Mentiras Sinceras: adultério sem meios tons

Filme do inglês Julian Fellowes usa triângulo amoroso para desnudar vida de casal burguês

               

Um dos principais atrativos do cinema é contar uma história de forma que ela pareça nova. Mesmo que venha embalada com alguns clichês remixados, personagens com frescor e cenários deslumbrantes. Quantas vezes já não vimos filmes como “Mentiras Sinceras?”. Basta uma olhada para percebemos no que vai dar o caso do homem maduro, casado com uma jovem mulher, que conhece um sujeito mais novo? Com algumas variantes, podemos aceitar a mesma narrativa, desde que o triângulo amoroso não exagere nos lugares comuns. Precisa ter um bom gancho para nos convencer de que valeu a pena ficar duas horas no cinema. Nenhuma novidade. Certo?
                
Caímos de novo na trama bem armada, modernizada pela competente direção de atores e um desfecho que nos deixa com a sensação de que vale a pena sofrer por amor. Ou seria uma forma nova de se aceitar o inaceitável: compartilhar a mulher com outro, para que ela não nos escape? Este é o centro de “Mentiras Sinceras (Separete Lies), do roteirista/diretor Julian Fellowes, em sua estréia na direção. O rico advogado James Manning (Tom Wilkinson), casado com a bela Anne (Emily Watson), vêm-se em situação difícil quando ela conhece o milionário William Bule (Rupert Everett), bem mais jovem do que ele. Esta é a parte conhecida da história, óbvia demais para que não cairmos neste conto embolorado.
                
Fellowes, ganhador do Oscar pelo roteiro de “Assassinato em Gosford Park”, de Robert Altman, parece não ter se importado com a obviedade, ao adaptar para a tela a novela de Nigel Balchin, “Away Trough The Wood”. Mergulhou na relação entre pessoas da alta classe; cada uma delas interessada em preservar seu espaço no coração do outro, sem esconder suas intenções. A começar por Anne, cuja sinceridade impressiona pela lucidez e o modo como conduz os dois homens que por ela se apaixonam. Manning vive num vaivém entre seu escritório em Londres e sua casa no campo, sem ter tempo para a mulher. E de novo um velho clichê, o do marido traído por estar por demais ocupado. Enquanto isto, a mulher, Anne, entediada pelos atrasos do marido, resolve fazer-se notar. E o faz à moda antiga: encontra um amante.
                 
A história iria de clichê em clichê, sem nenhuma novidade se a eles não fosse acrescentado outro: o do crime. Mas que importância tem isso? Hoje, muitos roteiristas acham que o público só se interessa por um filme se ele incluir na história um crime. E Fellowes o faz. Bom, neste momento se acharmos que é demais, podemos ir embora do cinema. Não importa mais a belíssima fotografia do mestre Tony Pierce Roberts, nem a envolvente música de Stanislas Syrewicz; já vimos esse filme. Bobagem, é aí que a dupla Fellowes/Balchin inverte a história. O crime é o que menos importa. Está ali para desviar o assunto que a ela, a dupla, interessa.
                 
“Mentiras Sinceras” é um filme sobre a sinceridade que deve haver entre as pessoas, principalmente entre as pessoas que se amam. Ao se enredar no caso com Bule, Anne escapa à mesmice de seu casamento com Manning, mas é pega pelo acaso: o dito crime. Ela não o esconde, nem sua paixão por Bule. Escancara tudo, sem rodeios, diante de um boquiaberto Manning. Sua relação com Anne desaba, sua vida dá volta de 180 graus, ele fica sem poder reagir. Em qualquer relação desse tipo, haveria comportamento diferente: cada um deles iria para um lado e torceria para que o outro afundasse. Mas Anne não deixa que as coisas aconteçam dessa forma: ela mantém o marido sob controle, aguça seu amor, e o faz relacionar-se com o amante, de forma tal que fazem parte do mesmo círculo de relações mais que amorosas.
                 
Manning e Bule tornam-se seres frágeis, indefesos, ante a paixão e o carinho com que ela os trata. Quando parte com Bule para Paris, ela encontra um jeito de manter o marido por perto. Ele, sem alternativa, aceita. Estamos diante da morbidez do amor, da submissão a um tipo de relação que nada oferece, senão a possibilidade de o outro naufragar e tudo voltar a ser o que era antes. Tudo, porém, não será como antes, há uma relação vivida, uma sensação de traição. Mesmo que um dos amantes devolva a amada, o outro ficará magoado. Isso acontece no início, depois, aos poucos, desaparece. Fica tão só a vontade de ter o outro de volta. E Manning fica à espera. Anne vai e volta. Bule o procura para quê? Para falar de Anne. E ela volta.
              
