Luta por Justiça: Sistema mantém racismo

“Em filme sobre a pena de morte baseada só na cor da pele, cineasta estadunidense Destin D. Cretton revela a persistência do racismo nos EUA”

    É como se a sentença do juiz fosse sustentada apenas pela acusação de que o condenado praticou o crime hediondo apenas por ter pele negra. Mesmo que as supostas provas materiais e os testemunhos estejam cheios de lacunas e os denunciantes não apresentam os fatos concretos. Tudo não passa de ardil para sustentar os interesses da elite de Montgomery, Alabama. Com estes fatos reais, baseados na biografia do advogado afrodescendente Bryan Stefenson, escrito pela jornalista Jeannete Walls (21/04/1960), o cineasta estadunidense Destin Daniel Creton atesta o quanto, em 1987, o racismo ditava as sentenças sem qualquer prova.  

        Com seu co-roteirista, Andrew Lanhan, Creton descontrói o “o filme de tribunal” ao centrar sua narrativa em vários centros de ação, as chamadas subtramas. O eixo central está na penitenciária onde vários condenados aguardam a execução no chamado corredor da morte. É com eles que o advogado afro, Bryan Stefenson (Michael B. Jordan), formado em Harvard, irá se inteirar dos motivos de, mesmo alegando inocência, não tenham seu caso levado de novo ao tribunal. Ele mesmo sentiu-se agredido quando o segurança branco o revistou ainda que a lei não o determine.

        A câmera do diretor de fotografia Brett Pawlak registra a movimentação do atordoado Herb Richardson (Rob Morgan) e do equilibrado Walter McMillian (Jamie Foxx) pelo estreito espaço de sua cela, protegida pelas grades de ferro. Todos têm em comum o fato de serem afrodescendentes à espera da execução. Stefenson logo percebe que a esperança é sentimento raro entre eles e seus companheiros da penitenciária do Departamento de Apelação. Ter esperança de que a justiça seja feita inexiste em nenhum dos sentenciados à cadeira elétrica. Em cada 9 afros sentenciados nos EUA nos anos 80, apenas 1 não foi eletrificado.

        Herbe sofre por ter jogado granada

        O desafio para Creton não é só traduzir em imagens e enquadramentos a situação-limite vivida, principalmente, por McMillian e Richardson. Mas concentrar o espectador na história real destes dois homens, descendentes de escravos traficados para os Estados Unidos. Agora estão numa situação que para eles se mostra como a continuidade de um sofrimento que lhes nega o senso da liberdade humana. A saída é deixá-los externar o que sentem, enquanto Stefenson procura injetar-lhes confiança e uma longínqua esperança de que a apelação é a saída.

        O que vale nesta longa sequência é a dupla Stefenson/ Pawlak manter a câmera à altura do rosto destes dois personagens. Notadamente de Herbe, destroçado psicologicamente. Seu rosto cheio de rugas e dores traduz a um só tempo o medo e a culpa por ter obedecido ordens superiores no campo de batalha na Guerra do Vietnã (1961/1975). Não se vê só penalizado pelo crime cometido por outro, mas também pelas vítimas entre os inimigos. É o personagem do filme e grande interpretação do veterano Richardson. É difícil não se apiedar de suas mutações de estado de choque.

        Não menos aflitiva é a caracterização de McMillian, feita pela dupla Creton/Lanhan. Embora equilibrado, ciente de sua condenação à morte, ele não se esforça para sair logo dali. É o inverso de Herbe, seu caso se dá por ser dono de um caminhão, do qual retira o sustento de sua família. Este fato ocorrido na histórica Montgomery, palco da marcha pelos direitos civis liderada por Martin Luther King, em 30/03/1965, é emblemático. Um afro, enfim, e vê-se livre do patrão e ainda tem seu próprio meio de vida. Ele mesmo não entende o motivo de ser acusado do assassinato de uma jovem branca.

         Elite bloqueia ascensão dos afros-descendentes

        Creton utiliza várias nuances para dar conta das múltiplas razões de a elite branca de Montgomery ter escolhido McMillian para bloquear outras tentativas de ascensão socioeconômica de herdeiros de escravos africanos. Nada disso, porém, é externado nem por eles. Contudo, o próprio Creton o faz em duas sequências: quando o policial rodoviário o para e revista seu caminhão e outra quando o segue pela rodovia, indicando que ele é suspeito de algo. O espectador logo capta as razões de ele estar na fila do corredor da morte. Seu crime é pensar ter conquistado a liberdade.

        Tão significativo quanto a caracterização destes personagens é a opção feita pela dupla Creton/Lanhan ao centrar a narrativa no jovem advogado Bryan Stefenson. Mostra a tendência de Creton em abordar questões sócio-políticas. Ao contrário dos demais formados em Harvard como ele, sua opção foi aderir à organização “Iniciativa de Justiça Igualitária”, espécie de ong dedicada à defesa dos condenados que não possuem recursos para defender-se. Toda infraestrutura é montada pela advogada branca  Eva (Brie Larson) para a defesa dos afros condenados à morte.

       Ainda que esta forma de defesa igualitária tenha hoje experiências tão elogiáveis, inclusive do próprio Estado, não deixa de ser grande avanço. Em várias sequencias deste “Luta Por Justiça”, Creton atesta o quanto ela contribuiu para a sustentação da defesa dos afros condenados à cadeira elétrica. A equipe, coordenada por Eva, cuida das petições às instâncias superiores, as datas das audiências e julgamentos e a localização das testemunhas. O que deixa Stefenson livre para suas próprias iniciativas e avaliação da possibilidade de cada condenado e, claro, McMillian e Erbe          A dupla Creton/Lanhan acaba reduzindo em duas as tramas centrais do filme. Assim o torna ágil e dotado de sucessivas ações dramáticas:

       Decisões do tribunal são tomadas pela elite branca

        I – As ações dos afros estão concentradas nas celas do corredor da morte, principal aceso à sala da cadeira elétrica. São nelas que Erbe sente a proximidade da execução e entra em pânico cada vez que se lembra de seu ato na Guerra Vietnã. O próprio espectador torna-se seu protetor por ansiar que Stefenson consiga reverter sua pena de morte. Esta dualidade entre culpa e inocência não depende de prova, mas do interesse da elite branca de Montgomery na execução do soldado que se sente culpado. E não há mais diferença entre seu ato e o cenário onde se deu a explosão.

       II – As decisões no tribunal controlado pela elite de Montgomery são acertadas de antemão. São nelas que Stefenson se desdobra para defender os casos de Erbe e McMillian. Ambos são alternados em sequências a envolver o confronto do advogado dos afros com o promotor Tommy Champan (Rafe Spall) e o juiz (Alex Van). O interesse de ambos é ocultar provas e ameaçar as testemunhas, caso do jovem Darrel Houston (Darrel Britt-Gibson) e o dispersivo e amedrontado Ralph Myers (Tim Blake Nelson). Aqui a Justiça foi banida e só existem sentenças arrumadas.

        O espectador amante da arte das imagens tem na admiravelmente construída sequência do corredor da morte grande exemplo de suspense e construção dramática. É quando o condenado percorre o corredor da morte, ciente de que, a partir dali sua existência depende dos volts da cadeira elétrica. Nada mais lhe resta de esperança, senão que a tortura acabe logo. Olhar algum cruza com o seu, pouco interesse tem de fazê-lo. Há, contudo, plateia para assistir seu infortúnio com seus olhares de vingança e masoquismo. Há, ainda, cadeiras especiais para autoridades.  

       Condenação na cadeira elétrica lembra Hitler 

       O que mais choca qualquer vivente são as cenas do ritual de preparar o condenado à morte. Neste “Luta Por Justiça”, Creton o alterna com as sucessivas e demarcadas batidas de canecas de alumínio nas grades de aço das celas em que estão os condenados ao corredor morte. O ensurdecedor barulho não cessa de evidenciar o adeus dos que esperam seu instante de ser eletrocutado por arbitraria decisão da elite branca.  Todos que a sofrem são afros, cuja condenação à cadeira elétrica rememora a doentia determinação de Hitler para eliminar os judeus.

        A forma encontrada por Stefensonpara desmontar as tramoias da elite branca de Montgomery é fragilizar e desmascarar seus pilares mais representativos. As sequências no tribunal são eletrizantes, pois o ardil tão repetido por eles termina por sustentar o plano arquitetado pelo jovem advogado. Justo quando McMillian vê suas esperanças esboroarem. Como nos velhos filmes de suspense, ele é o próximo a caminhar pelo corredor da morte. É onde o garoto Darrel e o atrapalhado Myers se sentem incapazes de sustentar qualquer declaração fora da realidade. Estão agora vulneráveis e sujeitos a algo impensável. Não há quem os proteja mais.       

       A consequência desta crueldade racista disfarçada em punição aos afros acusados de terem praticado ato criminoso é a continuidade da Guerra Civil Americana (12/03/1861-09/05/186) por outros meios. A elite de Montgomery pelo visto em 1987, portanto há 33 anos, montou uma estrutura para agir de forma a manter sob controle a comunidade afro-estadunidense. O jovem Stefenson dotado de incansável capacidade para entender as tramoias da elite racista do Alabama tece importante armadilha para deixá-la refém de si mesma. As testemunhas por elas manipuladas são frágeis demais para sustentar o ardil de quem as domina.

         Coadjuvantes brilham mais que as estrelas

       Ao contrário do que vê em grandes filmes, nos quais as estrelas brilham mais do que os coadjuvantes, neste “Luta Por Justiça” quem também dá o show é o experiente Tim Blake Nelson (Ralph Myers), com a boca torta e incapaz de articular uma frase inteira. Dá sempre a impressão ora de estar bêbado, ora ser dominado por algum ser maligno. De todos os sentenciados à morte, McMillian ainda pôde ver-se entregue a si mesmo e não à elite branca cujo objetivo era ficar livre de quem não se achava inferior a ela. Episódio ilustrativo do racismo a predominar ainda hoje nos EUA. Basta lembrar-se dos afros executados à bala por qualquer resistência.

Luta por Justiça. (Just Mercy) EUA. 2020. Drama. Trilha sonora: Joel P. West. Edição: Nat Sanderes. Fotografia: Bret Paulak. Roteiro: Destin Daniel Creton/Andrew Lanhan, baseado na biografia do advogado Bryan Stefenson, escrito pela jornalista Jeannete Walls. Diretor: Destin Daniel Creton. Elenco: Michael B. Jordan, Jamie Foxx, Brie Larson, Tim Blake Nelson, Rob Morgan, Darrel Britt-Gibson, Rafe Spall, Alex Van.

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