“O Escândalo”: Quando a mulher diz não

“A partir de fatos reais, o cineasta estadunidense Jay Roach escancara o assédio sexual a que o CEO da Fox News submeteu três apresentadoras “

O coquetel de audiência, dinheiro, poder e sexo não poderia ser mais explosivo. Mostra haver algo submerso na rede de tv a cabo Fox News, de Nova York, em 2016. O que antes era sigiloso mostra agora o que levou três belas jornalistas a serem apresentadora, comentarista e produtora dos noticiários de maior público da emissora. Serem vistas em horários nobres era o ápice de suas carreiras na televisão. E não só isto, eram famosas, glamorosas, bem pagas e respeitadas profissionais. A questão é ao que foram submetidas até chegar ao ápice na TV mais conservador dos EUA.

Não sem razão, o tema central deste “O Escândalo” é o uso feito por quem detém o poder numa grande empresa para seduzir jovens profissionais que buscam a acessão rápida às melhores posições. É o caso do magnata da mídia Roger Ailes (15/05/1940-18/05/2017)), CEO da Fox News à época. Já idoso selecionava as jovens promissoras não só pela capacidade profissional, beleza, glamour e fotogenia. Criava uma espécie de “teste de pernas”, seguindo o modelo do “teste de sofá”, muito usado pelos magnatas de Hollywood, antes de serem levados aos tribunais.

O que se vê na redação da Fox News à época é a profusão de jovens loiras ou não a trançar pelos corredores dos estúdios e da redação. Entre elas estão Megyn Kelly (Charlize Theron) apresentadora e comentarista política do programa “O Arquivo de Kelly”. Nem o próprio Ailes lhe impunha o que não cabia na pauta do dia. Roach encena-o na crucial sequência da entrevista com o então candidato à presidência, Donald Trump (Republicano), em 2016. Os dois acabam por se atritar, sem que o CEO pudesse interferir. Ela não aceita entrevistar o bilionário direitista que trata mal as mulheres e devido a isto diz não concordar com ele,

A retraída Carlson foi assediada por Ailes

Menos afeita a enfrentamentos, a já veterana comentarista Gretchen Carlson (Nicole Kidman) não é vista senão nos corredores e no estúdio onde grava o noticiário do dia. E se alterna entre a Fox News e o apartamento que divide com o companheiro e os três filhos menores. Ao contrário de Kelly quase não é vista em reuniões com Ailes. Seu recatado comportamento, contudo, mal contém o rancor prestes a se transformar em centenas de megatons. Ainda assim, Jay Roach (14/06/1957) não dá pistas que levem o espectador a antever quando ele irá, de fato, explodir.

O trio de personagens principais deste ““O Escândalo” é completado pela jovem e bela loira Kayla Pospisil (Margot Robbie). Recém-graduada na Universidade, ela tenta se situar na movimentada redação da Fox News. Quer encontrar seu lugar entre as produtoras do noticiário cotidiano, mas, em princípio, tem de se contentar apenas com atribuições secundárias. O que a faz oscilar entre a busca de outra emissora de TV ou continuar a tentar encontrar seu espaço mesmo onde as perspectivas não parecem tão alentadoras. É a personagem que sintetiza o que Roach discute de fato.

Não só ela como Kelly e Carlson são esteios que representam os trabalhadores intelectuais nos negócios da informação via satélite. Mesmo com suas tendências a privilegiar notícias que divulguem interesses menos conservadores, elas não se desviam dos propósitos dos magnatas da mídia. Ailes ao centrar nelas sua atenção tem o objetivo de acrescentar outro propósito, pelo menos para satisfazer sua tendência ao assédio sexual. Elas se tornam assim o objeto de prazer a ser satisfeito em troca de promoção ou transferência para outro programa em troca de íntimos momentos. E cada uma receberá sua recompensa por ter sido tão “lúcida”.

Roach reúne poder, política e mídia

Ailes, co-fundador da rede Fox News com outro magnata da mídia, o australiano Rupert Murdoch (11/03/1931), em 1996, é a um só tempo o CEO e o cérebro político, midiático e financeiro dos negócios da Rede Fox News. Inclusive esbraveja com o próprio sócio que ele, sim, a fez crescer e se transformar na líder de audiência que era em 2016. A discussão fora estimulada por seu explícito apoio ao irascível Donald Trump (14/06/1947). Sua moeda de troca era a audiência das camadas conservadoras. O que era bombardeá-las com retrogradas mensagens.

Com estas configurações dramáticas, Roach reúne poder, política e mídia neste “O Escândalo”, a partir do roteiro de Charles Randolph. Os interesses dos empresários dos negócios da informação de massa são amplos. Sempre os direcionam para onde possam resguardá-los perante o grande capital, que neles investem em anúncios. E, assim, conseguem preservar sua alta lucratividade. Já a política entra através daqueles que irão defendê-los no Legislativo, tendo cobertura midiática apenas no que lhes interessa. Defender Donald Trump, portanto, faz parte deste jogo nada obscuro para Ailes. Sendo conservador como ele, não irá surpreendê-lo.

Esse é, por outro lado, a segunda linha narrativa construída pela dupla Roach/ Randolph. O espectador se vê diante de estruturas montadas para vender informações via TV a cabo. É a tecnologia sendo usada para manter os segmentos conservadores informados do que interessa à classe dirigente. As rusgas entre Trump e Kelly estão incluídas nesta duplicidade. É o canal supostamente popular cumprindo seu papel. Deste modo poder, mídia e política conservadora se fundem. E Ailes é o articulador que une as três vertentes. E quem está fora desta estrutura acaba sendo ofuscado.

Pospisil buscava ascender às posições de destaque

Entretanto, esta azeitada engrenagem tem Ailes como vilão. Ele busca prazer enquanto manipula os cordões que sustentam seus altos lucros. E as três jornalistas terminam sendo seus objetos de prazer. Carlson foi a primeira a se dar conta de que fora levada a se submeter ao assédio sexual dele para manter o emprego. Não basta forçar a mulher ao trabalho mal remunerado e além de tudo inferior ao do homem. Sua permanência no emprego depende da entrega de seu corpo ao prazer de seu explorador. É o que faz Ailes com Carlson e Kelly e assim elas mantiveram seus programas e, portanto, seus almejados empregos.

Roach não se vale de flashback para matizar a artimanha usada por Ailes de modo a envolvê-las por anos. Prefere centrar sua narrativa na fragilidade e ânsia de Pospisil. É o tipo de presa a avançar para a armadilha. Ousada, ela vai ao encontro dele e partir daí fica à espera de ser chamada. Isto pode ser visto como imaturidade ou urgência para construir seu espaço. É o personagem enigmático, porquanto o que tem a oferecer é sua formação em jornalismo. Enquanto isto, Ailes já percebeu o tipo de mulher que caiu em suas graças e não recusa qualquer aproximação dela.

Na longa sequência na ampla sala do CEO, Roach usa o espaço entre eles para dimensionar a diferença de idade e o quanto Pospisil desconhece o segredo do assédio. Aqui ela se vê envolvida num forçado jogo em que deve só obedecer. A cada pedido dele submete-se ao que lhe cabe neste momento. É a garota esperançosa e frágil e o idoso Ailes a viver seu instante de garoto. O espectador sente toda a carga que forçou Carlson e Kelly a se submeterem a tão constrangedor e dilatado tempo. O corte rápido, em elipse, traduz o que realmente aconteceu na sala do CEO.

É o tipo de recompensa a exigir reflexão

Para o espectador tudo não passou de abuso sexual puro e simples. É o poderoso e milionário Roger Ailes em mais um jogo no qual a presa é a garota em busca de promoção. Ela, inclusive, fez o jogo ao qual suas companheiras de redação já haviam se submetido. É o tipo de recompensa a exigir reflexão e denúncia da imposição feita por alguém que deveria avaliar as potencialidades da jovem jornalista em sua emissora. O que ele fez demonstra sua fraqueza, para não dizer doença, a merecer tratamento.

Toda a ação deste “O Escândalo” transcorre nos reduzidos espaços da redação da Fox News em que os personagens se movem. O diretor de fotografia Barry Ackroyd mantém sua câmera a poucos metros deles. A impressão do espectador é que se encontra no mesmo espaço aonde eles estão. É o intimismo adequado para ele captar a intensidade emocional tanto de Pospisil diante de Ailes na sala dele quanto o de Karlson ao decidir iniciar a campanha contra o assédio sexual do qual foi vítima. O clima na redação da Fox News tornou-se logo opressivo e daí ameaçador.

Como todo movimento em princípio não costuma ser ovacionado, o de Carlson não obteve ampla adesão. Na maioria das vezes o medo prevalece, ainda mais em se tratando de algoz tão poderoso e famoso por ser o CEO de emissora de grande audiência. É a hora em que os prejuízos sofridos pelos sócios ou acionistas contam mais do que a eficiência de quem foi um dos fundadores da rede de TV a cabo mais popular dos Estados Unidos. O espectador deixa o cinema tão aliviado quanto quem sai do cinema depois da derrocada do vilão. Antes ele parecia incapaz de cair em desgraça, depois se mostra um bichinho assustado e indignado por ter-se tornado o grande vilão a ser derrotado por suas vítimas femininas.

Gretchen Carlson recebeu U$ 20 milhões de dólares

Nos arremates desta história cruel, Gretchen Carlson (21/06/1966) terminou sendo indenizada pela Fox News em U$ 20 milhões de dólares. À R$ 4,21 reais a cotação do dólar em 28/01/2020, seriam R$ 84 milhões e 200 mil reais. Sua vitória incentivou às mulheres vítimas de assédio sexual desde então a denunciarem seus algozes mundo afora. Não só em simples e rápidos casos. Além de ter o direito de dizer NÃO, a mulher vem se insurgindo e denunciando e processando o homem que ao invés de aceitar o NÃO, busca assediar ou forçá-la a fazer o que a humilha e fere.

O Escândalo. (Bombshell). Drama. EUA. 2020. 114 minutos.Trilha Sonora: Theodore Shapiro. Montagem: Jon Poll. Fotografia: Barry Ackroyd.Roteiro: Charles Randolph. Diretor: Jay Roach. Elenco: Charlize Theron, John Lithgow, Margot Robbie, Nicole Kidman.(*) Candidatas ao Oscar 2020 – Melhor Atriz: Charlize Theron. Melhor atriz Coadjuvante: Margot Robbie.

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