É uma relação de um outro mundo, em que não há mais divisão entre aquilo que é marido, esposa e amante. Tudo se funde; a esposa se torna amante de outro sem grandes culpas, o marido não mais enxerga o outro como rival e o amante não deixa a mulher do outro, nem a quer longe do marido. Tudo se enovela e não se vê o adultério, só a busca do amor no outro. Alguém poderia dizer que este filme se chama “Jules e Jim”, em que Jeanne Moreau, ama Oskar Weerner e Henry Serre e com eles convive. O filme de François Trufffaut é mais sútil e avançado. “Mentiras Sinceras” tem mais dor e mais sinceridade. Se a verdade magoa é porque o ser humano já se acostumou demais com a mentira. Ela é que emperra, não deixa o sentimento aflorar. Quando Anne revela a Manning o que realmente aconteceu no momento do crime, ele quer, a todo custo, incriminar Bule. Mas quando ela lhe revela a verdade, ele muda logo, prefere a mentira.
             
É a mentira que irá sustentar a relação entre eles durante algum tempo. Depois, ela já não os sustenta. Os tempos são outros, tudo hoje é posto a nu. Todas as vidas estão escancaradas. Nada é mais anônimo, segredo, escondido. Nada é mais íntimo, privado. A mídia, no caso de “Mentiras Sinceras”, o jornal estampa o crime em suas páginas e as apreensões emergem. Mesmo para a burguesia isso é verdade. Para Manning também. Ele não suporta guardar segredo quando vê a chance de livrar-se do amante da mulher. Poderia mantê-la afastada dele, mas o modo como ela se comporta o faz revelar aquilo que não deveria. Não há mais diferença entre eles: são três seres que se fundiram diante da necessidade de um se escorar no outro. Livrar-se de Bule, para Manning, é empurrar Anne para os braços do opositor/amante. Melhor dizer-lhe a verdade para que haja possibilidade de ela regressar a seus braços.
           
É sob estes aspectos que “Mentiras Sinceras” contribui para se entender melhor as relações destes princípios de Terceiro Milênio. As razões devem ser ditas para que o outro compreenda por que está perdendo o ser amado. Não por perda de amor, de que o outro o deixe de amar, mais pela necessidade da presença, do compartilhar, não  porque consiga suprir todas as necessidades do lar. É preciso sentimento para além da presença. Esta, por sua vez, é mais que importante, mas deve trazer junto uma boa razão. Manning só irá perceber isto no final, quando tudo havia desmoronado. É então que muda, o desejo de posse é substituído por uma compreensão à qual chegou pela dor. Anne tornou-se importante demais para ele, para que conserve seus antigos preceitos de ser que domina. Seu status mudou no curso dos acontecimentos.
           
Fellowes e Balchin desmontam, assim, o mito do macho e sua muralha atrás da qual esconde seu direito à infidelidade, ao trabalho compulsivo. Mostram a possibilidade de a mulher ser o equilíbrio nessa teia onde deveria ser apenas o elo supostamente frágil, por mais que Anne seja, às vezes, tomada pela culpa por algo pelo qual é responsável, mas que não lhe deixam assumir. É ela, Anne, que desestrutura Manning e o atrai e o repele. Nesse vaivém, convive com o marido e o amante. Na verdade, a ficção espelha muitas vezes a realidade, só que no caso de Anne, ela é por demais avançada; talvez inconscientemente, para que seu estratagema se repita no cotidiano. No mundo real, a mentira ainda é o elo que mantém as aparências e faz com que a verdade seja arranhada a cada instante. É triste, mas é o que acontece.     
             
No final, os clichês de “Mentiras Sinceras” não são tão ruins de suportar. Vêm envolvidos numa trama que desnuda a suposta necessidade de se pôr cortinas num caso para não perder o ser amado. Quantos casais já não fizeram o mesmo quando descobrem que o/a outro/a fechou a porta de uma maneira tão suave que se entrega sem uma palavra? Este é, na verdade, um clichê da vida real.
Mentiras Sinceras (Separate Lies). Inglaterra, 2005, 85 minutos, 14 anos. Direção: Julian Fellowes. Elenco: Tom Wilkinson, Emily Watson, Rupert Everett.           
 

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