“Nome de Família”: Culturas em conflito

Diretora indiana, Mira Nair, discute a vida dos imigrantes indianos nos EUA e o impasse que se defrontam ao terem de viver distantes de seus países de origem.

Em “Nome da Família”, da indiana Mira Nair (Mississipi Massala,Casamento à Indiana) quando Ashoke Ganguli (Irfan Khan) se vai, fica a sensação de que, a partir dali, seus filhos, Gogol (Kal Penn) e Sonia (Sahira Nair), e sua mulher Ashima (Tabu), poderão, enfim, seguir seus próprios caminhos. Ele era o equilíbrio e, ao mesmo tempo, aquele que os fazia dele se afastar para sair em busca de seus próprios caminhos. Esta sutil crítica ao patriarcado indiano dá o tom neste filme que evolui entre dois cenários, Nova York e Calcutá, igualmente importantes para o desenrolar desta epopéia moderna, importante para se entender duas civilizações literalmente diferentes; EUA e Índia. À diretora Mira Nair, com base no romance “O Xará”, da anglo-indiana Jhumpa Lahiri, interessa apenas analisar como estas duas culturas podem se intercambiar e manter sua integridade. Cumpre, para isto, todo um círculo que vai do casamento de Ashoke com Ashima, em Calcutá, até o nascimento de seus filhos, em Nova York.



                  


 


As autoras, Jhumpa e Nair conseguem escapar ao clichê do choque cultural, ao mostrar Ashore aculturado, admirador do american-way-of-life, a ele se referindo a todo instante, como se os EUA fosseM solução para todos seus problemas.Ainda assim, ele mantém intactas suas raízes, cumprindo um ritual que vai da submissão aos ditames familiares à preservação de suas idéias, dos ensinamentos de seu pai e de um certo misticismo, que não provém do hinduísmo, mas de seu apego aos escritos do romancista Nicolai Gogol. A este são atribuídas suas virtudes, aspirações e clarividência, que tenta transferir ao filho, Gogol, ao dar-lhe o nome do escritor ucraniano. E, como não poderia deixar de ser, toda sua concepção deriva-se de uma tragédia: o choque de trens, num dos quais viajava, vitima todos os passageiros, menos ele. O que o faz acreditar nos poderes místicos do autor de o “Capote”e “Almas Mortas”, sempre às voltas com uma inconclusa vocação religiosa.


 


                       



Para Ashima, os EUA são a terra onde seus anseios não se realizam
                   


 


Ashore, professor universitário, ao contrário de Gogol, não se move pelos caminhos religiosos. Sua formação indiana não o tornou um fiel, só conserva sua tradição cultural. Quando se casa com Ashima, num casamento arrumado pelos pais de ambos, ele a traz para Nova York, cumprindo desta forma o ritual indiano. Ela começa sua vida em outro país, em outra cultura, deixando para trás seus sonhos. Aos poucos vai se adaptando até se relacionar com seu novo meio, inclusive no trabalho de bibliotecária no serviço público. Seu mundo, no entanto, é o de Ashoke, com sua visão dos EUA como um mundo de oportunidades, de democracia onde todos poderão fazer o que quiser. Nada disso está claro para ela; os EUA continuam, no seu entender, a ser a terra onde seus anseios não se realizam.
               


 


Isto ficará ainda mais claro para ela, quando seu filho nascer e tiver de lhe dar um nome. Na Índia teriam de esperar visita da avó materna para, então, ela dizer qual nome a criança deve ter. Tudo lhe parece natural até o assistente do hospital, encarregado de encaminhar o registro de nascimento ao cartório, lhe dizer que terá fazê-lo naquele instante, se não o bebê ficará sem nome. As diferenças culturais se estabelecem; o menino terá um nome provisório, com a possibilidade de trocá-lo no futuro. Surge daí a necessidade de este construir, ele mesmo, uma nova identidade, adversa da de sua família. Ganha então uma alcunha –  é mais um recurso dramatúrgico que uma evidência, uma realidade, mas elucida a diferença entre as duas culturas e a urgência que uma sociedade dita avançada impõe a todos, não os deixando trilhar seu próprio espaço. E cria, desde este momento, um problema de difícil solução para o garoto em suas relações sociais: ele está em três mundos ao mesmo tempo – o de seu pai, que homenageia o escritor Nicolai Gogol, o do país de seus ancestrais e o seu próprio, agora, país.


              


Estigma de Gogol persegue personagem


              



Gogol irá carregar este estigma, como o “capote” da novela homônima que assume várias características. Uma hora ele que ser genuinamente norte-americano, noutra oscila entre suas raízes indianas e suas buscas interiores. A instigá-lo há sempre Ashoke, a lembrar-lhe sua dívida com o ucraniano Gogol. Quando, finalmente, se forma em Arquitetura e pode soltar-se das sombras do pai, ele passa a viver no mundo que lhe parece condizente com suas aspirações. A presença do “capote”, sempre uma ameaça, o faz não se distanciar o suficiente, seja devido à insistência de sua mãe, Ashima, em lembrá-lo de onde vêm suas raízes, seja para mantê-lo nas proximidades. O faz, inclusive, estar às voltas com a indiana Rini (Sukanya), adolescente intelectualizada, seduzida pelo idioma francês, que faz questão de citar a todo instante.
               



Estamos, em “Nome da Família”, num ambiente burguês, por mais que os pais de ambos sejam intelectuais. As dúvidas sobre identidade não são ditadas só pelas estruturas sociais, mas também pelas escolhas possíveis. Gogol trafega entre sua família e a de sua namorada Maxine Tatliff (Jacinda Barrett), com desenvoltura. Principalmente depois de ele substituir o nome dado pelos pais, Gogol, por outro, americanizado. Pode transitar entre Nova York e Calcutá com facilidade, para conhecer a vida em ambas e sentir as diferenças. Faz parte, em sua família, dos imigrados para os EUA, cérebros que se vão de um lado a outro, para contribuir para o desenvolvimento do mundo globalizado. Não são os miseráveis vistos por ele nas ruas de Calcutá. Pode se deslumbrar com o Taj Mahal e retornar à sua vida de arquiteto em Nova York. Nenhum comentário sobre a miséria, as ruas sujas, os deserdados. Quando muito uma deslocada referência ao sistema de castas indiano.


 


               
Mulheres têm papel mais positivo no filme


               


 


Mesmo assim, a diversidade cultural entre os dois países aflora. Um, os EUA, é mais agitado, apressado em fazer tudo com urgência, como se a olhar para trás e ver o cataclisma chegando, outro, a Índia, ciente de que há mutação, não tem pressa, pois todo ser vivente se transformará em outro, num ciclo incessante de nascer e reencarnar. Esta noção, no entanto, não perpassa as discussões da família Ashoke. Apenas Ashima conserva seus costumes, suas vestes coloridas, de panos trançados, pés pintados de vermelhos e o círculo no centro da fronte. Coisa que Ashore deixou de lado, dado que vive enfiado em paletó e camisa sem gravata e a indefectível pasta. E a certeza de oportunidades infinitas, ela, porém, anda cheia de dúvidas; incertezas que ditam sua relação com o marido e os filhos. Se Ashoke é o equilíbrio e, ao mesmo tempo, o que os afasta, ela, Ashima, é o fio que faz a ponte entre a Índia e os EUA.



                  



Esta oscilação, uma característica de “Nome de Família”, mostra a dificuldade da integração entre duas culturas tão diversas. Todos, inclusive os indianos, lutam para preservar sua identidade.Gogol, ao tentar fugir a esta estrutura, sofre. Uma hora por se sentir culpado por não ter atendido ao pai, Ashoke, noutra por aceitar aos ditames de suas raízes indianas. Precisa encontrar o ponto de equilíbrio, o que lhe custará muita dor. Mira Nair e Jhumpa Lahiri não tomam partido; há em suas idéias a certeza de que uma cultura termina por influenciar a outra. E Gogol será o centro desta mutação. Esta, entretanto, não vem dele, sim de sua irmã Sonia, é ela, sorrateiramente que irá se insinuar, adaptando-se, sem que a família o perceba. Numa forma de libertação do patriarcado, da submissão da mulher indiana, encontra seu par, sem passar por idêntico conflito que Gogol. As mulheres, em “Nome de Família”, têm um papel mais positivo que os homens, embora cheios de bloqueios e imposições, por mais que tentem se mostrar flexíveis.


 


               


Diretora expõe beleza difícil de se ver no cinema atual


               


 


Mira Nair expõe-nas em toda sua beleza, sensualidade, evidenciado um erotismo difícil de se ver no cinema indiano, e por que não, atual, por mais que ela, a diretora, transite entre os EUA, Nigéria e Índia, tendo realizado vários filmes em Hollywood, dentre eles “A Fogueira das Vaidades”; baseado no monumento literário homônimo, criação do romancista inglês William Macpeace Tackery. E, muitas vezes, dirija filmes pequenos para os padrões hollywoodianos. As relações entre Gogol/Rini, Ashima/Ashoke, são de uma delicadeza de enlear, tornar o espectador participe, dada à suavidade com que eles se envolvem um com o outro. Nada explícito, degradante, há amor por se revelar, para, em seguida, recair sobre os personagens a danação das escolhas. Exemplo de Gogol que, ao tentar satisfazer as vontades da mãe, termina numa relação em que dela pouco participa. Desce aos infernos depois que Ashoke se vai.



                 



Nada daquilo lhe serve. Nem o falso mundo novo que lhe oferece os pais de Maxine, tampouco os liames indianos, que o levam à frustração. Tem de encontrar um novo caminho, muito seu, após observar e mergulhar em duas vertentes diametralmente opostas. Ele refuta tanto o mundo apressado, superficial e consumista norte-americano quanto o mundo místico ditado por seu pai. Apenas Sonia integrou à nova pátria – sua verdadeira, na verdade, pois nasceu nos EUA – e não vive seus mesmos dilemas. Daí a bela e dialética saída encontrada por Mira Nair: cada um, a seu tempo histórico, irá construir uma nova cultura, adversa daquela herdada. Apenas Ashima deverá trilhar um caminho inverso. Obrigada, pelo ritual familiar a viver com Ashoke dada à escolha dos pais de ambos, ao não tê-lo mais poderá, enfim, reencontrar-se consigo mesma.


                   



Felicidade não é viver no centro do consumismo


                   



O canto triste por ela enovelado, ao estar de novo em Calcutá, põe diante do espectador a visão de que é possível encontrar seu próprio caminho, ainda que às custas de muito sofrimento. Pode ser, de repente, o reencontro com sua cultura, em novas bases, sem vergonha ou temor algum de estar num país dito de terceiro mundo. Isto não importa, são outros valores, e eles valem na medida em que são sua identidade e dela não se deve afastar sob pena de deixar de ser ela mesma. Ashima sente-se bem, está de novo em seu habitat. Pouco importa que os valores e os padrões não são os que querem lhe impor – afinal eles podem não ser os melhores e os que a tornarão feliz. Uma felicidade não medida pelo que se tem e o que se consome; sim pelo que se desfruta em liberdade, sem imposição alguma.



                   



Uma bela lição num filme que, na primeira parte, parece um elogio esquemático e incisivo aos EUA, e que, aos poucos, vai revelando que há muito de aparência na maneira como Ashoke o vê. Uma cidade, Nova York, igual a muitas megalópoles mundo afora, que separa as etnias, levando-as a viver em verdadeiros guetos, travestidos de comunidades. As amigas e os parentes de Ashima o demonstram. Querem ficar juntas não para preservar sua cultura, mas porque a integração lhes é difícil. E Ashoke, nos momentos em que tem de testar a generosidade norte-americana e a competência de seu sistema de saúde, liga hesitante para a mulher, tentando escamotear a calamidade com que se defronta. E, no final, reserva a todos, um desfecho trágico. Nada mais sutil; revela Mira Nair, com a leveza que caracteriza sua direção em “Nome de Família”. Trata-se de um filme para se ver, e rever, sob uma ótica diversa da tratada em muitos filmes que louvam o multiculturalismo sem adentrar a suas fraturas.


 


 



“Nome de Família” (“The Namesake”). Drama.Índia/EUA, 2006, 122 minutos. Roteiro: Sooni Taraporevala. Direção Mira Nair. Elenco: Irfan Khan, Tabu, Sahira Nair, Kal Penn, Sukanya. 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor