O 1968 operário

A greve de Contagem – MG


 


Quando se fala em 1968 pensa-se, imediatamente, no grande movimento de contestação juvenil que tomou as ruas das prin

Na França, o “68 de macacão” se apresentou com toda sua pujança na grande greve geral realizada em maio daquele ano. No Brasil, ele teve dois momentos marcantes que foram as greves de Contagem (MG) e a de Osasco (SP).


 


 O sindicalismo brasileiro havia sofrido uma grande derrota política em março de 1964, quando do golpe militar. A ditadura impôs uma série de leis visando impedir a livre organização e a luta dos trabalhadores. Esta era uma das condições para que pudesse implantar sua política econômica, assentada no arrocho salarial e na redução dos direitos sociais. Seguiu-se, então, um período de refluxo das lutas sindicais. Por isso, as greves de Contagem e a de Osasco, ocorridas em 1968, se tornaram marcos importantes da história das lutas da classe operária brasileira.


 


Ironicamente naqueles anos de chumbo ganharam corpo as teses sobre o caráter conservador do operariado moderno. Este havia sido cooptado e incorporado, como parceiros menores, à engrenagem do sistema capitalista. A vanguarda revolucionária passava a ser os estudantes e os setores marginalizados da sociedade burguesa. Uma outra vertente, auto-denominada marxista-leninista, delegava aos camponeses pobres o papel de vanguarda da revolução socialista em marcha no mundo.


                


A greve de Contagem abala a política de arrocho


 


As greves operárias de 1968 só poderão ser plenamente entendidas nos marcos da crise que o regime militar atravessava naquele momento. No ano anterior, um novo presidente militar, o general Costa e Silva, assumiu anunciando sua disposição em promover uma “abertura política”, ainda que a fogo lento. Rapidamente, aproveitando-se das pequenas brechas abertas pelo regime e a crise econômica que se agravava, a oposição liberal-democrática (Frente Ampla e o MDB) e a oposição popular retomaram a ofensiva política. Cresceram, então, as manifestações de rua lideradas pelos estudantes. A grande imprensa, mesmo a liberal-conservadora, passou a criticar abertamente o regime discricionário. Estava assim criado o caldo cultural que possibilitou a emergência do movimento operário.


 


O primeiro grande movimento de resistência dos operários à política econômica do regime eclodiu na cidade mineira de Contagem. No início dos anos 1960, esta já era um dos principais centros industriais de Minas Gerais. A cidade possuía aproximadamente 28 mil habitantes e destes mais de 18 mil eram operários, que moravam e trabalhavam no seu cinturão industrial.


 


Apenas em meados de 1967, quando ocorreu uma pequena liberalização na política sindical do regime, as oposições sindicais conseguiram ensaiar tímidos passos no sentido de tomarem as direções das entidades sob intervenção ministerial ou nas mãos de diretorias conciliadoras.


 


Foi neste processo que, no Sindicato dos Metalúrgicos de Contagem, a oposição dirigida por um operário da Mannesman, Enio Seabra, conseguiu montar uma chapa que tinha um programa bastante avançado para época. Dele constava: expulsão dos pelegos, oposição à política de arrocho salarial do governo, contra o fim da estabilidade no emprego e de outras medidas anti-operárias imposta pelo regime militar.


 


O Departamento Regional do Trabalho tentou impugnar o nome de Ênio Seabra, mas através de recursos ele conseguiu concorrer e vencer a eleição. Antes mesmo da posse, o Ministério do Trabalho interveio e destituiu o presidente eleito e mais três membros da chapa vitoriosa. A oposição não teve condições de reverter o quadro adverso e com isso o sindicato, mesmo com uma nova diretoria, não conseguiu se fortalecer suficientemente para jogar um papel mais decisivo nos acontecimentos que se sucederiam. Mesmo assim sua posição não foi de neutralidade diante dos acontecimentos que abalariam Contagem.


 


A partir de 1967 alguns sindicatos mineiros tentaram formar uma frente sindical para combater a política de arrocho salarial do regime. O Comitê Intersindical Anti-arrocho foi criado em março de 1968 em uma assembléia que reuniu cerca de 2 mil trabalhadores. O número de participantes, que surpreendeu até mesmo os líderes sindicais, demonstrou a disposição de luta da classe operária mineira. Mas estes sinais não foram plenamente compreendidos pelas direções sindicais e, poucos dias depois, eclodiu a primeira grande greve metalúrgica do pós-1964.


