O dilema da Turquia

Neste mais de cinco anos de colunas no portal Vermelho, apenas duas vezes tratei da Turquia. Uma delas o título indagava “Para onde vai a Turquia?”. É uma região que foge um pouco do meu foco de estudos e pesquisa que é Oriente Médio, stricto senso e mais

Um país diferente na Ásia (1)


 


A Turquia moderna que hoje conhecemos nada tem a ver com a velha Turquia do antigo Império Turco-Otomano. Sua construção é recente e diz respeito a profundas reformas desenvolvidas no país a partir de um líder chamado Mustafá Kemal, mais conhecido como Ataturk (na língua turca isso que dizer “pai dos turcos). Kemal governou o país com a mão de ferro. Pode-se dizer que foi um ditador. Não é para menos. Para implantar as mudanças que implantou, só mesmo com a força bruta e o apoio de grande parte do exército. Esteve à frente do país entre 1923 e 1938.


 



Com o fim da I Guerra Mundial, em 1918, o império Turco-Otomano vai sendo desagregado. Parte dessa história nós conhecemos pelo filme excelente de David Linch, intitulado “Lawrence da Arábia”, ganhador de mais de dez Oscares, premiação máxima do cinema americano e cuja história se baseia no livro do personagem central do filme, T. E. Laurence, intitulado “Os sete pilares da sabedoria” (indispensável para quem quer conhecer o Oriente Médio). O território que hoje é a Turquia era onde ficava o núcleo central do Império, que era governado por um Sultão, que tinha amplos poderes, sejam eles seculares, mas também espirituais. Não havia separação entre Estado e religião. O império era islâmico.


 


 


O que Ataturk e seus seguidores queriam evitar era que a Turquia sofresse o que sofreram os países do Oriente Médio, que passaram a ser governados seja pela Inglaterra, seja pela França (até a pequena Itália pegou um naco dessa partilha pós-final da I Guerra). A questão central era evitar que a Turquia fosse “fatiada” e governada por outras potências. Assim, Ataturk toma o poder a partir de um golpe de estado com apoio do exército e inicia o processo de modernização, que na verdade podemos chamar de ocidentalização da Turquia.


 


 


As mudanças que se processaram foram imensas. Até a escrita, que era siríaca, foi alterada. O alfabeto passou a ser o ocidental. A separação entre religião e estado foi radical. Parece que os turcos começaram a aplicar o que a burguesia européia passou a fazer com a sua revolução francesa de 1789. Com 130 anos de atraso, a Turquia entendeu os benefícios de um estado laico, separado da religião. Mudanças ocorreram no ensino, na saúde e principalmente na justiça, pois nos países muçulmanos existem os tribunais que julgam com base na Sharia, uma espécie de direito islâmico. Tudo isso realizado sob a mão de ferro de Ataturk e com apoio ferrenho do exército (nesses 84 anos de Nova Turquia, o exército, para defender esse modelo laico de país fez intervenções pontuais, evitando a radicalização islâmica em 1960, 1971, 1980 e 1997).


 


 


No entanto, apesar de correta essa mudança, isso afastou o país de seus vizinhos e de sua vocação asiática e vinculado aos povos árabes, para aproximá-lo do Ocidente e mais particularmente da Europa, onde sonha até hoje entrar no bloco da União Européia. O famoso artigo do Prof. Samuel Hungtinton, de 1995, polêmico no mundo inteiro (Crash of Civilization), tratou desse tema, mostrando os dilemas dos turcos, divididos entre o Ocidente e o Oriente.


 


 


Os conflitos recentes


 


 


A Turquia vem sendo governada, desde 2002, por Recep Tayyip Erdogan, primeiro Ministro, do moderado partido AKP, que significa Adalet ve Kalkinma Partisi (Partido da Justiça e Desenvolvimento). Já desde essa época a Turquia vem enfrentando uma contradição. Erdogan é muçulmano como o são 98% dos turcos. No entanto, diferente de todos os governos anteriores, o AKP ganhou eleições em 2002 defendendo uma maior aproximação com o Ocidente e a Europa em particular. Isso acirra contradições, mesmo dentro do próprio Partido.


 


 


Apesar de uma República parlamentarista, o presidente da Turquia tem poderes importantes. Sua eleição é indireta, pelo parlamento. Ele indica o primeiro Ministro, e tem poder de vetar leis. Todos os presidentes turcos foram defensores da laicização do país. Agora, quando uma nova eleição precisa ser feita, o primeiro Ministro Erdogan indicou o seu ministro das Relações Exteriores, o muçulmano Abdulla Gul. Ainda que o cargo possa ter pouco poder – mas tem algum de fato – esse é um cargo privativo de pessoas defensoras do poder laico, da separação radical entre Igreja e Estado. Não parece que seja o caso de Abdulla. Sua mulher ingressou recentemente em uma corte de justiça pelo direito de usar o véu muçulmano para cobrir sua cabeça.


 


 


No último domingo, 29 de abril, Ancara, capital da Turquia, presenciou uma das maiores manifestações dos últimos anos. Segundo a agência Reuters de notícias, um milhão de turcos foi ás ruas pedir que o governo permaneça laico, que as instituições não sejam islamizadas. Há um temor pela crescente influência de setores mais pobres e da classe média, que tem melhorado sua situação, de quererem islamizar novamente o país, implantando modelos parecidos com o do Irã. Pessoalmente, acho isso difícil de ocorrer. Mas, analistas desconfiam das intenções de Erdogan e acham que ele tem uma “carta na manga” sobre isso, ainda que defenda juntar-se à União Européia.


 


 


A eleição do presidente ocorre em até três turnos, de forma indireta, pelo parlamento. A primeira decisão, tomada na sexta-feira passada, dia 27 de abril, com uma única candidatura, de Abdullah Gul, obteve 357 votos, quando o quórum necessário para ter validade era de 367 votos. Isso porque o Partido Republicano do Povo, de oposição, boicotou as eleições. Esse Partido impetrou processo pela anulação das eleições junto à Corte suprema e conseguiu seu intento. Uma terceira tentativa de eleições pode ocorrer ainda em 9 de maio.


 


 


Dentro desse contexto, o que é mais provável que ocorra é uma nova eleição geral no país, para renovar o parlamento. Originalmente marcada para novembro, elas poderão ser antecipadas pelo primeiro Ministro Erdogan, para junho ou julho. Ele tem a quase certeza de que, com o crescimento da economia, terá um grande respaldo da população para manter a sua folgada maioria e eleger o presidente de sua confiança, ainda que esse seja um muçulmano ortodoxo que possa vir a frear a aproximação com o Ocidente.


 


 


Nota



(1) Fontes usadas nesta matéria: “Laicização veio após queda do poder otomano”, de autoria de João Batista Natali, publicado na Folha de 30 de abril de 2007, página A11; “Secularistas temem estilo de vida islâmico”, de autoria de Sabrina Tavernise, do The New York Times, na Folha do dia 1º de Maio de 2007, página A12.

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