino superior do governo.


 


 


 
A ocupação na USP vem reforçando a tendência de mobilização dos estudantes contra o sucateamento das universidades e as políticas educacionais que estão levando o sistema de ensino superior público para a lógica do mercado e que tem resultado na precarização dos prédios administrativos e de moradia estudantil, na falta de professores e de recursos estatais para o ensino, a pesquisa e a extensão, etc.


 



Em 29 de maio, estudantes do Campus de Presidente Prudente da UNESP deliberam pela ocupação da diretoria do campus por tempo indeterminado, assim como a paralisação dos serviços administrativos (direção, vice, graduação, comunicação e finanças).


 



Santa Maria, uma cidade de longa tradição estudantil, de onde têm saído lideranças nacionais e históricas, não ficou de fora. No dia 30, após assembléia estudantil, a categoria com mais de cem estudantes decidiu ocupar a reitoria da UFSM. Dezessete entidades do Conselho de Entidades de Base (Diretórios Acadêmicos e Casas dos Estudantes), mais os Projetos Populares de Extensão, Práxis e Alternativa, e o Diretório Central dos Estudantes organizaram a atividade. Todos estes movimentos foram desdobramento de protestos ocorridos nos dias 24 e 25, na semana anterior, os quais vêm refortalecendo o movimento estudantil local, que cresce e ganha corpo dentro da Universidade.


 



Em 5 de junho foi a vez dos estudantes da UFRGS ocuparem a Reitoria, questionando a Reforma Universitária do Governo Lula, defendendo as ações afirmativas com a implementação do sistema de cotas e a organização da documentação dos expurgos durante a Ditadura pós-1964.


 



A repercussão dos movimentos dos estudantes tem retomado velhos debates sobre o caráter do movimento estudantil. Desde a opinião conservadora que os identifica como baderneiros quanto seu oposto, de que o movimento retoma a tradição perdida dos estudantes mundiais e brasileiros da década de 1960 ou da geração do “Fora Collor”.


 



Retomam-se clássicos argumentos sobre o caráter do movimento estudantil em torno da sua fluidez e efemeridade, que impossibilitaria a ação política de longo prazo, do ardor juvenil e da sede de justiça da juventude e da sua caracterização como um fenômeno de segundo plano nos movimentos sociais e políticos. Ora, qualquer estudo um pouco mais aprofundado sobre os movimentos estudantis desmente tanto a visão conservadora quanto a visão romântica de esquerda.


 



Na formação social brasileira os estudantes desenvolveram várias formas de organização, marcados pela atuação individual nos fins da Colônia e início do Império e pela organização coletiva entre o Segundo Império até o início do Estado Novo (através de sociedades acadêmicas e com atuação cultural e intelectual). Depois, veio a atuação organizada (desde a criação da UNE, em 1937) e a ação clandestina (após o AI-5 até meados da década de 1970, inclusive com passagem pela luta armada contra a Ditadura Civil-Militar). Por fim,  temos a fase democrática, iniciada pelas passeatas de 1977, passando pela reconstrução da UNE em 1979 e vindo até a atualidade (destacando-se a campanha pela Anistia, a luta pelas Diretas-Já, pelo Impeachment de Collor e contra o Neoliberalismo).


 



Portanto, se algo é passageiro nos movimentos estudantis e de juventude é a atuação individual, pois, esta pertence a uma fase da vida de cada um.


 



No mais, existe uma continuidade de longa duração do movimento que, obviamente tem momentos de fluxo e refluxo, devidos a fatores conjunturais e relacionados às condições específicas do ensino. Se não, como entenderíamos os momentos expressivos do movimento estudantil no Brasil, nos quais esteve na linha de frente de movimentos políticos mais amplos: a campanha para a entrada na guerra contra o nazi-fascismo, na década de 1940; a campanha pelo estabelecimento do monopólio estatal do petróleo, nos anos 1950; os protestos contra a Ditadura Militar e a luta armada contra a mesma entre 1960 e 1970 e; o “Fora Collor”, na década de 1990.


 


Todos estes processos foram intercalados por momentos de aparente apatia.


 



Como entender as manifestações que vão e voltam, com palavras de ordem contra o imperialismo e a soberania nacional, pela universidade pública e gratuita, autônoma e democrática, se não pela ótica de que o movimento estudantil, sem maior ou menor grau, faz parte da linha de frente dos movimentos sócio-políticos?


 



Fora desta compreensão, resta, de um lado, o espanto e a incredulidade quando os estudantes retomam as manifestações e, de outro, as apressadas opiniões sobre o esgotamento do movimento estudantil, quando diminui a aparição pública dos mesmos.


 



Como chamá-los pejorativamente de baderneiros quando suas reivindicações têm sido históricas e seriamente importantes? Ou, atrás desta depreciação não estaria uma visão elitista que criminaliza os movimentos sociais e procura desqualificar os estudantes para que se restrinjam às salas de aula, sendo apenas objetos de um ensino individualista e tecnicista que procura afastá-los da cidadania plena, isto é, civil e política, individual e coletiva?


 


Os movimentos estudantis, mundo afora, têm demonstrado que sozinhos, por mais importantes que sejam, restringem suas pautas à educação, como se esta fosse uma ilha isolada da sociedade. Em lutas maiores, são aliados fundamentais dos movimentos de trabalhadores e outros, sem que, necessariamente, estejam indo para o paraíso.


 



As manifestações estudantis têm mantido na pauta as reivindicações da grande política, em especial contra a política macroeconômica do Governo Lula, bem como a defesa do fortalecimento da Universidade Pública, Gratuita, Estatal e de Qualidade.


 


Aqui se destacam: a defesa de sua expansão sem contingenciamento de verbas, com contratação de professores e técnico-administrativos; a construção de um Plano Nacional de Assistência Estudantil; a manutenção da indissociabilidade do tripé constitucional ensino, pesquisa e extensão; o fortalecimento de sua democracia interna e a autonomia didático-pedagógica, administrativa e de gestão financeira.


 



No ano em que lembramos os 70 anos da UNE, os estudantes continuam dando respostas negativas a um mundo distópico e têm aprendido que a geração de 1968 foi apenas mais uma marca daquele contexto histórico das lutas sociais e estudantis. Portanto, têm se afastado de uma visão romântica de um passado perdido que não serve de referência crítica para as mudanças do presente.


 



Por tudo isso, com as movimentações dos últimos dias que têm um pé no presente e outro no futuro, e mais uma vez parafraseando Violeta Parra: como gosto dos estudantes que rugen como los vientos, cuando lês metem ao oído sotanas de regimientos, pajarillos libertários igual que los elementos, caramba y zamba la cosa, que vivam l’experimentos.


 



Bibliografia Básica sobre Movimento Estudantil


 



– ALBUQUERQUE, José A. Guilhon. Movimento estudantil e consciência social na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 1977.
– COIMBRA, Marcos Antônio. Estudantes e ideologia no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
– FÁVERO, Maria de Lourdes de A. A UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1995.
– MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditadura militar – 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987.
– MENDES JR, Antônio. Movimento estudantil no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1981.
– POERNER, Artur José. O poder jovem. História da participação política dos estudantes brasileiros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
– RAMAGNOLI, Luiz Henrique; GONÇALVES, Tânia. A volta da UNE. De Ibiúna a Salvador. História imediata, nº 5. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.
– 60 anos a favor do Brasil. São Paulo: UNE, 1997.

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