Maria e a sua alma

Maria estava na penteadeira, de mesa com um só batom gasto, agora com a caixinha de produtos Atkinsons. Então a felicidade era um produto, aquela miséria miserável de um produto?

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Era de se ver a felicidade com que cruzou o batente da sua casinha na Vila Alegria, com os olhinhos negros marejados. Enquanto abria a caixa, chamou as vizinhas para lhes anunciar – como se elas não soubessem, como se elas não houvessem ouvido o programa no ar – que ela era do mesmo peso da estrela do rádio. E não podia haver dúvida, porque ela abria o frasco do prêmio, e generosa perfumava as mãos, os braços das mulheres:

– Cheira! Cheira! É bom ou não é? Eu ganhei.

Dona Lúcia fechava os olhos e lembrava que conhecia perfumes melhores. Dona Esmeralda sabia, usava extratos mais ativos para atingir as narinas do vizinho Valfrido, mas ambas responderam, de coração, que não havia perfume como aquele. Elas, pensou Jimeralto muitos anos depois, de volta do cemitério, elas queriam dizer que para as condições de dona Maria melhor perfume era impossível no mundo. “Pois a nossa liberdade é limitada”, ele se disse. Quando seria melhor, em um maior esforço, que ele se dissesse “a desgraça das mulheres pobres não tem limite”. Mas isso era tão duro, tão desagradável, que em busca da Maria gorda os seus olhos românticos recusavam, saltavam a extensão e memória funda, aquela que fulgia da mulher que nada tinha, nem mesmo um perfume barato. Daquela Maria que conseguira algo pela beleza de ser muito gorda. Com o peso igualzinho ao da cantora do rádio.

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Então nessa recusa o maduro Jimeralto, ainda que não o desejasse, ia em terror para a casinha do tamanho de um quarto, na insuportável lembrança. Maria estava na penteadeira, de mesa com um só batom gasto, agora com a caixinha de produtos Atkinsons. Então a felicidade era um produto, aquela miséria miserável de um produto? Então os seus olhos não queriam ver, e ele se dirigia para o trânsito, e ele seguia para um bar, porque precisava de barulho, som alto, agitação, gente aos berros, buzinas, zoada de caminhão a derramar óleo, porque ele não queria ver o que viu, o que lembrava e não queria lembrar: dona Maria, sozinha diante do espelho, perfumava-se no pescoço. Ali, a cada gota, ela se fazia caretas. Ela tomava poses, erguia o busto, aquele amado, inesquecível e necessário busto, empertigava-se, sim, como se longo pescoço tivesse, logo ela que tão curto e maravilhoso gordinho o tinha. E levantava sobrancelhas, fazia cara feia, e sorria, perfumada. Isso ele não queria ver, e no entanto uma força irresistível o tomava. Inferno, o garçom não vinha, cadê o uísque, por mil favores, falem comigo, distraiam-me já, ele desejava, porque Maria o chamava ao quartinho célula, a ele que estava escondido a observar aquelas esquisitices na mãe. Maria o chamava ao quarto e lhe dizia:

– Cheire aqui, cheire.

E lhe oferecia o pescoço, e ela lhe oferecia a sua beleza gorda, mas ela não sabia, ela lhe oferecia a própria alma. Ela lhe dava naquele gesto e convite o mais grave, mais que o leite farto dos seios, que ele bebera até os cinco anos de idade. Ela lhe dava uma alma, a pretexto de oferecer o cheiro do Damosel. Quanta crueldade, meu Deus. Maldição, chamem o garçom, maldição, me esqueçam, maldição de mundo, por que não viro éter? O que o capital não faz às pessoas. O quanto o capitalismo machuca. Uma alma de mãe que cheira a marca de produto. Mas não, isso é só um horror, isso é somente algo pior que o horror. Por que não ver, e seus olhos buscam o mar, aquele insensível que se agita do outro lado do calçadão da praia, por que não ver uma reflexão menos sacrificial? Como era bom que as ondas lhe trouxessem uma resposta. Quem sabe se as pessoas não davam uma humanidade aos produtos de mercado? Ou seria mais próprio dizer-se “as pessoas davam a humanidade aos produtos de mercado”? Mas dona Maria não estava no mercado, ele queria divagar. O gelo no copo derretia rápido. O gelo dava frieza em troca da própria destruição, era natural. Dona Maria não estava no mercado, mas nele entrava um breve instante por força do peso, que por todos era rejeitado. Chega!

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Então ele se pôs mais longe, mais longe que o continente africano, mais longe que o outro lado do globo, e tão perto, tão perto que ele via, no fim da noite sozinha, a se fazer caretas, a tomar expressões distintas frente ao espelho, como se pudesse escolher uma cara, uma outra Maria, Maria só do pescoço para cima, que ela lhe dava para cheirar. Meu Deus, como era bela. E então os olhos de Jimeralto marejaram diante do mar, fizeram chuviscar miúdo nas ondas verdes, porque ela era tocante, destrutiva, autodestrutiva, como se nela, na sua feição diante do espelho, houvesse uma semelhança com o gelo, agora. Não na temperatura, que no espelho da tarde era quente. Mas como uma matéria que se dá quando se transforma. Maria se dava absoluta para que ela nele tivesse vida. Para que ela nele tivesse vida. Então ela achou o seu peso, gordura e vida. Maria somente nele teria vida. Porque ela também lhe dera e lhe dava e lhe dá vida. Mesmo agora, no maldito bar, onde se destrói pelo falso esquecimento, naquela lembrança que lhe recusavam, que o próprio filho recusava. Maria não mais está sozinha diante do espelho, na penteadeira onde existia um só batom e agora há um produto Atkinsons. Ela se dá e se ama, é amada, enquanto se vê no perfume. Maria e a sua alma.

*Do romance “O filho renegado de Deus”

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