Macartismo tupiniquim

O ataque de um grupelho fascista ao ex-senador Eduardo Suplicy e ao prefeito Fernando Haddad, em São Paulo, trouxe-me de volta a dramática questão da classe média e, sobre esta classe, a já notória frase de Marilena Chauí de que ela “é uma abominação política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante”. 

Recorde-se que Suplicy acompanhava o prefeito na livraria Cultura, no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, onde Haddad seria entrevistado pela rádio CBN.

O que se viu – gritaria, xingamentos, slogans antipetistas, perseguições – manteve o padrão dessas manifestações da classe média reacionária que vêem ocorrendo atualmente, nas mais inusitadas circunstâncias. Ocorreram, por exemplo, no edifício onde reside, no bairro paulistano de Perdizes, a família de Walquiria Leão Rego, professora de teoria política da Unicamp, que ousou publicar um estudo sobre o Bolsa Família, ou no velório do líder petista e ex-senador José Eduardo Dutra, em Belo Horizonte, diante do qual os mais exaltados desfilaram com faixas do tipo “Petista bom é petista morto”, ou ainda em hostilidades em restaurantes e shoppings e com mais intensidades nas redes sociais.

Personalidades como Jô Soares e Marieta Severo, por se pronunciarem contra o impeachment da presidente Dilma, médicos cubanos, imigrantes do Haiti e qualquer um que demonstre publicamente simpatia com o governo ou apenas defenda a legitimidade do mandato presidencial, também vêm sendo alvo do “macartismo tupiniquim, definição do professor e pesquisador do CNPq Adriano Codato, que coordena o Observatório de Elites Políticas Sociais do Brasil e leciona Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nem mesmo o Enem salvou-se da fogueira dessa intolerância, ao ser criticado por inserir questões sobre gênero e racismo, consideradas pautas de esquerda.

Tais eclosões mostram uma classe média que, entra década e sai década, não muda essencialmente de natureza. Recordo-me de sua histeria contra o presidente João Goulart e suas reformas de base, batendo panelas e realizando marchas e, pouco depois, apoiando em massa o golpe dos militares.
Além de fascista, violenta e ignorante, na definição de Marilena Chauí, a classe média é também oportunista, pois afetada pela política econômica da ditadura, foi para as ruas em 1968, subitamente convertida à democracia. Mas logo que começou a prosperar, com o chamado “milagre brasileiro”, a partir de 1969, lá estava ela dando força para a fase mais dura, mais terrorista do governo dos militares, pouco se importando que centenas de opositores fossem levados aos porões, torturados, muitos mortos ou simplesmente desaparecidos. Quando a crise do petróleo, em 1973/74, afetou seu bolso, a classe média fez ressurgir ideais democráticos e apostou na oposição ao regime. Odiou Sarney e amou Fernando Henrique, que no final do governo caiu em desgraça, pois havia quebrado o Brasil e, com ele, sua classe média. Chegou a apoiar Lula, com seu charme de operário vencedor, em 2002, mas logo fez renascer seu ódio de classe, multiplicado ao paroxismo após as eleições de um ano atrás, marcado desde então pela extrema agressividade, pelo racismo, antipetismo e antiesquerdismo.

Do que reclama a classe média, onde seus interesses foram afetados pelos governos Lula e Dilma? Responde o sociólogo Emir Sader: “Em primeiro lugar, na prioridade das políticas sociais e na extensão do mercado interno de consumo de massas, com a distribuição de renda que acompanhou a retomada do desenvolvimento econômico”. Para ele, “a já clássica frase de que “os aeroportos estão virando rodoviárias” segue sendo a mais significativa da reação de setores da classe média à ascensão de amplos setores populares”. É isso, tais setores elitistas não suportam os pobres, os consideram pobres ignorantes, irracionais e incompetentes, e lhes causa ojeriza qualquer política de distribuição de renda como, por exemplo, o “Bolsa família”, classificada de assistencialismo, as cotas raciais e, de um modo geral, o acesso dos pobres a bens de consumo considerados privativos dos setores remediados.

Uma pesquisa do instituto Data Popular, citada pelo blogue Pragmatismo Político, mostra que, para 48,4% dos entrevistados, “a qualidade dos serviços piorou, agora que eles são mais acessíveis”, e 49,7% disseram preferir locais “com pessoas do mesmo nível social”. Ainda segundo a nota do blogue, o presidente do Data Popular, Renato Meirelles, declarou haver uma “resistência muito forte das classes superiores em aceitar os recém-chegados” [ao mercado de consumo]. Alguns dados dessa pesquisa são estarrecedores, como os que apontam que mais da metade dos consumidores defendem que as empresas devem oferecer produtos diferenciados para ricos e pobres. Há os que consideram que pessoas malvestidas deveriam ser impedidas de entrar em certos locais, ou que deveria haver elevadores separados.

O ódio de classe da classe média brasileira – pois é exatamente disso que se trata – não surgiu com a eleição de Lula e Dilma e suas políticas de inclusão. É algo entranhado no espírito dessa gente, apenas potencial até que um catalisador o detone. Foi o que ocorreu a partir de 2002. O sentimento de classe, portanto, fala mais alto que as conveniências sociais, a alma mais pacífica e cordial pode subitamente transformar-se, se provocada, numa explosão de beligerância.

Essa questão da classe média é complexa demais para caber mais amplamente num breve e modesto artigo jornalístico, cujo objetivo é apenas vincar, pontualmente, o papel desempenhado por essa camada intermediária como um dos obstáculos para as transformações sociais em nosso país. Nas circunstâncias políticas atuais, ela não tem o menor pejo – nem o terá mais para frente – em avalizar o fascismo, fazendo-o com a estridência de sempre, com a violência e a ignorância de sempre.

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