Lições de uma greve patriótica

“Desde que existe trabalho assalariado que o pólo mais frágil dessa luta, os trabalhadores, enfrentam o poder dos patrões e do estado, perseguindo, demitindo, encarcerando e mesmo eliminando as lideranças dos trabalhadores”.

Em tempos de refluxo do movimento popular, em especial dos sindicatos, em tempos de avanço da combinação de ultraliberalismo e fascismo que caracteriza o Brasil dos nossos dias, uma categoria ousou enfrentar de maneira mais decidida o governo Bolsonaro. Trata-se dos petroleiros.

Desde pelo menos 2015 que os trabalhadores brasileiros enfrentam a brutal ofensiva do capital. De lá pra cá a recessão, o ataque à engenharia nacional e a ofensiva contra direitos históricos não deram trégua. De maneira geral os trabalhadores não têm perdido só direitos, mas também seus instrumentos de luta com a asfixia financeira das suas entidades sindicais. Mas para além da defesa dos seus direitos, da própria democracia cada vez mais mutilada e ameaçada, as categorias mais destacadas da classe trabalhadora brasileira encontram-se diante de outro grande desafio, a defesa da soberania nacional. Defesa dos direitos e do emprego, das liberdades democráticas e da soberania nacional. Os petroleiros souberam enfrentar esses três desafios em uma greve histórica.

Os petroleiros, organizados na Federação Única dos Petroleiros e na Federação Nacional dos Petroleiros estavam diante de três grandes problemas: Defender os direitos e o emprego da categoria, uma vez que a direção da Petrobras descumpria um acordo coletivo que ela mesma havia assinado com a intermediação do Tribunal Superior do Trabalho (TST), demitindo centenas de trabalhadores do quadro da empresa; Impedir o acelerado processo de desmonte da maior empresa brasileira, com a venda ou mesmo a simples desativação de alguns dos seus ativos mais importantes; e fazer tudo isso em meio à feroz perseguição da diretoria da empresa e do próprio poder judiciário, que de protetor dos direitos trabalhistas tornou-se algoz dos trabalhadores.

A questão das demissões na FAFEN (Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados) do Paraná foi, sem dúvida, o estopim do movimento. Outras unidades já haviam sido desativadas, mas os trabalhadores eram realocados em outras plantas. Dessa vez a empresa resolveu simplesmente fechar a fábrica e demitir todos os trabalhadores, cerca de 400 do quadro da empresa e mais 600 terceirizados. Ver companheiros do quadro da empresa sendo sumariamente demitidos despertou não só o sentimento de solidariedade da categoria em nível nacional, como o próprio sentimento de preservação do próprio emprego, pois esses trabalhares da FAFEN seriam apenas os primeiros de um amplo processo de demissão e desmonte em curso.

A força das greves reside conceitualmente, em prejudicar a produção. Sem trabalho não há produção e sem produção não há lucro, esse é o instrumento de barganha do proletariado historicamente. Desde que existe trabalho assalariado que o pólo mais frágil dessa luta, os trabalhadores, enfrentam o poder dos patrões e do estado, perseguindo, demitindo, encarcerando e mesmo eliminando as lideranças dos trabalhadores. No caso dos serviços públicos é um pouco diferente e a tática dos grevistas é de infringir o maior custo político possível ao governante, até que ele ceda e se conquistem avanços.

No caso específico da Petrobras, havia que considerar que hoje a maior parte dos derivados de petróleo, em especial a gasolina, o diesel e o gás de cozinha não são produzidos no país, mas sim importados. É exatamente isso, o Brasil exporta óleo cru e importa derivados, mantendo suas refinarias subutilizadas. Como o projeto principal do governo, com o endosso dos acionistas minoritários, é justamente a venda de ativos, a direção da Petrobras estava disposta a arcar com possíveis prejuízos causados pela queda na produção da empresa por conta da greve. Além disso, o governo, através da direção da empresa, já sabia que poderia contar com a colaboração integral do poder judiciário para derrotar os grevistas.  

Vale a pena lembrar que essa greve já vinha sendo preparada há bastante tempo. Desde a greve de 2015 que os petroleiros perceberam que não bastava mobilizar a categoria para a defesa de suas reivindicações. O quadro que já se desenhava naquele tempo era de ataque contra a própria empresa e seria necessário mobilizar a sociedade como um todo em defesa da Petrobras Pública. Por outro lado, nas duas últimas tentativas de greve da categoria, em 2018 e em 2019, o TST atuou imediatamente a serviço do governo, declarando a ilegalidade do movimento. Ou seja, os petroleiros sabiam que era preciso angariar o apoio da sociedade e sabiam também que a repressão seria rápida e contundente.

Uma greve rápida e total, que paralisasse completamente a produção, seria colocada imediatamente na ilegalidade e todo o aparelho repressivo do estado poderia ter sido acionado, como em 1995, quando o exército ocupou as refinarias e os sindicatos tiveram que arcar com multas nunca antes vistas. Uma greve mais gradual, sem a paralisação completa da produção, mas com a interrupção dos revezamentos de turno, colocaria a operação em risco e poderia sim trazer impactos quanto à produção, mas tendo em vista os estoques da empresa, a margem de manobra operacional, com equipes de emergência formadas por gerentes e os instrumentos de pressão como corte do ponto dos grevistas, havia uma possibilidade muito grande de a greve ser derrotada pelo cansaço e pelo desgaste dos trabalhadores.

Por outro lado vivemos numa sociedade onde a informação se dissemina com incrível velocidade e onde um uso efetivo de redes sociais pode potencializar rapidamente apoios e inclusive auxiliar na convocação de mobilizações. O uso competente das redes sociais, inclusive com a criação de redes de solidariedade de movimentos, políticos progressistas e personalidades influentes, combinados com uma narrativa que mobilize amplos setores pode transformar, em pouco tempo uma luta como uma greve de petroleiros em uma grande mobilização nacional, consolidando uma vitória política para a categoria.

Na histórica greve de 2020 os petroleiros souberam usar muito bem de inovadoras táticas de mobilização, tanto da própria categoria quanto da sociedade organizada. Atitudes ousadas, como a ocupação de uma sala do edifício sede da Petrobras no Rio de Janeiro, ajudaram a catalisar a atenção da opinião pública e a mobilizar a categoria. O sentimento de defesa das centenas de companheiros sob ameaça de demissão na FAFEN criou uma grande cadeia de solidariedade. O movimento foi num crescente com declarações de apoio por parte de políticos, entidades e personalidades progressistas de todo país, habilmente disseminadas pelas redes sociais, culminando com um grande ato em defesa da Petrobras e da soberania nacional no dia 13 de fevereiro que levou milhares às ruas do Rio de Janeiro.

No fim, após cortes de pontos, aplicações de multas milionárias aos sindicatos e muita coação dos trabalhadores a categoria conseguiu, através do TST e com o inestimável auxílio de parlamentares, trazer a diretoria da Petrobras para a mesa de negociação. Lamentavelmente não foi possível anular as demissões dos trabalhadores da FAFEN. Mas foram anuladas as multas aos sindicatos e os cortes de ponto, conseguiram-se algumas compensações aos trabalhadores demitidos e recuperaram-se alguns direitos que haviam sido retirados unilateralmente pela empresa.

Mas sem sombra de dúvida a grande vitória dessa greve foi política. Os petroleiros conseguiram, por alguns dias, colocar a questão da soberania nacional na ordem do dia. Conseguiram demonstrar a amplos setores da sociedade que o verdadeiro responsável pelo aumento abusivo do preço dos combustíveis é o governo e sua política equivocada de preços e que a Petrobras poderia, se utilizada corretamente, ser fator de estabilidade e modicidade dos combustíveis, ao contrário do que ocorre hoje.

Talvez o evento que tenha coroado a vitória política dos petroleiros tenha sido a reunião de parlamentares de vários partidos com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia e do Senado, Davi Alcolumbre, onde ambos se comprometeram a buscar maneiras de reaver as prerrogativas do legislativo quanto à alienação de ativos da Petrobras e de outras estatais. Desde que o STF decidiu, em junho de 2019, que subsidiárias de empresas estatais poderiam ser vendidas sem o aval do legislativo, a Petrobras tem transferido bilhões de reais em ativos à iniciativa privada, numa escancarada privatização por esquartejamento. A greve dos petroleiros reabriu no parlamento a possibilidade de luta no sentido da proteção do patrimônio nacional, ou pelo menos que se possa usar o congresso nacional como trincheira na defesa das empresas estratégicas para o Brasil.

Colaborou: Pedro Lúcio Góis e Silva –  Diretor do Sindicato dos Petroleiros do Rio Grande do Norte (SINDIPETRO/RN)

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