“O Libertino”: O golpe da arte no poder

A arte como instrumento de poder e não para ser usado pelo poder é o centro desse filme do diretor inglês Laurence Dunomore

Arte e poder quando caminham juntos é porque um precisa do outro para se sustentar. A primeira por necessitar de um mecenas e de reconhecimento de sua contribuição para a identidade nacional, o segundo para não ser espelhado de forma visceral, sendo colocado muitas vezes a nu. Mas, na maioria das vezes, há mais atritos, censura, prisões e desterros do que harmonia. “O Libertino”, do inglês Laurence Dunmore, o confirma: a arte é o espelho do poder e este o alimento que o eterniza. Principalmente se usa os instrumentos mais eficazes para atingir seus objetivos. Não precisa ser uma denúncia de corrupção ou um escândalo na corte ou nos corredores republicanos. Pode ser apenas uma sátira pornográfica que escandalize a corte e a nobreza e seu intento estará alcançado.
         


Este expediente tem sido usado ao longo dos séculos pelos autores mais criativos. John Wilmont (1647/1680), Segundo Conde de Rochester, de espírito inquieto chocou a nobreza inglesa do século 17, com seus poemas e peças que tratavam do erotismo e, muitas vezes, da pornografia para desnudar as entranhas da corte daquela época, pré-revolução industrial. Sua relação com o poder está baseada em sua posição na nobreza, que o permitia participar das sessões da Câmara dos Lordes, onde expunha suas posições nem sempre ortodoxas. Com um comportamento igual a este não é à toa que acabasse banido pelo Rei Charles 2 (John Malkovich) por um tempo, para se acalmar.
         


As relações políticas, porém, nem sempre caminham em linha reta. São cheias de circunvoluções, atalhos e picadas. Com as relações entre Inglaterra e França entrando em rota de colisão, Charles 2 decide usar Wilmont para agradar ao embaixador francês e, assim, evitar um conflito que não lhe interessava. E, para tanto, o encarrega de escrever uma peça que reforçasse a capacidade dramatúrgica inglesa, influenciando ao francês, mas também lhe dando a oportunidade de reconciliar-se com consigo, o rei. Wilmont (Johnny Depp) não é, no entanto, daqueles criadores que aceitam fazer o jogo do poder, simplesmente para atender a um chamado de um governante que o persegue e livrar a própria pele. Decide fazer as coisas à sua maneira.
         


É neste ponto que entram alguns aspectos interessantes, embora um deles, sua relação amorosa com Elizabeth Barry não seja aprofundada, seja por demais frágil. O primeiro é a decisão de Wilmont de usar o sexo para chocar e atrair a atenção para si e os problemas que enfrenta com o Rei Charles 2. Não com insinuações, cenas veladas, mas com algo que mostrasse a relação sexual em sua inteireza. Com isto, chocaria o público e desmascararia as tendências libertinas não só da nobreza à qual pertencia, como também desnudaria a devassidão da corte e, portanto, do rei. Com base em sua peça “The Libertine”, o roteirista Stephen Jeffreys tece comentários desairosos sobre a corte inglesa no século 17, mostrando-a mais interessada nos prazeres do que na condução dos negócios do Império. Dunmore mostra estas ações sem, no entanto, se valer de quaisquer cenas que mostre nudez ou relação sexual. A devassidão fica mais na cabeça do espectador do que nas seqüências do filme.
         


Jeffreys o faz centrando a ação em Wilmont, cuja riqueza era administrada pela mãe, enquanto ele dela desfrutava. E a forma de chamar atenção para isto era retratando sua devassidão. Wilmont é deveras libertino. Jeffreys e Dunmore ressaltam isto ao abrir o filme com um prólogo em que Wilmont/Depp diz com todas as letras: “vocês não vão gostar de mim”. Suas ações durante todo o filme confirmam suas palavras: ele é, na verdade, asqueroso, devasso, libertino e erotonamo. Trata as mulheres como mero instrumento de prazer, como na cena em que bolina a própria mulher e depois se mostra indiferente. E não só isto: trata o criado como um ser desprezível, por mais que o tenha retirado da rua e seu passado não seja recomendável.
         


É esse personagem que atravessará os 114 minutos do filme saindo do banimento temporário para a bajulação do rei e daí para a decadência completa, física, moral, e de paixão. A forma como reage ao tratamento que o rei lhe dá é indo para a Câmara dos Lordes e mostrar-lhe que, quando quer, pode ser um poderoso aliado e salvar a cabeça do monarca. O que conta, no entanto, em sua ação é a forma que utiliza sua arte, reconhecida depois de sua morte, aos 33 anos de idade, de doenças desgenerescentes. O que fica de sua obra é justamente a força como ele a usa para denunciar as mazelas do poder.
         


Este entrecho do filme é poderoso, reforçado pela bela fotografia de Alexander Melman em tons escuros, que ressaltam a obscuridade e o clima decadente da corte inglesa no século 17. Wilmont parece, a todo momento, um ser que brota das trevas para caminhar pelos espaços iluminados a vela. Ali joga, pratica intrigas, humilha seu concorrente nas artes, o dramaturgo George Etherege (Tom Hollander), seu criado Alcock (Richard Coyle), sua mulher Elizabeth Malet (Rosamund Pike) e usa sexualmente a camareira Jane (Kelly Reilly). Não é, como se vê, flor que se cheire.
         


Notadamente se quem o interpreta é Johnny Depp, ator que a cada interpretação se revela mais genial.Talvez o único de sua geração que alcance tal magnitude, por saber transitar de um personagem bizarro para outro menos carregado, deixando claro que se trata de um personagem. Mas Wilmont/Depp é o ponto de ligação do personagem com o público, relacionando-o com a realidade da corte inglesa do século 17. Transmite a percepção de que o poder precisa da arte para evitar choques, porém o quer fazer sem concessão. Quer, enfim, obter dividendos, sem perder o controle. E Wilmont acaba punido por isto, não apenas por ter usando a pornografia para mostrar o quanto o poder estava podre, por um mero descuido de comportamento, emoção e sentimento. Apaixona-se pela atriz ascendente, Elizabeth Barry (Samantha Morton), e toma-a para protegida. Essa paixão é, no entanto, o ponto fraco do filme.
                


Em momento algum a relação entre ambos se torna arrebatadora ou põe em risco o casamento de Wilmont com Elizabeth. Jeffreys e Dunmore não a trabalham. São poucos os momentos entre eles. Há muito falatório, herança da adaptação da peça para o cinema, que poderia ter sido acentuado, para justificar melhor o arrebatamento de Wilmont por Barry. Há apenas diálogos falando sobre isso e cenas de solidão e afastamento de Wilmont, em sua sala, tentando escrever um poema. A moça, jovem, insegura em princípio mostra-se inteligente ao não querer fazer o seu jogo e não o procura. Sua decadência visível desde o início acentua-se a partir do fracasso da relação e ele tenta suprir essa carência com uma volta triunfal à política e o faz com dignidade. A arte desvia-se do poder, para continuar livre para retratá-lo da forma que achar melhor.
               


Wilmont, num curto e instigante diálogo com Charles 2, lhe diz que defender a retirada do projeto de incentivo à arte não foi uma atitude para ajudar o monarca, mas para agradar a si próprio. A arte, enfim, não existe para agradar aos poderosos, existe sim para ser o espelho de suas mazelas, falhas e manipulações. Daí o contínuo atrito, pois seu tempo nunca coincide com o da política. A história está cheia desses exemplos. Reside aí a contribuição do esquecido John Wilmont, resgatado nesse inconcluso “O Libertino”. Dá para assistir e pensar como isto se dá ainda hoje no planeta, quando o neoliberalismo e a globalização transformaram-na em simples mercadoria para consumo.


         
“O Libertino” (The Libertine). Inglaterra, 2005, 114 minutos, 16 anos. Roteiro: Stephen Jeffreys, baseado em peça de sua autoria. Direção: Laurence Dunmore. Elenco: Johnny Depp, Samantha Morton, John Malkovich, Rosamund Pike, Kelly Reilly.  

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