“Marcas da Vida”: Adeus Liberdade individual

Filme da diretora escocesa Andrea Arnold trata da vigilância eletrônica nas grandes cidades e o perigo que representa para a liberdade de movimentos dos cidadãos

Câmeras instaladas em pontos estratégicos das megalópoles, ou mesmo de cidades pequenas ou condomínios fechados, já viraram lugar comum. Sob a justificativa de estarem ali para coibir assaltos, agressões, distúrbios e pequenos furtos, elas terminam por monitorar os movimentos dos cidadãos em seu cotidiano. Qualquer ação suspeita pode gerar abordagem da polícia ou prisão para averiguação. Muitos desconhecem os mecanismos estruturados para vigiá-los e como as imagens gravadas em equipamentos de última geração são usadas a posteriore. Vive-se, assim, numa sociedade em que o Estado controla, através de programas incentivados pela iniciativa privada, as relações sociais, políticas e econômicas dos que circulam pelos locais públicos.
                      


Embora mescle seu tema com a relação de Jackie (Kate Dickie), operadora de circuitos de câmeras de segurança na periferia de Glasgow, capital da Escócia, a diretora Andrea Arnold, em seu filme de estréia, leva adiante a visão de que o cidadão perde, a cada instante, sua privacidade, em nome da segurança da sociedade. E denúncia que, de repente, esse mecanismo pode ser usado para outros fins. Na primeira parte do filme, vemos Jackie operando as câmeras, vasculhando terrenos baldios, estacionamentos, lojas, flagrando pessoas e delas desconfiando. Cada detalhe é esquadrinhado pelas câmeras, com o foco aumentado ou reduzido, para melhor avaliar o que cada cidadão faz. Numa das cenas, um deles leva uma mulher para detrás do muro de um terreno baldio, e Jackie logo aciona a patrulha. Como se tratasse apenas de furtiva relação sexual, ela desmobiliza os policiais.


                    


Agentes da vigilância eletrônica ficam invisíveis


                    


Sua relação com as pessoas que vigia chega aos mínimos detalhes, à particularidade, à fraqueza. Caso do velho que perambula com seu cão pela rua e pára diante das vitrines das lojas. O cão, um buldogue velho e gordo, já não se movimenta como antes. Jackie se compadece dele e, uma vez fora do trabalho, demonstra conhecê-lo, sem que ele saiba como. Nem ela se dá ao trabalho de lhe explicar, coisa que, certamente, não pode fazer, dada à especificidade de sua função. Ela se transforma, a cada instante, num ser onipresente, controladora de equipamentos igualmente invisíveis. Tem um poder inigualável. Pode denunciar, seguir, denunciar a quem quiser, basta que infrinja qualquer código de segurança, seja ele criminal, político ou social. E os cidadãos, em razão de uma tranqüilidade não mais digna deste nome, perdem o direito de agir espontaneamente em suas andanças pelos espaços públicos, uma das conquistas da cidadania.
                   


Esta redução do espaço público, controlado pela vigilância eletrônica, é um dos traços mais perversos do Estado Neoliberal. Incapaz de zelar pela segurança do cidadão, ele transfere sua responsabilidade para a iniciativa privada. Um mecanismo paralelo que cuida do patrimônio e da vida dos extratos privilegiados da sociedade globalizada. Utiliza-se para isto da escuta eletrônica, dos circuitos internos de vigilância e de um gigantesco exército particular, formado por policiais da ativa, ex-policiais, agentes de segurança (homens e mulheres contratados com este objetivo), fazendo girar mensalmente milhões e milhões de dólares. Esta privatização, feita “em nome da tranqüilidade dos cidadãos”, não tem evitado a insegurança em que eles vivem. Não se trata de insegurança causada pela possibilidade de ser assaltado, mas de não poder dispor de seu tempo e de suas ações como for de seu interesse, sem provocar desconfiança e abordagem policial.


                    


Personagem age de forma misteriosa
 
              


Jackie, a cada momento que sai às ruas, não é uma cidadã comum, é mais do que isso: é uma vigilante das ações individuais. Ela não suspeita, flagra seja lá quem for no instante em que pratica uma ação tida como inaceitável. A diretora Arnold a mostra em seu trabalho, rodeada de câmeras  e de dezenas de aparelhos de TV, enquanto opera, atenta, o painel de controle da central de vigilância urbana. Num desses momentos, ela desconfia que um homem que se movimenta numa rua comercial já lhe causou profunda dor. Está solto, tem de podar seus movimentos. A necessidade de vingança se instala. O público não sabe porque ela o faz: começa a perseguí-lo. É então, que começa o questionamento – se sua função é vigiar, pôr o sistema de segurança em alerta para evitar danos ao patrimônio e à pessoa, por que ela age assim. Está se valendo do poder estatal para uma ação particular. E não estamos em um filme de ficção científica: Arnold situa sua história no momento histórico atual.
             


Ao desviar a ação para a busca de uma identidade, Arnold não perde o rumo. “Marcas da Vida” fala também sobre a dor sofrida por Jackie ao perder o marido e a filha, num suposto acidente de automóvel. Há, no entanto, uma culpa, a de Clyde (Tony Curran), por dirigir embriagado. Ela não sabe lidar com este fato, embora Clyde já tenha sofrido pena por sua irresponsabilidade. Ao segui-lo, de forma misteriosa, sem se identificar, penetrando na intimidade de Clyde, Jackie se torna personagem dos filmes em que as vítimas não se contentam com a justiça do Estado e procuram agir por conta própria. Esta desconfiança na Justiça, enquanto poder, é também uma das facetas do Estado burguês decadente, que já não cumpre com a sua função, pois se transformou um poder por demais ligado à classe dirigente. O cidadão, ainda que simbolizado por Jackie, ela mesma representante do Estado, não a vê – a Justiça – como capaz de garantir a condenação do criminoso, de uma forma que o satisfaça. Então, ele quer fazer justiça a seu jeito.


               


Jackie usa seus encantos para consumar seu plano


             


A frieza com que Jackie penetra a intimidade de Clyde é assustadora. Ela se move com desenvoltura, usa seus atributos femininos, envolve Clyde de tal forma, que ele termina por sucumbir a seus encantos. Mas a relação entre eles não é normal, de sensualidade e diálogos românticos, funciona mais como jogo carnal. A atriz Kate Dickie tem aparência rústica, fala entrecortada, jeito misterioso, que muito servem a seu personagem. Clyde é desenvolto, agressivo, desconfiado. Quando os dois, enfim, vão para a cama, a diretora Arnold filma-os sob o ponto de vista de Jackie – ela tem prazer, se deixa usar, como se manipulada por ele. Depois, Jackie, num gesto premeditado surpreende o público. O que era visível, torna-se surpreendente. Ela age movida pelo ódio. Difícil entender seus motivos. Arnold sabe conduzir a trama para caminhos que transformam “Marcas da Vida”, num suspense. No entanto, não faz de Clyde um bandido. Aos poucos, também ele vai se desvendando. E a mútua atração entre eles se estabelece. Ambos são carentes e precisam um do outro. Só não sabem como manter uma relação, pontuada pelo ódio, em nível equilibrado, em que o sentimento aflore sem bloqueios ou ressentimentos.
             


 Toda esta trama não desfaz o novelo da segurança eletrônica, da responsabilidade de Jackie pelo que faz. Embora use seus colegas de trabalho, ela não pode lhes revelar os motivos de seu comportamento. O próprio público passa todo o filme sem sabê-lo. Isso faz de “Marcas da Vida” um filme político, com matizes de suspense. Talvez a diretora e roteirista Andrea Arnold pudesse ter ido mais longe em sua denúncia dos males da segurança eletrônica. É como se perguntasse: e se um dos agentes de vigilância eletrônica tomasse a lei e a justiça em suas mãos, o que aconteceria? Ela não dá a resposta. Fica por conta do expectador a reflexão sobre tão importante sistema, implantado nos grandes centros urbanos do Brasil e do planeta, com sérios riscos para a liberdade de movimento do cidadão. A burguesia já controla o Estado, em suas mais diversas unidades de poder, se pode também vigiar os menores movimentos das pessoas, a liberdade individual acabou.


 


“Marcas da Vida” (Red Road). Drama. Reino Unido/Dinamarca. 2006. 113 minutos. Direção: Andrea Arnold. Elenco: Kate Dickie, Tony Curran, Martin Compston.



 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor