Mefisto e a sedução do poder

A Editora Estação Liberdade de São Paulo relança em todo o Brasil Mefisto – Romance de uma Carreira de Klaus Mann, filho mais velho de um dos maiores romancistas do século XX, Thomas Mann, autor de “A Montanha Mágica” e “Morte em Veneza”, obra que tive o prazer de traduzir.

A história do romance mais famoso de Klaus Mann é simples e provavelmente muito comum naqueles tempos difíceis em que a desfaçatez, a perversidade e a barbárie imperavam, em meio ao desemprego em massa e à inflação galopante. Um carreirista oportunista pretende subir na vida a todo custo. É um ator talentoso de uma cidade provinciana da Alemanha no final da década de vinte, que está disposto a tudo para realizar o seu intento. É inescrupuloso e cheio de ambição: ingredientes fundamentais para quem nutre pretensões tão elevadas. O personagem que o consagra no palco e na vida é Mefisto, a encarnação bufa e diabólica do Mal,  criação do escritor símbolo da  Alemanha: Johann Wolfgang Goethe.

O triunvirato detentor do poder na Alemanha nazista, tão bem descrito por Klaus Mann nesse romance, suscita o sorriso sarcástico do leitor, e nos divertiríamos muito mais se não soubéssemos o que estava sendo maquinado e executado por aquelas grotescas figuras esbravejantes. Mas o ator Höfgen não está interessado nessas questões políticas e sociais degradantes; ele ama a arte e a boa vida e se deleita com as benesses e as riquezas proporcionadas por sua proximidade com os todo-poderosos. Torturar, mortificar e matar passam a compor os prazeres cotidianos daquela raça dita superior em sua ânsia desmedida de domínio. E Höfgen até que “se adapta bem a essa sociedade, tem a sua falsa dignidade, seu arrebatamento histérico, seu cinismo vaidoso e o demonismo barato”, e se coloca – a ele e a nós – uma questão decisiva: “Será que não sou um canalha?”

A obra questiona enfim o comportamento daqueles indivíduos que em qualquer época e em qualquer regime político “querem se dar bem”, fazendo da adulação e da esperteza uma prática corriqueira e legítima. Acresce-se a isso a fascinação dos nazistas pela arte da representação no que ela tem de mais superficial: as poses, os gestos grandiloqüentes, o fingimento convincente.

Sem dúvida, a riqueza maior desta obra está em suas leituras múltiplas: da referência à vida real de um grande ator alemão, passando pela sátira das excentricidades nazistas, pela sedução capciosa do poder e pela ambição cega e destrutiva, ao perigoso pacto com o demônio, que no mundo moderno aparece travestido em trajes de gala ou em requintados ternos da moda.

Hoje sentimos nojo ao ver o resultado daquela sanha desenfreada, mas muitas vezes não refletimos devidamente sobre os comportamentos que permitem e possibilitam o surgimento de atrocidades semelhantes em todas as sociedades e todas as épocas. Que além do prazer de nos defrontarmos com a boa literatura, o romance nos estimule também a perceber melhor os desejos e as ambições humanas, que em sua ânsia de se verem realizadas desembocam quase sempre em tenebrosos abismos da alma.

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