“O Farol”: Para além do terror

“As motivações de dois homens para se isolarem num farol em alto mar revelam as visões do cineasta estadunidense Robert Eggers sobre o poder”

Numa emblemática sequência deste “O Farol”, o jovem Ephraim Winslow (Robert Pattinson) revela ao seu superior Thomas Wake (Willem Dafoe) que aceitou trabalhar apenas pelo dinheiro no farol instalado numa ilha em alto mar na costa da Nova Escócia, em 1883. Nada mais o ligava à sua cidade de origem. Irascível e não dado a revelações, Wake se limita a ouvi-lo e lhe impor novas tarefas. Com este aparente desencontro, o cineasta estadunidense Robert Eggers introduz outro tipo de mistério numa narrativa com apenas dois personagens em cena por 107 minutos.

Eggers não constrói sequer uma trama para manter o espectador atento ao que se desenrola na tela. O espaço em que Winslow e Wake se movimentam é exíguo, ficam todo o tempo um diante do outro. Não há entre eles sequer uma espécie de mesa para as refeições. E, além disso, Wake procura impor sua autoridade ao jovem, exigindo dele submissão e pronta execução das tarefas no farol. Winslow, a partir daí, será o pau-mandado sem direito inclusive de descansar. É em torno desta configuração de poder que Eggers discute as ideias de ambos sem perspectivas de acordo.

Ao contrário de Winslow que busca se fazer entender, o experiente marinheiro se fecha feito ostra. Nada se sabe sobre ele, é uma verdadeira incógnita. Está sempre a esbravejar e exigir que esta ou aquela tarefa seja executada mesmo em plena madrugada. Neste “O Farol”, são os personagens que ditam o ritmo da narrativa. Vê-se em toda sequência, Winslow se movimentar pelos estreitos espaços do altíssimo farol. Sua jornada diária de trabalho é imposta por Wake, de forma a não lhe dar qualquer chance de escapar ao seu controle por vinte e quatro horas.

Há mistério em torno de Thomas Wake

Com esta estruturação dramática, Eggers demarca dois espaços por onde Winslow se move. O primeiro é logo identificado pelo espectador, porquanto lhe cabe mantê-lo limpo e observar o avanço de navios à distância. É o que lhe cobra Wake, cuja tarefa desconhece, inclusive como foi parar ali. Desta forma, a dupla de irmãos roteiristas, Robert e Max Eggers, aumenta o mistério ao redor dele. Não se sabe o que ele faz para continuar a ser o chefe do farol. Há, contudo, algo que o denuncia desde o início: o silêncio sobre o que há na elevação à beira mar.

Esta é forma de Eggers introduzir o suspense e o mistério sem chamar atenção para o que lá existe. Na maioria dos filmes de terror, o/a personagem central sempre é atormentado/a por algum fato, o/a morto/a que o/a persegue ou o/a atormenta ao transformar seus sonhos em pesadelos. Noutra variação menos clichê, o próprio demônio se apossa do feto e torna a vida da futura mãe um inferno (O Bebê de Rosemary / 1968)”, de Roman Polanski (1933). É também o modo de a dupla Eggers construir dois centros de ação: I) O farol; II) A elevação à beira-mar.

O espectador que ânsia por suspense e terror se vê numa narrativa de filme de mistério, sem qualquer psicologismo. E a relação entre Winslow e Wake só deteriora. Este é, na verdade, o centro de toda a construção dramática deste “O Farol”. Egger desde o início o escancara. Wake se tornou um tirano, atormentando cada vez mais o já sobrecarregado subalterno. Ele simboliza o poder e o subalterno o explorado, deixando-o cada vez mais claro. Torna-se doentio, obcecado, perseguidor, enquanto o jovem passa a se insurgir tornando-se igualmente violento.

Filme não é sobre espíritos e danações

O poder em disputa, no entanto, não lhes parece destituído de atrativos, Ao seu modo, Winslow confia no lhe prometeram ao contratá-lo. A questão é saber qual será o ganho de Wake. Ele continua uma esfinge, não lhe dando chance de o subordinado, transformado num escravo, entender suas razões de estar ali por décadas e nada revelar sobre isto. Seus interesses escapam ao jovem. Egger, por outro lado, reforça o conflito entre seu chefe e ele. O espectador, contudo, se vê preso às trocas de farpas e xingamentos entre eles e a crescente aterrorizante violência.

Com estas matizações, a dupla Egger desfaz os clichês dos filmes de mistério e suspense. Tanto o marinheiro e chefe do farol quanto seu subordinado atestam a capacidade de o ser humano ser capaz de subjugar o outro e este, com o tempo, aprende a se defender e a responder à altura. Este “O Farol” é sobre isto, não a respeito de espíritos e danações. Principalmente ao retomar em seguidas sequências o confronto entre Wake e Winslow. O próprio espectador entende ser o confronto entre o explorado e o oprimido, como tantos outros ao longo dos milênios.

O farol acaba sendo o símbolo do que permanece ao longo do tempo. Torna-se o guardião dos fatos não revelados ou investigados. O jeito como Wake não permite Winslow se aproximar da praia diz muito sobre o que ele guarda para si. Daí a impressão do espectador que toma estes flashes, e não passa disto, como o que revela quem de fato Wake é. Nisto se constitui a transformação do mistério em algo mais concreto, não revelado pela dupla Eggers. Não é o terror ou o horror visto nos filmes hollywoodianos, é a transformação do espectador em um reflexivo ser.

Contam muito as interpretações de Willem Dafoe e Robert Pattinson

Conta muito para estas impressões a utilização da tela sem bordas, na medida de 1.19.1. Com isto toda a atenção do público se concentra mais no centro onde a ação se desenvolve. As bordas desviariam sua atenção para detalhes sem importância para a narrativa, as construções dramáticas e as motivações dos personagens. Surge então o motivo de Eggers ter preferido rodar seu filme em preto e branco, centrando-se apenas no que interessa à sua elogiada abordagem na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela do Festival de Cannes de 2019.

Tanto que no desfecho, o espectador respira aliviado ao entender a reação de Winslow às atitudes de seu chefe. As sub-reptícias motivações de Wake não conseguiram soterrar seu próprio e nefasto passado. Eggers dá o retoque final a este “O Farol”, sem mostrar-se maniqueísta ou criar o justiceiro a agir por conta própria. Mesmo assim, Winslow deu-se conta do que seu chefe deixava de representar para ele. Muito mais pelo término do sacrifício de ter de subir e descer as perigosas escadas do farol.

Contam muito neste “O Farol” as interpretações de Willem Dafoe, como o ensandecido e cruel Thomas Wake, e Robert Pattinson, como o insubordinado e incansável Ephraim Winslow. São personagens fortes a preencher espaço para além de si mesmos. As subidas e descidas do faz-de-tudo pelas escadas do farol dão a dimensão da crueldade com que foi tratado por seu chefe. E como foi capaz de olhá-lo de forma diversa a de seus antecessores. Pelas vias da dialética, o mal acabou por incentivar a produção do remédio a ser usado contra si mesmo, com igual crueldade.

Willem Dafoe traduz com nuances o mal absoluto

Enfim uma obra a ser vista sem a preocupação de enquadrá-la num gênero específico, quando o objetivo da dupla Eggers é justamente fugir a ele. Ao centrar sua narrativa em dois centros de ação, um deles serve para reforçar o que devia continuar uma incógnita para não revelar o que de fato representava Wake para Winslow. E, sobretudo, elaborar um desfecho de grande impacto e catarse para o espectador. Willem Dafoe traduz com criatividade e nuances o mal absoluto a amedrontar não só Winslow com seus gritos como ao próprio espectador. O terror está nele concentrado.

O Farol (The Lighthouse). Mistério. Drama. EUA, Canadá. 2020. 109 minutos. Preto e Branco. Ficha Técnica: Trilha Sonora: Mark Korven. Fotografia: Jarin Blaschke. Edição: Louise Ford. Roteiro: Robert Eggers, Mark Eggers,. Direção: Robert Eggers. Elenco: Willem Dafoe, Robert Pattinson, Valeria Karaman.

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