“Miami Vice”: O tráfico como negócio

Michael Mann não escapa dos clichês em seu filme, que mostra que o tráfico moderniza seus métodos e assume, cada vez mais, posição de negócio legal nos EUA e na Europa.

No cinema de Michael Mann, os seres humanos acabam entregues à sua própria sorte. Há um espaço para a paixão, o desejo e, sobretudo, a solidão. Em “Fogo contra fogo”, o assaltante Neil McCauley (Robert De Niro), após um roubo de banco fracassado, fica solitário no apartamento do qual não pode sair. Escapar representa não a busca da liberdade, mas tão só fugir à prisão que sua vida se vê entregue, mesmo que isto represente a morte. Dilema semelhante vive a sino-cubana, Isabella (Gong Li), em “Miami Vice”, último filme de Michael Mann. Executiva da Irmandade Aryan, cartel de droga do chefão Arcángel de Jesus Montoya (Luíz Tosar), ela tem de optar entre seu amor pelo detetive norte-americano Sonny Crocket (Colin Farrel) e a liberdade em Havana, para onde ele a despacha, depois de intenso tiroteio em que um dos chefões do tráfico nos EUA é executado.



                   


Ao partir numa lancha ultraveloz, ela deixa um pouco de si, com a possibilidade de recomeçar sua vida, em outros termos – se é que terá alguma chance. É um personagem feminino, com sentimentos, em meio à ferocidade do tráfico, dominado pelas aparências, o medo e a traição. Ela surge sentada num sofá, distante da sala onde Sonny e Montoya traçam planos para o transporte de toneladas de coca para a Flórida. Ninguém lhe presta atenção, pois ela só troca rápidas palavras com Sonny, que a deixa para trás. Quando ressurge, na seqüência seguinte, é que se mostra por inteiro, segura, desenvolta, charmosa, num terninho verde-escuro. Ela se autodenomina “uma mulher de negócios”, espécie de executiva da Irmandade Aryan.


 


                   


Mulher fatal cede espaço à mulher de negócio


                   


 


Difícil não lhe prestar atenção, não só devido ao forte desempenho de Gong Li, a musa do cinema chinês (“Lanternas Vermelhas”, “Amor e Sedução” e “Adeus Minha Concubina”), mas porque destoa das mulheres fatais dos filmes policiais hollywoodianos. Principalmente os filmes noir. Isabella não é lânguida, de passado dúbio, frágil ou transpira a sexo. Não requer condescendência. Ela se defende, manipula, ocupa espaço e sede à tentação de atender ao convite de Sonny para jantar. Não é, sem dúvida, uma mulher qualquer. E, além de tudo, é a mulher do chefão, Jesus Montoya. É ela, Isabella, quem faz “Miami Vice” escapar ao ciclo de filmes policiais ruins que Hollywood produz em série atualmente. Fica-se na expectativa de saber o que acontecerá ao relacionamento entre ela e Sonny. Quem, afinal, manipula o outro para atingir seus objetivos. E o que lhe acontecerá, se o chefão Jesus Montoya descobrir o caso entre ambos?



                     


Dito desta forma parece que “Miami Vice” se resume ao caso entre ela e Sonny. O filme, pelo contrário, trata de infiltração de dois agentes do FBI, Sonny e Tubbs, na Irmandade Aryan, como traficantes, depois que uma tentativa anterior foi frustrada por uma delação. Dois agentes e um informante morreram e, devido a isto, FBI, DEA (Agência Antidrogas Americana) e a CIA decidem retomar o caso. Este tipo de infiltração, já por demais visto no cinema, tornaria o filme banal, caso o roteirista/diretor Michael Mann não incluísse na trama um personagem como Isabella. Isto porque os detetives Sonny e Tubbs são por demais arrumadinhos, perfeitos, versáteis, para tornar o filme complexo. Mesmo os vilões são certinhos, verdadeiros homens de negócios, com a diferença de que podem, se roubados, se tornarem feras. Nada que outros diretores não tenham tratado com mais acuidade e contundência: Brian de Palma, em “Scarface”; Martin Scorcese, em “Cassino” e “Os Bons Companheiros”.


 


                    


Briga de agências favorece o tráfico


                   


Até mesmo o conflito permanente entre as agências americanas que tratam do crime organizado: FBI, CIA e DEA, não é novidade. Elas se engalfinham pela paternidade de um caso, como se tratassem de agências inimigas e não fossem responsáveis pela manutenção do imperialismo ianque. É de uma áspera discussão entre os chefões do FBI, Tenente Martin Castillo (Barry Shabata Henley), e da DEA, agente Fujima (Ciarán Hends) que sai a ordem dada por Castillo para que Sonny e Tubbs viajem à Colômbia para um contato com Jesus Montoya e tentem, a partir daí, se infiltrar na Irmandade Aryan. Desnecessário dizer que o espectador já viu esta trama, inclusive na televisão. O que diferencia “Miami Vice”, baseado na série escrita por Anthony Yerkovich, sucesso na TV nos anos 80, de outros filmes sobre o mesmo tema, é a atmosfera criada pela fotografia de Dion Beebe, a direção de Michael Mann e, sobretudo, ao personagem, repetimos, de Isabella.



                 



Claro que só isto não é suficiente para se produzir um bom filme policial. Os personagens precisam ter vida e reações diferenciadas, não serem meros estereótipos. Colin Farrel, como Sonny, passa todo o filme com uma só expressão. Sua relação com Isabella às vezes parece inconclusa, não cheia de desconfiança, de temor de se apaixonar e, enfim, ser descoberto. Gong Li, pelo contrário, domina a cena, tem momentos em que sua vida aparece por inteiro na tela. Tem passado conhecido, presente nebuloso e futuro incerto. Igual a Jamie Fox, cuja interpretação é cheia de nuances. Apaixonado pela mulher, Trudy Joplin (Naome Harris), ele desmorona quando ela é ferida numa explosão provocada pelos traficantes. O espectador sente o quanto ela representa para ele. Torce-se para que ela se recupere. Nem a propalada cena de tiroteio, tida como igual à da abertura de “Fogo contra fogo” emociona. É igual a tantas já mostradas entre mocinhos e bandidos no cinema.


 


                 


Policial americano virou sucessão de clichês


                


 


Não é fácil inovar num gênero, o policial, que gerou inúmeros bons filmes. Apenas a subtrama em que pontifica Isabella é insuficiente para elevar “Miami Vice” a degraus superiores. Força-se o antigo “gran finale” em que os mocinhos triunfam. Mas sua vitória fica pela metade. Percebe-se que os traficantes conseguem, valendo-se da disputa entre as agências de segurança americanas, exportar seu produto com grande facilidade. Muitas vezes, se valem das coberturas que elas lhes dão para ver fracassar o plano da agência concorrente. E usam para exportar e distribuir sua droga modernos aviões e lanchas, iguais ou melhores do que as dos agentes antidrogas. Estes, por seu turno, sabem quem são e onde se encontram os chefões dos cartéis das drogas. Freqüentam os clubes e bares que eles montam de fachada para encobrir seus negócios no tráfico e tentam fazer de conta que eles são, na verdade, executivos do segmento de lazer. Nada que não se saiba pela mídia.



                 



No final, ao sair do cinema, o espectador pode ficar com a impressão de que o cinema americano virou uma sucessão de clichês, de repetição de temas, com atmosferas diferentes. Reciclar séries de TV, a exemplo do que faz Michael Mann em “Miami Vice”, da qual foi produtor executivo de 1984 a 1989, pode chamar a atenção da mídia e não suscitar discussões acaloradas. As circunvoluções de Sonny e Tubbs de Barranquilia, Colômbia, à Triplíce Fronteira (Paraguai, Argentina, Brasil) confirmam a facilidade com que os agentes americanos circulam por esses países, como se estivessem nos EUA. Até mesmo quando, para estarem a sós, Sonny e Isabella vão passar uma noite em Havana, confirmam isto. Nada lhes acontece. Entram e saem com tranqüilidade. Ou Michael Mann ignora as barreiras entre os dois países, ou a executiva Isabella tinha mesmo trânsito livre em Cuba. Ela diz – e aí Mann escapa – que não faz negócio com a ilha socialista do Caribe. Ah, bom!
          



                    


Hollywood reforça imperialismo ianque


                   


 


Esta dubiedade deixa a impressão de que Mann quer sugerir envolvimento cubano no tráfico, mas não o conclui. Acusações diretas e não comprovadas já foram feitas antes, como mais uma forma de Hollywood prestar serviços ao imperialismo ianque. Cinema e política por mais que se tente negar muitas vezes caminham juntos, e Hollywood é um dos esteios da manutenção do imperialismo norte-americano. Não há isenção e tampouco arte (cinema nos EUA é chamado de “indústria” e assim é tratado pelo governo americano, e não só o de Bush). Há muito mais, e não é de hoje. Serve inclusive para fixar na mente do público quem é – na visão Casa Branca/Hollywood – o inimigo que os EUA quer combater no momento. Em “Miami Vice”, a pretexto do combate às drogas “inclui-se Cuba na rota do tráfego” e confirma-se a imagem dos colombianos e, por extensão, dos latino-americanos como traficantes (é um contraponto à imagem dos árabes como terroristas).



                   


Não é gratuita a inclusão, também, da Tríplice Fronteira (Brasil/Argentina/Paraguai) como pólo da rota do narcotráfico. Chama a atenção para uma zona que está na mira do governo Bush, inclusive com a instalação de bases militares. Sob o pretexto de combate ao narcotráfico, infiltra-se agentes de espionagem e militares nesses países para submetê-los a seu controle político-econômico. Através de uma superprodução de US$ 135 milhões, como “Miami Vice”, o “público passa a aceitar” uma falsa realidade, que é o controle, pelos EUA, da fronteira de seus países, para fazer o que seus governos supostamente não conseguem: lhe dar segurança .


                    


Em “Miami Vice” não há personagem americano como traficante, contrapondo-se aos colombianos da Irmandade Aryan: só os latinos. O chefão da irmandade em Miami, José Yero (John Ortiz), informa que seu sofisticado clube noturno tem filiais em cidades importantes de vários países. Dentre elas, o Rio de Janeiro. Então, sub-repticiamente Mann diz que os tentáculos do cartel estendem-se ao Brasil. As fachadas, comuns nos negócios da Máfia, já mostrados pelos filmes policiais americanos, são continuadas pela Irmandade. Isabella lhes dá a aparência de respeitabilidade ao transitar como executiva nos EUA e na Europa. A diferença entre os executivos dos conglomerados e ela, executiva do cartel, devido a isto, desaparece. Ao vê-la ninguém imagina qual é seu ramo de negócio, dado ao talhe de sua roupa e de seu comportamento.


 


                    


Tráfico: atividade difícil de combater


                   


 


Trata-se, na verdade, da diferença sutil entre negócios “legais” e “ilegais”, que dão a impressão de que ninguém quer eliminar a fusão que, aos poucos, se dá entre os dois segmentos. O tráfico tornou-se um negócio de tal magnitude que eliminá-lo simplesmente pode abalar poderosas estruturas político-econômicas. De um lado, a direita conservadora ficará sem o que combater, para preservar seu poder político-religioso, e de outro os complexos industrial-militar e financeiro sem parte de seus lucros. Há, talvez devido a isto, dificuldade para eliminá-lo. Muitos negócios, não apenas os de fachada, estão em curso e o cinema ao abordá-los, mesmo que superficialmente, pelo menos mostra pontas do iceberg. E fica a dúvida: até que ponto há interesse real de eliminá-lo, se integra o circuito de lazer e diversão, freqüentado por privilegiados e influentes segmentos sociais?



                   


Mann, em “Miami Vice”, mostra sofisticados clubes, ambientes luxuosos, por onde circulam os bem-nascidos; é esse pessoal que sustenta as irmandades. E parece alheio ao que se passa no fundo dos escritórios, nos aeroportos clandestinos, em alto-mar, por onde chega a droga que o embala. Há aqui forte contradição entre o hedonismo desse pessoal (classe média, pequena burguesia e burguesia)  e a tentativa de Sonny e Tubbs de preservar sua integridade física e, porque não, sua vida. Ainda mais diante dos conflitos entre as agências que, supostamente, os defende.



                 


Isabella, que com Montoya, circula num jatinho, é o elo entre esses dois mundos, e sua relação com Sonny indica o quanto de área nublada pode haver na área do combate ao narcotráfico: sua atuação como executiva, traduzida em alto profissionalismo, mostra que ele se sofistica e encontra novos métodos difíceis de combater.  Não porque não se queira, mas porque está intrinsecamente vinculado ao estágio atual do capitalismo globalizado. Um fortalece o outro, combatê-lo de fato seria restringir o chamado livre trânsito do capital flutuante que circula pelo mundo diariamente. E este é exatamente o principal esteio da estrutura financeira atual. Está aí o “calcanhar de aquiles” do capitalismo: criou um monstro que o devora de mansinho.


 



Miami Vice. EUA. 2006. 134 minutos. Fotografia: Dion Beebe. Roteiro/Direção: Michael Mann. Elenco: Jamie Foxx, Colin Farrel, Gong Li, Naome Harris. Ciorán Hinds.

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