“O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”

Reflexos de 64


Diretor brasileiro Cao Hamburguer mescla futebol e política em seu filme e faz sincero retrato do Brasil durante a Ditadura Militar

Ao longo de “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, do brasileiro Cao Hamburger, há uma desordem que se manifesta no comportamento de Mauro (Michel Joelsas) e Shlomo (Germano Haiut). Cada um à sua maneira teve seu cotidiano invadido pela sensação de algo que o incomoda, mas não sabe o que, propriamente. E, devido a isto, reage à aproximação do outro de forma violenta. O garoto por ter sido deixado aos cuidados do avô, com o qual não conseguiu estabelecer contato, e o velho Shlomo (Salomão em hebraico) por não saber quem, afinal, ele é. Os dois se atracam ao longo de várias seqüências, até perceberem que são vítimas de algo que se passa ao redor deles, sem que saibam definir de que se trata. Este algo é a ditadura militar (1964/1985), presente nas reações, na solidão, na privação e na desconfiança de forma exasperadora.



             
 “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” trata da opressão que não se manifesta em atos, só em vestígios, revelados pela busca de contato que Mauro tenta estabelecer com o mundo lá fora, através do Volkswagen azul, que o pai, Daniel, dirigia quando o deixou na calçada do prédio onde morava seu avô. Esta espera, para ele, gera angústia, inquietação, diante de desconhecidos, enquanto ocupa o espaço, o apartamento do avô, com o qual nenhuma familiaridade tem. Ao mesmo tempo Shlomo age como um fantasma que some e ressurge sem que Mauro possa identificar seus movimentos. Tudo age contra ele. As férias dos pais que nunca terminam e as ações do velho Shlomo às vezes brutais.


 


             
Tortura não aparece, mas deixa vestígios


             


Não há forma mais crua de retratar a ditadura dos generais do que esta: através de suas nuances, de sua onipresença. Não está explícita nas torturas, nos aparelhos, nas metralhadoras e nos quartéis, mas na desorganização da vida do garoto, obrigado a trancar-se num apartamento cheios de móveis, vasilhas e objetos com os quais não está familiarizado. Ela, a ditadura, mantém-se submersa, oculta nos corredores, nas chegadas e partidas estranhas de Shlomo e nos olhares da garota Hanna (Daniela Piepszyk). Nada pior do que isto, a tortura se manifesta sub-reptíciamente; chega aos poucos, na vida dos moradores do prédio do bairro Bom Retiro, em São Paulo, e nas conversas dos rabinos com Shlomo, sem que pronunciem a palavra “ditadura militar”.



          
Quando ela chega, o faz através do universitário, Ítalo (Caio Blat), sem que, no entanto, se escancare. Assim como também fazem os que a combatiam; surgem sorrateiramente por meio de uma pichação e desaparecem. Percebe-se que se travava uma luta subterrânea que emergia através da vida de Mauro e de Sholomo. Este achado de Cláudio Galperin e Cao Hamburguer, autores da história que roteirizaram com Bráulio Mantovani e Anna Muylaert, é que desconcerta em “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”.  As ausências dos pais, a indefinição sobre quando eles voltariam e a quem recorrer denuncia mais os horrores da ditadura do que seqüências explícitas de prisão,tortura e morte. Mostra que o cotidiano das pessoas, principalmente das crianças, podia ser afetado inexoravelmente. Muitas tiveram suas vidas marcadas de forma indelével: perderam pais, irmãos, famílias inteiras sem que soubessem, no momento, porque. Inúmeras buscam, até hoje, entender o que aconteceu, pois nenhuma informação sobre o paradeiro de seus pais foi lhes dado pelos militares e pelas autoridades que os sucederam.


 


          
Feridas ainda estão abertas



           
         
As feridas continuam abertas. Quando Bia (Simone Spoladore) abraça o filho Mauro há algo que ele pergunta e ela não consegue responder. Um ser precioso para ambos ficou para trás. Neste instante, o garoto já sabia de que se tratava, estava envolto nas conseqüências da luta contra os generais; entendera que o que era sussurrado por Ítalo materializara-se nas ruas, por meio das baionetas, dos cavalos e das prisões de líderes estudantis. Mauro, inocente em princípio, cresce enquanto espera o término das férias dos pais, espécie de metáfora para os que permaneceriam desaparecidos nos porões dos quartéis da ditadura militar. Não é mais o garoto que fugia ao contato com Hanna, às brincadeiras com os amiguinhos dela e das escaramuças com Sholomo. Passou por profundas transformações, enquanto aguardava o retorno do Volkswagen azul.



