Jovens Polacas

As personagens deste “Jovens Polacas” se locomovem em estreitos e pouco iluminados espaços e passam a ideia de que o […]

As personagens deste “Jovens Polacas” se locomovem em estreitos e pouco iluminados espaços e passam a ideia de que o diretor-roteirista Alex Levy-Heller quer mantê-las numa zona proibida. Tudo que ocorre com elas é furtivo e entre quatro paredes. Esta decisiva opção será objeto de depoimentos da personagem Mira (Jaqueline Laurence) a concentrar a narrativa ao longo de 96 minutos. É como se ela controlasse todos os elos dramáticos da história pouco conhecida das catorze judias europeias no Brasil do início do século XX. Não é, porém, nada elogiável, mas necessária.

Em princípio trata-se de um drama sobre jovens judias alemãs, russas, francesas e polonesas que migraram para a América Latina com a certeza de que sua miserável vida logo seria um mar de rosas. Assim lhes prometeram os mafiosos da organização “Zwi Migdal”, sediada nos Estados Unidos, Argentina e Brasil. Havia promessas de encontrarem casamento, emprego e dinheiro tão logo desembarcassem no Rio de Janeiro. Em seu lugar encontraram cafetões dispostos a prostitui-las nos bordéis e cortiços da Praça XI, hoje Cidade Nova, onde estão os prédios da gestão pública.

Ao tecer o roteiro de “Jovens Polacas”, Levy-Heller fez ousadas opções dramatúrgicas, narrativas e de trama. O tema em si já é explosivo por tocar em rituais e preceitos judaicos, pouco adaptados pelo cinema. O espectador fica noventa e seis minutos diante de prostitutas judias, fechadas em quartos, onde a ação em si é substituída pelos depoimentos de uma delas, Mira (Jacqueline Lawrence”) na velhice. Em algumas sequências elas são substituídas por Santa (Lorena Castanheira), mãe de Mira, e por Sabina Wald (Luiza Pitta). Ambas falam direto para a câmera.

Esta alternância de situações, ambientes e personagens dá a impressão de Levy-Heller estar pondo o espectador diante de duas realidades no passado e no presente. Não só isto, ele se exime de desenvolver as sequências de modo a que elas façam sentido. Os reais opressores a brotar da exploração cotidiana jamais são configurados. Inexiste uma relação amorosa e de promessas não cumpridas. Justos os que deveriam ser ressaltados para justificar possíveis reações das inexperientes e analfabetas garotas judias. Como a narrativa foi construída fica impressão de que elas passaram a viver num universo consentido.

O contraponto estabelecido por Levy-Heller é o depoimento da idosa Mira ao jornalista Ricardo (Emílio Orciollo Netto) em busca de material para sua tese de mestrado. Ela termina por desenvolver em palavras o que deveria estar em parte em poderosas imagens. Enfim, a ação se resume ao que a personagem já idosa conta sobre o que tornou seu passado uma sucessão de sofrimentos. E, assim, o que moldou seu presente se resume à memória que quase apaga a exploração e a violência do opressor. Enfim, os dois centros de ação, espécies de subtramas sem sustentação dramática real, acabam por tornar o explosivo tema só na memória da filha e da mãe.

O interessante, mesmo assim, é Levy-Heller unir as encenações das sequências, ou seja, a “ficção” com o que transcorre no bordel, ao “documentário”. É a realidade configurada nos depoimentos de Mira ao jornalista Ricardo. Ele, sim, deixa explicita a opressão, a exploração, a miséria e, sobretudo, o peso que é submeter-se aos tabus do judaísmo. A prostituição as afastou do cotidiano e da relação com os judeus e judias brasileiras. Não podem sequer frequentar as mesmas sinagogas. E pior, se morrerem não poderão ser enterradas no cemitério judaico.

Nesta dualidade, a narrativa se desenvolve com os mafiosos na sombra. A violência deles não aparece, muito menos a vida noturna do Rio de Janeiro para a qual as profissionais judias muito contribuíram à época. Nem o cafetão aparece, justo ele que sempre controla os ganhos do dia com os frequentadores. Não se trata de valer-se do clichê, mas dar conta do sofrimento das jovens judias num país estrangeiro onde chegaram cheias de esperança e vivem agora numa espécie de inferno onde mafiosos e cafetões as exploram. Isto aparece vagamente na relação Mira/Sabina.

A melhor sequência da “subtrama da ficção” é Sabina, ainda garota, perceber a real profissão de Mira. Com sua inocência, ela ignora o ritual de aproximação do quarto, quando a mãe desaparece por algumas horas. Levy-Heller em vez de construir toda uma explicita sequência dá ideia de que a menina apenas relanceou o que se desenrolava na cama. Ficou, entretanto, o trauma, a ideia de perda da inocência. É o único momento em que as imagens se mostram mais reais do que a ficção e, inclusive, a tentativa de criar a “realidade” através dos depoimentos da idosa Mira.

Quem termina por ocupar este espaço longe da dualidade é Ricardo. É um personagem a emergir do “mundo real”. Ele busca em suas entrevistas com as chamadas “escravas brancas” transformar sua tese num documento. Termina por insistir com a própria Mira, envolvida em seus dilemas e frustrações, para lhe revelar tudo que pode elucidar. O que se vê pela câmera de Levy-Heller é a idosa revolvendo seu passado de escrava que não a dignifica, mas a põe na história no Brasil.

Este tipo de configuração narrativa e de personagens femininos permite ao espectador traçar um paralelo entre as “escravas brancas” do início do século XX com os segmentos de mulheres que hoje fazem do corpo seu meio de ganho financeiro. Não se pode ignorar a estrutura de exploração em meio às armadilhas do tráfico de drogas e da prostituição. É uma mutação pouco abordada pelos cinemas nacional e internacional. No árduo resgate que Ricardo busca fazer tem a contribuição de sua namorada Anita (Talita Fauser), a participar em pé de igualdade com ele.

É outra época, as armadilhas mudaram, exigem hoje outro olhar e vivência. Entre os dois não há jogo obscuro, ela é a matização da mulher liberada do Terceiro Milênio. Realista são as sequências das quais ela participa, com total naturalidade. Ainda mais por entender o que de fato está em jogo na busca de Ricardo para concluir sua tese. Levy-Heller faz sua câmera flagrá-los em grande plano, mostrando o quanto poderia ter desenvolvido mais as ações das personagens judias. Elas terminam sendo apenas parte da memória de Mira e não são abordadas em sua inteireza.

Faltam as personagens catalizadoras empenhadas em expor a frustração por terem de vender-se abaixo de suas expectativas. Fazer o contraponto nas falas de Mira e de Ricardo não é o bastante. Inexiste concretude visual. Imagens que prostituição, máfia, cafetões, dinheiro e miséria mergulhariam o espectador na realidade dilacerante das judias europeias no início do século XX. O tema é forte o bastante para o espectador captar a realidade a imperar no Rio de Janeiro àquela época.

Ainda assim, o realismo por meio do qual Levy-Heller põe o espectador na terceira parte deste “Jovens Polacas!”, explicita a validade da abordagem dramática construída em cima da busca feita por Mira. O próprio espectador tem de esmerar-se para entender quem é, afinal, a idosa. É quando todo ritual judaico, as restrições e as proibições são escancaradas. Dá para entender o papel da judia em busca de seu espaço e sua livre afirmação em sua luta contra a opressão da mulher.

Sua câmera deixa os espaços/cenários fechados para registrar a busca de Mira em meio ao turbilhão de aflitivas recordações. São ruas e veículos e vielas a levá-la ao passado e ao “reencontro” com quem perdeu há muito qualquer elo. Dá para dimensionar e tipificar sua dor e aflição, pois lhe foi negada a vivência comum com seus entes queridos. São longas sequências nas quais Levy-Heller exercita o suspense e o mistério.

Há, deste modo, o espaço a ser preenchido pela memória e a sensação de Mira de que está prestes a desvendar o que jamais imaginara fazer.

Não menos importante é Levy-Heller construir longa sequência na qual sobressai a capacidade de a mulher desafiar tabus. A cada lembrança de Mira sobre os impedimentos sofridos por suas companheiras judias, ela avança cemitério adentro em busca da liberação feminina e da certeza de ter feito o justo. O próprio espectador se vê na obrigação de refletir a respeito da exploração e repressão da mulher no universo das relações cotidianas em sua casa, no trabalho, em sua religião e nas ruas. Enquanto mulher e judia tem o mesmo direito que o homem de ser vista como igual.

Mesmo com sua abordagem centrada em Mira, por opção dramatúrgica e narrativa, o roteirista/diretor deveria contrapor o que ela enfrentou com os dilemas de outras duas judias, pelo menos. Enriqueceria não só a história em si, mas permitiria ao espectador fazer seus próprios contrapontos. Livros como “Baile das Máscaras”, da professora Beatriz Kushnri (Editora Imago) e “Jovens Polacas”, da escritora Esther Lagman (Editora Rosa dos Ventos), base para o filme homônimo, abordam com grande volume de dados o tema adaptado para o cinema por Levy-Heller. No entanto, não é uma obra menor, o tema em si já é por demais desafiador.

Assista o trailer

Jovens Polacas. Brasil. Drama. 2020. 96 minutos. Produção: Alexandre Rocha. Edição: Gabriel Pinheiro. Trilha sonora: Ricardo Gomes. Fotografia: Miguel Vassy. Roteiro/direção: Alex Levy-Heller. Elenco: Emílio Orciollo Netto, Beta Loran, Jacqueline Laurence, Flavio Migliacclio, Talita Feuser, Lorena Castanheira, Luíza Pitta.

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