 


A greve começou no dia 16 de abril numa seção da Companhia Belgo-Mineira e atingiu 1.200 operários. Até a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, que estava entre as mais ativas de Minas Gerais, foi pega de surpresa. O espanto dos sindicalistas pode ser constatado pela declaração do presidente daquela entidade: “Eles (os operários) tomaram o sindicato de surpresa, pois nossa preocupação no momento era lutar contra o arrocho”.


 


 


A esquerda socialista e a greve de Contagem


 


Até recentemente a única e, portanto, a mais “abalizada” fonte e análise sobre este movimento grevista havia sido o artigo “Participação e Conflito Industrial: Contagem e Osasco – 1968”, escrito pelo sociólogo Francisco Weffort e publicado nos Cadernos do CEBRAP, ainda em 1972. Mas, entrevistas recentes com antigos militantes operários de Belo Horizonte e Contagem ofereceram novas interpretações que contestam muitas das afirmações feitas pelo sociólogo paulista.


 


O seu principal equívoco foi considerar aquele movimento como algo nascido espontaneamente, sem preparação anterior e sem a participação ativa dos partidos de esquerda clandestinos. Outro erro foi a subestimação da atuação do sindicato dos metalúrgicos, considerado completamente ausente da luta.


 


Utilizarei aqui como fontes dois depoimentos essências. O primeiro é do dirigente do PCdoB Vital Nolasco, que era militante da Ação Popular.  O segundo é de Otavino Alves da Silva, ex-militante da Polop. Os dois eram operários e atuaram naquela histórica greve (1).


 


Eles esclarecem, por exemplo, que um dos principais dirigentes daquela greve, o operário Ênio Seabra, era militante da Ação Popular, uma organização da esquerda católica que havia recém-aderido ao marxismo-leninismo. Declarou Nolasco: “A Ação Popular, por exemplo, era força hegemônica na comissão de fábrica da Mannesman e esta era a maior empresa da cidade. Ali, inclusive, criou-se um jornal de massa chamado ‘Companheiro’ (…) Existiam também outras correntes organizadas na categoria, como a Polop e o PCBR”. 


 


Entre os diretores do sindicato dos metalúrgicos existiam militantes de outras organizações de esquerda como o PCB, PCBR e ALN. A secretária-geral da chapa, Maria Imaculada Conceição, que não foi cassada, era ligada a uma das dissidências armadas do PCB. Segundo os depoentes ela pertenceria ao PCBR ou a ALN.


 


Assim, afirmou Nolasco, “a greve de abril de 1968 foi apenas em certo sentido espontânea (…), pois houve durante este período um trabalho prévio de conscientização e organização dos trabalhadores. Já estava sendo preparada pela esquerda sindical (…) Ou seja, não surgiu do nada.” E continuou: “Foi se criando aquele clima favorável à greve, mas o movimento acabou sendo abortado. Possivelmente por precipitação de algumas das organizações clandestinas presentes nas fábricas de Contagem”.


 


Este fato é confirmado por Otavino Alves. Segundo ele a greve começou por iniciativa do pessoal da Colina, uma dissidência armada da Polop, que possuía certa expressão na Belgo-Mineira. Este grupo, inclusive, possuía um jornal de fábrica chamado O Piquete.


 


O movimento paredista ganhou rapidamente o conjunto dos trabalhadores e adotou como forma de pressão a ocupação da fábrica. Os operários elegeram uma comissão para coordená-lo e realizar as negociações com os patrões e o governo.  Os trabalhadores exigiram aumento imediato de 25% em seus salários e os patrões ofereceram 10%, que ainda seria descontado na data-base em outubro. A contra-proposta patronal foi rejeitada e o impasse se aprofundou.


 


Os operários organizaram grupos de autodefesa para proteger os grevistas da ação da polícia, que ameaçava ocupar a fábrica. É visível que os métodos de luta dos operários foram contaminados pela concepção militarista que já predominava em várias correntes que atuavam naquele movimento.


 


No dia seguinte, como esperado, o DRT decretou a ilegalidade do movimento e exigiu a volta imediata ao trabalho. Depois de dois dias os operários, diante dos rumores de uma invasão policial-militar, os operários decidiram abandonar à fábrica e se dirigir à sede do sindicato.


 


No quarto dia o movimento se estendeu à Sociedade Brasileira de Eletrificação (SBE) com seus 500 operários. Como o Sindicato dos Metalúrgicos já estava ocupado pelos operários da Belgo-Mineira, os demais grevistas se dirigiram ao Sindicato dos Bancários, que os acolheu.


 


O Ministério do Trabalho, que havia se mantido em silêncio, fez o seu primeiro pronunciamento público. Afirmou o ministro-coronel Jarbas Passarinho: “Não se trata de um movimento justificado ou legal ou tolerável, mas de uma pura e simples agitação. (…) Apelo então para os líderes sindicais (…) (que) devem mostrar aos trabalhadores o perigo das medidas adotadas por aqueles que tentam envolvê-los hoje na Cidade Industrial, todas fora da lei, todas com claro objetivo de provocar a violência das autoridades que devem manter a ordem de qualquer forma”. O ministério ainda ameaçou com a decretação da intervenção no sindicato dos metalúrgicos e dos bancários.


 


No dia 20 de abril mais uma grande empresa entrou em greve, a Mannesman.  Já eram mais de 6 mil trabalhadores paralisados. No mesmo dia os operários realizaram uma grande assembléia e elegeram um comando de greve unificado. O operário Enio Seabra, candidato cassado à presidência do sindicato, foi eleito presidente da comissão. Uma prova da força da Ação Popular naqueles acontecimentos.


 


O próprio ministro do trabalho se deslocou para Minas Gerais e visitou a sede do Sindicato dos Metalúrgicos procurando uma saída para a crise e impedir a proliferação do movimento. Ele sabia que a greve de Contagem poderia ser uma faísca que incendiaria a pradaria. Motivos para isto não faltavam. O principal deles era a política de recessão e de arrocho salarial da ditadura. O fantasma de uma possível aliança operário-estudantil começou a roubar o sono de alguns generais.


 


Prova disso é que o próprio Jarbas Passarinho, em um ato inesperado, se dirigiu aos próprios trabalhadores em greve numa assembléia geral e colocou a posição do governo. Afirmou: “se as condições se agravarem vai haver luta e perderá quem tiver menos força, embora não queiramos fabricar e nem nos transformar em cadáveres”. Os trabalhadores não se intimidaram com as ameaças e reafirmaram que “seu movimento era autêntico e espontâneo, não estando ligado a qualquer grupo político” e mantiveram a suas reivindicações. O ministro acabou se retirando da assembléia sob as vaias dos operários. Era a primeira vez que isso acontecia.


 


Após as ameaças do ministro-coronel, a greve se expandiu. No dia seguinte pararam os trabalhadores da Acesita, da RCA-Victor, da Demisa e da Industam. O governo, então, apresentou uma proposta de conciliação que vinha seguida de um ultimato: “a recusa da proposta significa uma declaração de guerra”.  A proposta era: um reajuste de 10% que, ao contrário do que propuseram os patrões, não seria descontado na próxima data-base.


 


Embora a proposta de reajuste fosse bem abaixo do que era reivindicada pelos operários, ela representava uma primeira vitória dos trabalhadores brasileiros contra a política de arrocho salarial da ditadura militar. A diretoria do sindicato resolveu aceitar a proposta, mas os operários em assembléia decidiram rejeitá-la.  A situação se agravou e o confronto pareceu iminente.


 


No dia seguinte, surpreendentemente, o movimento se ampliou ainda mais. Mais dez empresas aderiram à greve. Entre elas estavam a Simel, a Mafersa e a Pollig-Haeckel.  Agora já eram quase 20 mil trabalhadores paralisados.  A maior greve desde o golpe militar de 1964.


 


No dia seguinte, Jarbas Passarinho, em cadeia nacional de rádio e televisão, comunicou “o início da guerra” contra os operários mineiros. A polícia militar ocupou as ruas da Cidade Industrial e impediu a realização de assembléias e aglomerações operárias. Os patrões tomaram a ofensiva e, com a ajuda da polícia, passaram a convocar os trabalhadores nas suas próprias casas, sob a ameaça de demissão sumária e por justa causa.


