Heróis do Recife

No herói dos dicionários escapa a generosidade silenciosa, anônima, escapam os homens e mulheres que viveram como se nem nomes tivessem, entes de inscrições apagadas no cimento dos túmulos, sem rastro sequer do símbolo cristão da cruz.

Escultura: O Vendedor de Mel, de Abelardo da Hora

Os dicionários dão o corriqueiro significado para a palavra herói: pessoa dotada de coragem, valor, força, ações magníficas acima do comum dos homens. Ou para usar a definição mais técnica, que copio:

“Filho da união de um deus ou uma deusa com um ser humano; semideus. Mortal divinizado após sua morte; semideus. Indivíduo notabilizado por seus feitos guerreiros, sua coragem, tenacidade. Indivíduo notabilizado por suas realizações”.

Mas já ali, no sentido implícito “acima do comum dos homens”, os dicionários mostram marcas fossilizadas de uma coisa tão antiga quanto falsa, desde o estrago causado por Cervantes com o Dom Quixote, quando narrou o ridículo de um homem que imitava os grandes e inacessíveis heróis. É claro, continuam a existir sujeitos notáveis pela coragem, que é um valor além dos músculos, da estatura ou força física. Mas por que acreditar que um valor tão digno seja único e excepcional, a ponto de fazer de alguém “O Herói”? Por que uma qualidade acima da média entre os homens? Em uma definição tão estreita não caberá a maravilha humana. Ou seja, a significação mesquinha exclui a qualidade que vem a ser o ato de uma pessoa contra os próprios e urgentes interesses. Nesse herói dos dicionários escapa a generosidade silenciosa, anônima, escapam os homens e mulheres que viveram como se nem nomes tivessem, entes de inscrições apagadas no cimento dos túmulos, sem rastro sequer do símbolo cristão da cruz. Por isso não falarei  dos heróis mais conhecidos, sem dúvida, heroicos no sentido crasso ou civilizado, como Frei Caneca, Joaquim Nabuco, Josué de Castro, Paulo Freire, ou Nelcy da Silva Campos, o prático do porto que salvou o Recife em 1985 de explosões e incêndio.

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Lembro os sem nomes, aqui nomeados pela primeira vez. Lembro a professora Termutes, do Ginásio Ipiranga, que sumiu no tempo. Ela, Termutes, a professora Termutes, ensinou a todos os alunos a dádiva da leitura em voz alta, e de tal modo que parecia formar atores de rádio, pelo que ela sabia extrair do texto a leitura com pausas, ênfases, inflexões na voz conforme o sentido da palavra escrita. No antigo segundo ano primário.

Lembro Euclides, o desenhista Euclides, soldado de polícia aposentado depois de um AVC, “derrame”, como chamávamos esse mal. Euclides ensinava a desenhar de graça a quem aparecesse, na terra, no chão de um beco da Rua Alegre, ou sobre a riqueza de um papel de embrulhar pão, mas sempre os desenhos de perfil de duas  cabeças: primeiro, de um sargento da polícia militar de quepe, com destacada pala; depois, a de um índio, com exuberante cocar, que era o símbolo da TV Jornal do Commercio. Mas como Euclides desenhava bem as suas duas únicas figuras! Quanta paciência ele punha na mão trêmula ao desenhar o perfil do sargento que ele não havia conseguido ser, e com tal zelo que em Euclides descia líquido  da boca, uma baba que umedecia o chão.

Lembro Jussara, de pele morena e misturada no rosto com traços de indígena. Pequena de altura, mas elegante, docemente perfumada, com uma inteligência e graça que poucas vezes pude ver depois em qualquer mulher adulta. Quanta generosidade havia na sua beleza. Ela, tão franca e altiva, se deixava amar e sabia que era amada pelos olhos menos belos, os meus, inclusive.

Lembro Zelita, a moça solteira, Zelita, solteirona, que era discriminada por sofrer de epilepsia. Perdoem a barbárie, mas o costume era assim, pessoas recebiam o tratamento de inválidas, estúpidas e loucas, porque de repente caíam entre convulsões. Quem tocasse na sua baba seria eletrocutado, passaria também a sofrer descargas nervosas. No entanto, nesse Recife bárbaro, Zelita se erguia e ensinava aos meninos contas de dividir, imensas, com divisores de quatro ou cinco algarismos, sorrindo, que era sua maneira de estar com os meninos. Zelita erguida a nos ensinar contas de dividir, pensávamos. Engano. Zelita nos ensinava coração. No chão da terra sem calçada, em aulas magníficas sem pagamento e sem cátedra. Sabemos hoje, Zelita nos desejava e abrigava a todos como filhos, de todos os tamanhos.

Lembro a professora Rosa a ensinar desenho e artes plásticas aos meninos pobres do Colégio Alfredo Freyre. Alta, magra, com uma dedicação e afeto por aqueles jovens que um dia, talvez, quem sabe, se Deus provesse, poderiam ser ilustres pintores. Sua bênção, professora Rosa.

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Lembro Dona Nicinha, a gorda, mãe de Spinelli, que era uma cozinheira magistral, que teve os dons elogiados por Gilberto Freyre. (O que é prova de muito bom gosto do velho sociólogo.) Dona Nicinha abria as portas da sua casa de pobre, de paredes de taipa, de trabalho mantida pelo marido, o gráfico Lindoso, outro herói em silêncio. Dona Nicinha abria a sua casa todos os domingos para receber altos convidados, as pessoas amigas da sua altura e condição social. Quando não, de pior status. Todos ali compareciam em estado de prelibação, à espera da Sétima Maravilha do Arruda e do Recife: o rocambole salgado, macio, a joia da gastronomia máxima de todos os domingos. Compareciam na casinha de taipa da Rua do Triunfo, para deixar ainda mais satisfeita Dona Nicinha, que contente ficava com a nossa emocionada satisfação.

Lembro os vendedores de mel de engenho, que esquecidos da sua profissão, em prejuízo do seu pequeno lucro, estendiam uma conchinha de mel para as mãos dos meninos sem dinheiro. Lembro e lembro. E noto enfim que o traço comum a todos esses heróis foi a doação do próprio corpo e da própria alma a outros, uma doação que vinha da sua pessoa toda, íntegra e total. Eles, que tão pouco tinham para dar, deram mais do que seria muito dar: a sua pessoa inteira.

Meus doces e inesquecíveis heróis do Recife.

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