O futebol que é o anti-futebol

Costumo dizer que não se tem uma ideia nova impunemente. As invenções fundamentais à Humanidade já foram pensadas há anos, de sorte que, toda vez que alguém se propõe a um novo lampejo, a civilização regride séculos. Aliás, a palavra de ordem verdadeiramente revolucionária e contemporânea é “por um mundo sem novas ideias”.

Mas o Ministério Público pensa o contrário e é cada vez mais pródigo em inovar. A coqueluche da vez é a torcida única em jogos de futebol, a bem da segurança pública, sempre ela.

Teremos, pois, no domingo, dói muito dizer, um clássico com torcida única. Quando digo "clássico", assim a frio, não estou contribuindo para o entendimento da gravidade da coisa. Trata-se de um Palmeiras X Corinthians – nada menos que o maior Derby do país, a maior rivalidade de todo o Globo. O jogo seria no Parque Antarctica e eu, palmeirense devoto, já havia hipotecado a alma por uma vitória. Mas agora não haverá mais jogo, será praticado qualquer outro esporte que não o das multidões.

O prego que faltava no ataúde do garoto futebol foi martelado, como era de se esperar, por um dos mais exibicionistas, afetados e vigilantes promotores do MP – aquele mesmo de sempre. Também jogaram seus montinhos de terra sobre o cadáver a FPF, o presidente do Palmeiras, que não cansa de nos envergonhar, a PM, dentre outros.

Mas os atos contra o esporte do povo não são desconexos e compõem um grande enredo de higienização. O pretexto é quase sempre a segurança – muleta a justificar quaisquer desmandos -, mas o que se pretende é atingir o objetivo subalterno da teatralização do futebol, chegar ao espetáculo, tão ao gosto da colonizada elite nacional.

Depois de acabarem com os estádios meio a meio, depois de aposentarem a fórmula Pacaembu (Tobogã para o visitante), depois de reduzirem o visitante a algumas testemunhas, agora saíram com o arbítrio total: torcida única. A fina-flor da babaquice aplaude a supressão de mais um direito elementar da cidadania e nem se pergunta quando vai chegar a sua vez de dançar também.

Vale lembrar que o mesmo promotor quis proibir aglomerações na frente do Palestra Itália, restando ao torcedor (de teatro, claro) teletransportar-se para a segurança inexpugnável do seu assento numerado.

Mas o que mais indigna é nossa incapacidade de reação. Ao torcedor paulista, em particular, tudo foi proibido: cerveja no estádio, cerveja no entorno do estádio, cerveja longe do estádio, sanduíche de pernil, espetinho, bandeiras, baterias, fogos de artifício, faixas de protesto, faixas de apoio também. Tudo. A sanha persecutória no triste estado de São Paulo não encontra limites. E, caso encontre barreiras no bom-senso, o vigilante Ministério Público estará em regime de plantão para transpô-las. A pedido de quem, legitimada por quem essa instituição deu para se intrometer em todas as frestas da vida pública e privada, isso nunca vai se saber.

A verdade é que em São Paulo proibir é “cult”, dialoga com a classe média, dá votos. E, de proibição em proibição, vamos caminhando alegremente para o cadafalso.

Falta-nos autoridades com coragem para bater de frente contra o senso-comum proibicionista. Gente que pegue em armas contra o preço escorchante do ingresso, a cobrança ainda mais abusiva ao visitante, que se bata contra a insanidade de instituir a torcida única – que é transformar o futebol numa dança com a irmã. Gente que tenha engulhos ao ouvir a palavra “arena”.

Gente que não tenha medo da polêmica e lute não pela volta da cerveja, mas pela volta da cerveja, do rabo de galo, do conhaque de alcatrão, de tudo – pelo simples motivo de que é um direito que se perdeu. Gente que defenda o sanduíche de pernil, com e sem salmonela, pelo simples motivo de que é outro direito que foi arquivado no escaninho de algum burocrata.

Enfim, gente disposta a lutar pelo futebol e por tudo o que ele representa, dentro e fora do estádio. Ou estaremos à mercê de mais uma ideia nova: o futebol que é o anti-futebol.

Em tempo: A diretoria do rival recorreu quanto à proibição. Pelo bem de todos nós, torcedores, espero que vençam a batalha fora das quatro linhas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor