“Maria Antonieta”: Frivolidade rebelde

Uma Maria Antonieta humanizada e rebelde surge no filme da diretora norte-americana Sofia Copolla, que tenta eximí-la das culpas da realeza e de símbolo de uma época cheia de fausto e desdém para com o povo

Há muito de solitário e melancólico no poder absoluto. Nada que lhe é externo lhe diz respeito até ser colocado em xeque. Neste momento nada mais poderá ser feito e a queda será a resposta do povo a tantas desditas. Em “Maria Antonieta”, da americana Sofia Copolla (“Encontros e Desencontros”) a vida na corte de Versailles segue alheia à miséria e a ebulição que germina a transformação radical, que mudará as relações entre as classes e colocará duas delas: a burguesia e o proletariado como matrizes centrais do capitalismo. Embora com interesses antagônicos são fruto de um sistema que, uma vez vitorioso, deixará de ser revolucionário. As razões surgem sutis no comportamento da realeza e, principalmente, na dos monarcas que se sucediam no poder na França no século VIII, com Luis II, o Cago (846/879). E a diretora Sofia Copolla o concentra na solidão e nas buscas da jovem que viria a ser símbolo do fausto e da ostentação no crepúsculo do feudalismo: Maria Antonieta (1755/1793).



                



Aos 19 anos, herdeira do trono austríaco, ela é enviada à França para se casar com o delfim (herdeiro) Luis Augusto (Jason Schwartzman), jovem mais interessado em caçadas do que em sua relação com a futura rainha francesa. Uma manobra de sua mãe, a rainha Maria Teresa (Marienne Faithfull) para evitar a derrocada de seu império. Maria Antonieta (Kirsten Dunst), ainda adolescente, passa a viver no Palácio de Versailles, hoje Museu do Louvre, sem participar das decisões da corte. Submete-se ao ritual da realeza, da etiqueta que a obriga a ter um batalhão de empregadas a lhe ajudar nas mínimas ações. O primeiro choque – também para o público – ocorre logo nas primeiras seqüências quando tem que se desfazer de tudo o que lembre seu país natal. É obrigada a se afastar até mesmo de seu cão de estimação. A partir dali deveria absorver a cultura francesa, nos mínimos detalhes.


 


               


 Luís XVI preferia caça a rainha Maria Antonieta


               


Distante das intrigas da corte, das manobras políticas, ela se entrega a passeios, observações juvenis, enquanto o futuro rei, Luís Augusto, via-se às voltas com cães de caça e raposas. É em sua solidão que se debruça Sofia Copolla para analisar o poder de uma monarquia que ruía à medida que ela se integrava à realeza, sem perceber o que se passava em volta. Cabia-lhe apenas exercer seu papel de futura rainha, sem o qual a aliança franco-austríaca seria posta em risco. Os imensos cômodos, de altas paredes rebuscadas de ouro, móveis luxuosos, tudo ali lhe parecia deslocado, demasiado. Não lhe era permitido mudar nada, apenas seguir o cerimonial, estar à mesma mesa que o marido, mas distante dele, à espera que ele degustasse o que lhe serviam. Situação pouco lisonjeira para uma futura rainha, que entraria para a história como símbolo da derrocada de um sistema.



               


 Uma imagem que a historiadora inglesa Antonia Frazer, em cujo livro Sofia Copolla baseou o roteiro de seu filme, retoca para torná-la uma insatisfeita, alguém da nobreza que se entediava com os intermináveis rituais de banho e vestir, de aceitar as frivolidades do rei Luís XV (Rip Torn) e de sua amante Madame Du Barry (Asia Argento). E que, aos poucos, despe-se da pompa e entrega-se a flertes, noitadas e deleite com os amigos da jovem nobreza européia. Surge uma Maria Antonieta rebelde; disposta a se desfazer dos elaborados penteados, vestidos luxuosos e obrigações reais. Numa seqüência que bem ilustra sua transformação, ela experimenta vários vestidos e sapatos e se delicia com variada delicatessen. Depois, tudo aquilo é deixado para trás, uma vez que ela prefere a “vida simples num palacete no meio rural” ao fausto de Versailles. Nisso consiste sua rebeldia. Num olhar para além dos extensos jardins do palácio real.


               


 


Diretora humaniza rainha a personagem


                


Muito ajuda nesta caracterização de Maria Antonieta, a interpretação de Kristen Dunst, frágil, sensível, angelical. As mudanças em seu comportamento são quase sutis, salvo por momentos em que impõe sua ação à nobreza, obrigando-a a mudar seu ritual no teatro. Ela não se insurge, mesmo quando pressionada, aos ditames da corte. Ao ser obrigada a satisfazer às vontades de sua mãe, temerosa do rompimento do acordo com a França, ela obedece, mas à sua maneira. No final, o público quase esquece que Sofia Copolla a humaniza, torna-a uma jovem forçada a aceitar os ditames da política, sem nada saber do que era tramado nos corredores e nos gabinetes da corte. Lança mão de uma trilha sonora regada a rock´n´roll para pontuar o ápice da rebeldia de Maria Antonieta: a seqüência do baile, em que ela termina por se transformar numa transgressora.
               


 


Difícil aceitar, mesmo diante de uma condução equilibrada, cheia de nuances, que demonstram a competência da diretora Sofia Copolla, que o perfil de Maria Antonieta traçado por ela e Antonia Frazer corresponda ao real. Ambas a mostram como perdulária, dada à ostentação própria da realeza numa época de grande fome e miséria, desemprego, más colheitas e custo de vida alto na França, com a nobreza arruinada e a realeza endividada. Suas reações ao longo do filme a tornam, pelo contrário, aceitável, uma jovem que colocada diante de outra realidade teria comportamento adverso, pois nele há o embrião de quem quer se libertar das imposições da corte. Talvez, nos querem dizer elas – Sofia Copolla e Antonia Frazer – que tudo fosse devido à solidão, ao abandono a que ela foi relegada, longe da família, para satisfazer alianças na grande política européia da época, para manter suas famílias no poder. Isto é, no entanto, insuficiente.


              


Povo e ministros a odiavam
               
            


 Esses retoques são licenças dramatúrgicas tomadas por Sofia Copolla para “desvendar” a rainha Maria Antoinieta para o público. Talvez tomada pelo fascínio que a realeza ainda exerce sobre a burguesia e, até mesmo, segmentos intelectuais. Maria Antonieta foi uma mulher de seu tempo, rainha com tudo a seu dispor. Usou-o da melhor maneira que pôde, a ponto de ser vista como frívola e perdulária. Os franceses a odiavam  não só por isto, mas também por suas intromissões políticas. Muitas delas evitando que ministros reformadores levassem em conta as idéias do Iluminismo de liberdade, igualdade e fraternidade. Quando foi desencadeada a Revolução Francesa (1789/1799) tentou levar o marido, Luís XVI, à resistência. Nada tinha de distante das tramas da corte de Versailles; era um de seus centros. Estas particularidades não emergem do perfil traçado por Sofia Copolla em seu filme.



             


Mesmo com estas falácias, ela e Antonia Frazer mostram de onde vem o ódio dos republicanos – Robespierre, Danton, Marat, para citar apenas estes – contra a monarquia, concentrada no século 18 nos herdeiros de Luís II, o Gago. Enquanto, a nobreza se divertia, se entregava ao fausto, a luxúria, à caça à raposa, à ópera na qual não se podia nem ao menos aplaudir a performance dos artistas – e cuidava de sua disputa com a Inglaterra, nas ruas o povo minguava. Em alguns momentos, a política aparece em “Maria Antonieta” como se para dar o tom do que era a França real naquele século. Num deles, Luis Augusto, já Luís XVI, analisa o apoio à luta dos Estados Unidos, então colônia, contra a Inglaterra. Para depois sentenciar, quando os gastos excederam ao permissível, que eles foram demasiados. Denota uma crítica aos excessivos gastos com a guerra, sugerida como um dos motivos da derrocada da monarquia francesa.


 


              


Filme é contraditório em sua caracterização


              


Como se vê, “Maria Antonieta” é um filme contraditório. Sua diretora e roteirista, Sofia Copolla, não assume ser ele uma obra política, diz que se interessou apenas em saber como era, de fato, a rainha que passou à história como autora de uma frase: “Se não têm pão que comam brioche”, supremo escárnio à situação dos franceses miseráveis. No entanto, ao abordar a vida de uma personagem dessa importância não escapa à essência política, ainda que através de seu comportamento. Prova que se pode fazer um filme político apenas com personagens que simbolizem a nobreza ou, se quiserem, capitalistas. Ela, Sofia Copolla, se trai numa cena de grande impacto, quando na iminência da queda do Regime, Maria Antonieta aparece na sacada do Palácio de Versailles, os manifestantes, que gritavam com grande alarido, se quedam em silêncio, ela se curva diante deles, há um interregno de perplexidade, e eles entram em ebulição e triunfo.
              


 


Não há como não ser tocado por esta cena. Está ali a rainha que percebeu seu crepúsculo e se curvou diante do verdadeiro e emergente soberano. Vale mais que mil análises e todo um filme para se chegar a esta cena. Fica-se com a sensação de que ela, sim, entendeu a inutilidade do fausto que desfrutou às custas daquele povo miserável. O que não a exime de culpa, de ter estado distante dele, sem o ter notado sequer. Daí ter sido guilhotinada em 16 de outubro de 1793, depois de Luís XVI, pondo fim ao reinado dos herdeiros de Luís II, o Gago. Sofia Copolla e Antonia Frazer por mais que tentem não a tornam uma heroína, tão só uma jovem submissa às imposições da corte, que, para escapar à solidão, insurge-se à sua maneira. Nada que coloque em risco a monarquia, mas que a satisfaz em sua ânsia de fazer algo que destoe da vida na corte.


               


Comportamento foi ditado pela circunstância


               


Quando tudo vem abaixo, a realeza não tem como mais se sustentar no poder, ela tem pelo menos uma atitude digna em seu contexto de classe de não fugir à sentença que lhe foi imposta. Principalmente numa Revolução que modificou as relações de classe, com conseqüências que se prolongam até hoje. Ela e Luís XVI são postos diante do inevitável: ser sentenciados pelo que representavam. Sua frieza neste momento tem mais de sua posição de mulher, de esposa, do que de rainha. Uma solidariedade ditada pelas circunstâncias de quem simbolizava uma época e esta foi punida pelos que a sucediam em nome do povo. Demonstra que uma classe quando sucede a outra, na criação de um novo sistema, deve por abaixo todo o arcabouço que sustentava sua antecessora. Este é um dos legados da Revolução Francesa, válido ainda hoje, ainda que se diga que o atual momento histórico não o permite.


 


“Maria Antonieta” (Marie Antoinette). Drama. EUA/França/Japão. 2006. 123 minutos. Direção/roteiro: Sofia Copolla. Elenco: Kirsten Dunst, Jason Schwartzman, Marianne Faithful, Judy Davis, Steve Coogan, Asia Argento e Rip Torn.


 


(*) Oscar 2007 de Melhor Figurino: Milena Canonero.               

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