         
Cao Hamburguer, com “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, penetra noutro mundo ignorado pela cinematografia nacional: a dos judeus do Bom Retiro (no filme, a rua Lusitânia, centro de Campinas). Um mundo em que o ritual hebreu deixa antever preocupações com os conflitos políticos e tem sua própria forma de enfrentá-los. Não se abre para o exterior, a exemplo de Sholomo, que trata de suas questões com o rabinato, mas que é aberto à solidariedade. São eles que se tornam a família de Mauro e lhe dão a devida guarida para que suporte o castigo que lhe foi imposto, por extensão, pela ditadura militar. Este mundo judaico, com suas comidas, músicas e indumentárias típicas, se revela rico e cheio de nuances que servem de proteção durante um período de exceção. Ali os termos ditadura militar e comunista surgem no momento adequado e são enfrentados sem grandes alaridos.


 


         
Comunidade judaica e vítimas do golpe
 
        


É um lado desconhecido de São Paulo e do país. Uma comunidade que, a exemplo das demais, teve seus filhos tombados durante a ditadura. Também ela participou dos momentos de euforia gerados pela Copa de 70, auge da repressão ao movimento armado, à oposição, à Guerrilha do Araguaia, e também símbolo da alienação e da apropriação do imaginário popular pelos generais. Com isto, eles tentavam identificar a ditadura com o sentimento popular e, assim, validar a opressão sobre o povo. As belas seqüências da comunidade judaica assistindo o jogo Brasil/Tchecoslováquia atestam seu senso de brasilidade e a inocência de Mauro e Hanna. E também o aproveitamento que o presidente/ditador Garrástazu Médici faz daquele momento para exacerbar o combate aos opositores do regime, independente de sua coloração político-ideológica.



       
Esta aparente alienação da comunidade judaica e, por extensão do povo brasileiro, torna a manipulação da identidade nacional popular um dos crimes da ditadura de 64. Não se trata de populismo, sim de propaganda institucional, de poder sobre as massas. Transforma a Copa de 70 nas Olimpíadas de 36, em Berlim, quando os nazistas queriam ver triunfar, através do esporte, o Reich que deveria durar mil anos. E, também a exemplo daquela perversão, perseguia e assassinava os líderes e os militantes da resistência ao regime. Com esta aparente analogia, “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” torna-se um filme obrigatório para os que buscam entender aquele tenebroso momento histórico brasileiro. O faz com uma contundência de tirar o fôlego.


 


        
Futebol representa identidade popular


        


Difícil não escapar às lágrimas nas seqüências finais, quando os acordes de “Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração” cedem-se ao silêncio, e Mauro sai à procura de seus pais. É como se nada mais interessasse ao garoto fanático por futebol e jogo de botão, só o reencontro com eles importa. A alienação cede espaço à consciência de que existe algo para além das “férias” e não se trata de descanso. É puro cinema, sem que a música teça comentários ou um diálogo interfira. Não se fala em política durante o filme, tampouco sobre revolução ou tortura.


 


 E, no entanto, eles estão presentes em cada silêncio de Sholomo e na desordem psicológica do garoto Mauro. Cada personagem, mesmo as crianças com suas brincadeiras nada infantis, está mergulhado no universo opressivo, por entender que algo diferente acontece, sem se manifestar em seu cotidiano de forma explícita. Não era preciso ser diferente. Os reflexos da opressão manifestam-se assim mesmo, ceifam sonhos e perspectivas, marcando vidas para sempre.


 



 “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, Brasil, 2006, Drama, 110 minutos. Fotografia: Adriano Goldman. História: Cao Hamburguer e Cláduio Galperin. Roteiro: Cao Hamburguer, Cláduio Galperin, Anna Muylaert e Bráulio Mantovani. Direção: Cao Hamburguer. Elenco:  Germano Haiut, Michel Joelsas, Simone Spoladore, Caio Blat e Daniela Piepszyk.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor