Fundamentalismo religioso como arma política

O uso de discursos e símbolos religiosos para legitimar projetos de poder não é algo novo. A história está repleta de exemplos onde a piedade religiosa é a máscara sob a qual a barbárie é justificada.

Não falaremos aqui dos inúmeros episódios em que a supremacia religiosa foi obtida pela invasão, pelo saque e pelo assassinato de povos inteiros. Voltemo-nos, de imediato, para a América Latina deste século XXI, a partir de dois exemplos emblemáticos. No Brasil, um apologista da tortura, entusiasta das armas, com um discurso de ódio foi eleito com o voto massivo dos que se dizem cristãos. Na Bolívia, um golpe de estado é perpetrado contra um governante acusado de defender a cultura indígena a qual pertence boa parte da população daquele país. O gesto teatral do golpista adentrando a sede do governo em La Paz portando uma bíblia não deixa dúvidas sobre o papel religião na fabricação de consensos, mesmo que tais consensos envolvam o uso da força para garantir a supremacia de uma determinada visão de mundo e de um projeto político.

Por outro lado, não é de hoje que na América Latina a religião se transforma em braço da política conservadora. No Brasil entre 1962 e 1964, um padre católico, o padre Patrick Payton, enviado por Washington, liderou grandes mobilizações contra uma suposta ameaça comunista e degradação dos costumes. A militância conservadora católica formada pelos segmentos médios urbanos da sociedade saiu às ruas por Deus e pela pátria, em defesa da tradição, da família e da propriedade. Um movimento que se dizia apolítico, dirigindo críticas moralistas à política, como se fosse a fonte de toda degradação social, contribuiu decisivamente para os rumos políticos do país, uma vez que ofereceu o aval para a deposição do presidente João Goulart e o mergulho do país no obscurantismo. Naqueles episódios, a ala conservadora e tradicionalista do catolicismo, em clara oposição aos pressupostos do Concílio Vaticano II exerceu a condução hegemônica dos fiéis. Em meados dos anos setenta, ainda na ditadura militar, mas em outro momento político, a presença do catolicismo progressista, ancorado nas teses do Vaticano II e nos pressupostos da Teologia da Libertação foi significativa meios populares e nas periferias das grandes cidades, mas foi dizimada pelo ressurgimento conservador que atravessou o catolicismo em todo o pontificado de João Paulo II. A saída do catolicismo progressista das periferias é tida por muitos estudiosos do tema como uma das razões do avassalador crescimento do neopentecostalismo nas comunidades populares, não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Hoje, em pleno século XXI, é inegável o avanço do cristianismo de matriz protestante, notadamente o segmento neopentecostal. As igrejas neopentecostais e seus respectivos lideres ampliaram, nas últimas duas décadas, sua influência enquanto instância de mediação dos dramas e necessidades vivenciados pelos trabalhadores, no mesmo período histórico em que o neoliberalismo e as transformações no mundo do trabalho provocam o esvaziamento de instâncias coletivas de luta como sindicatos, associações, etc.

Mas não é apenas na classe trabalhadora que o chamado segmento evangélico avança. A “teologia da prosperidade”, carro-chefe de muitas igrejas para a atração de fiéis, vincula sucesso financeiro à generosidade e perseverança das contribuições que o crente destina à sua igreja chegou também à classe média, levando à uma substituição quase que completa da religiosidade de devoção pela religiosidade de resultados. Na perspectiva dos teólogos da prosperidade, a conquista de uma vida melhor torna-se um projeto estritamente individual, mesmo que que levado a cabo no espaço comum dos templos, resultado da relação pessoal com a divindade, mediada pela igreja e por seu líder religioso. A crença na ascensão social individual é acompanhada pela descrença no Estado e nas instituições políticas, criando o caldo de cultura no qual se desenvolvem visões de mundo conservadoras, defensora da meritocracia, avessas a qualquer projeto que se proponha minimamente distributivo da riqueza socialmente produzida. É assim que o ideário das igrejas, principalmente o das igrejas neopentecostais, torna-se funcional ao neoliberalismo uma vez que referenda o bem articulado projeto político de fragilização do Estado enquanto instância garantidora de direitos.

É essa funcionalidade ao projeto neoliberal que abre espaço para que o poder religioso de persuasão e convencimento exercido pelas igrejas transforme-se também em poder político, levando para as instâncias do Estado seus valores, visão de mundo e interesses econômicos e financeiros, fazendo com que o Estado laico, conforme prevê a Constituição, torna-se uma ficção.

Mas, para que o poder religioso das igrejas transforme-se em poder político, é necessário que a massa de fiéis seja mobilizada para além da crença religiosa e da assistência material imediata promovida pelas igrejas, como vem acontecendo nas periferias. Para que o crente seja mobilizado conforme as conveniências de um projeto de poder é preciso fazer com que se sinta ameaçado naquilo que toque suas emoções e seus afetos. A história tem mostrado que a própria crença religiosa e seu conjunto de valores é um poderoso mobilizador de afetos. Afetos positivos como a generosidade e a solidariedade, mas também afetos que levam à violência e à brutalidade, como, por exemplo, o medo. O medo suscitado por uma suposta ameaça que ponha em risco crenças e valores que sustentam convicções religiosas. Assim, para a mobilização em larga escala, é preciso que seja criado um inimigo comum que unifique a massa de fiéis. Esse inimigo comum pode assumir várias faces, conforme os interesses que colocam essas forças em movimento. No nosso momento contemporâneo o inimigo a ser vencido pelo fundamentalismo é qualquer governo ou grupo político que ouse reconhecer a humanidade dos que sempre foram considerados escória e dizer que o Estado deve estar a serviço de todos os seus cidadãos e não apenas a serviço de uma determinada classe social, etnia ou fé religiosa. É assim que a pauta moralista ganha corpo entre cristãos de várias denominações e se transforma na justificativa para depor governos que destoam do receituário dos donos do dinheiro. Isso explica porque governos que eliminam direitos arduamente conquistados contem com a conivência e o beneplácito dos que se dizem cristãos desde que mantenham a pauta moralista em dia. É assim que, na América Latina, o projeto de poder econômico, social e político das igrejas, já colocado em movimento, combina-se perfeitamente com o projeto do grande capital para barrar avanços obtidos por governos populares e progressistas. E com um agravante: a oposição a esse projeto anti-povo, sendo abertamente política, é ferozmente combatida, pois torna-se, na aparência, uma espécie de “guerra santa” esvaziada da dimensão política, com direito à citações bíblicas interpretadas e ajustadas segundo as conveniências do momento. A disputa de narrativa torna-se difícil para o campo progressista pois a luta não se dá apenas no campo da racionalidade política mas é propositalmente levada para o campo dos valores, das crenças e da moral como sendo uma prescrição divina e não uma criação humana, no qual as posições (políticas) sobre uma determinada pauta são consideradas como atos de rebeldia contra o sagrado, devendo ser combatidos, inclusive com o uso da violência. Atiçar o fundamentalismo religioso é, portanto, uma arma política das mais poderosas e, é preciso que se reconheça, tem sido habilmente usada pelas forças que apostam no retrocesso civilizatório.

Nesse cenário tão desafiador, o enfrentamento a ser construído pelas forças democráticas e progressistas é estabelecer ou ampliar, onde já existe, a interlocução com lideranças religiosas que assumem um compromisso popular e que, muitas vezes, de forma solitária, se posicionam contra os absurdos dentro de suas próprias denominações religiosas. Há padres, pastores que, mesmo sofrendo graves ameaças, têm sido incansáveis na denúncia de práticas que são a antítese do que, em termos humanísticos, minimamente se espera de quem professa um credo religioso. São lideranças que, fazendo parte do campo instituído por suas religiões, possuem o lugar de fala que permite chegar onde outros discursos não chegam. Porém, tal interlocução só será possível se os democratas e progressistas partirmos do princípio de que a religiosidade é uma dimensão constitutiva da vida do povo, a “utopia mais gigante”, como diria Antônio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere e que, nas condições históricas que temos, é preciso entender a amplitude e os significados culturais, ideológicos e políticos do fenômeno religioso e suas contradições, subordinando esse entendimento às condições e necessidades concretas da luta de classes em seu estágio atual. Talvez seja esse o maior desafio.

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