 


Apesar da repressão policial-militar, levaria ainda mais alguns dias para que a situação voltasse a se “normalizar”. Mas, o exemplo daqueles operários, que ousaram enfrentar a ditadura militar, continuou a alimentar o sonho de milhões de trabalhadores e de inúmeros agrupamentos de vanguarda da esquerda brasileira. Às vésperas do 1º de maio, quando os operários de Contagem ainda estavam em greve, o general-presidente Costa e Silva anunciou solenemente a extensão do abono salarial de 10% para todos os trabalhadores brasileiros.


 


Os operários de Contagem mostraram que era possível lutar e conseguir vitórias, ainda que parciais, contra a política de arrocho salarial imposta pela ditadura. Alguns meses depois, em outubro, ocorreria uma nova greve. Mas, a conjuntura já não seria mais a mesma e as dificuldades seriam ainda maiores para os trabalhadores.


 


A segunda greve


 


Esta segunda greve é pouco tratada pela historiografia, embora, segundo seus participantes, tenha sido maior – em número de grevistas e de dias parados. Weffot, por exemplo, no seu artigo, não chegou a citar esta greve. Talvez o principal motivo para tal esquecimento seja a maior repressão e censura que existiam naquele momento. Isso impediu a sua ampla divulgação, como havia acontecido em abril ou mesmo em julho, durante a greve operária de Osasco.


 


Na verdade, a greve de outubro estava sendo preparada desde 1967. Pois, inicialmente, pensava-se fazê-la coincidir com a campanha salarial, mas a greve na Belgo-Mineira, puxada pela COLINA, antecipou os acontecimentos em alguns meses e fez com que os planos fossem alterados.


 


Segundo Nolasco, “apesar da repressão, os trabalhadores mantiveram-se organizados nas empresas. Preparação para data-base. Foram montados dois comandos de greves um em Belo Horizonte e outro em Contagem. Em outubro ela teve início. A Cidade Industrial foi paralisada e as fábricas ocupadas. Os operários da Mannesman mantiveram a diretoria presa como refém dos grevistas (…) Com a fábrica cercada por tropas da polícia, negociamos a libertação da diretoria da empresa em troca de não haver repressão aos ocupantes”.  Mas, a ocupação não se sustentou ficando restrita apenas à oficina central. A repressão ocupou a fábrica expulsou os operários que ainda resistiam e prendeu as principais lideranças.


 


Deixemos, então, Otavino Alves descrever aqueles momentos: “Preparamos um manifesto chamando a greve e colocando que não seria pacífica como da outra, que os sindicatos sofreriam intervenção dessa vez e que poderia haver repressão policial. O Ricardo Prata, que era da AP e depois passou para a Polop, trabalhava numa imobiliária e ofereceu a chave de uma casa na rua Rio de Janeiro, para usarmos como sede. A AP tirou seu comando na massa e nós formamos um comando clandestino. O Colina organizou um comando que não sei o que fez”.


 


Alguns dias depois uma reunião clandestina do comando de greve foi descoberta e seus membros presos. Mais de mil trabalhadores foram demitidos. A greve continuaria de maneira esparsa até se dissolver sob ataque feroz da reação do governo e dos patrões. Estávamos as vésperas da decretação do famigerado Ato Institucional número 5.


 


Segundo Nolasco, “a greve de outubro foi ainda maior que a anterior. Na greve de abril, a Mannesman não chegou a parar totalmente e ela se reduziu a Cidade Industrial em Contagem. Em outubro parou tudo, parou Contagem e Belo Horizonte, e inclusive atingiu pequenas empresas da região. Acredito que ela foi a maior e mais longa greve do período, mas não foi muito divulgada devido à rígida censura dos meios de comunicação”.


 


No dia 3 de outubro chegou ao fim o nosso “1968 operário”. Seriam necessários mais de dez anos para que os operários voltassem a arrombar a cena e colocassem em xeque a ditadura militar. Mas esta já é outra história. 


 


Nota


 


(1) A entrevista com Otavino Alves da Silva foi feita por Walter Pomar e publicada na revista Teoria e Debate, nº 24 – março/maio/1994. A entrevista com Vital Nolasco foi feita por mim e publicada na revista Debate Sindical, nº 28 de junho/agosto/1998.

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