“Frankie”: O que ainda nos espera

“Com roteiro do brasileiro Maurício Zacarias, cineasta estadunidense Ira Sachs discute rito de passagem de estrela de cinema na terceira idade”

        Há algo para além do intencionado no convite feito pela estrela de cinema Françoise Crémont (Isabelle Huppert) a seus familiares e amigos. Com preciso objetivo, ela os reúne em sua mansão no balneário de Sintra, em Portugal. A câmera do diretor estadunidense Ira Sachs (21/11/1965) se fixa em vários centros narrativos, a partir da trama estruturada pelo roteirista brasileiro Maurício Zacarias (49 anos). O que lhe permite construir sua narrativa de forma caleidoscópica. Nesta tessitura, centrada na vida da fictícia atriz francesa, o mistério mescla o “real com imaginário”.

         O centro propulsor da história é formado por Frankie, seu companheiro Jimmy (Brendan Gleeson) e seu filho Paul (Jérémie Rennìer). De certa forma, eles dão ideia de que o centro da vida da família é Frankie. E não poderia ser diferente. Porém, ela dá a impressão de que por trás de seu comportamento há algo mais. É este mistério que tira deste “Frankie” a certeza de ele ser apenas um drama familiar. Isabelle Huppert consegue passar para o espectador que a personagem interpretada por ela tem outras motivações. É frágil, tem postura esquiva, mas se impõe.

         Percebe-se desde o início da narrativa tratar-se filme de personagens. O que o impulsiona é própria Frankie ao tomar a si todas as iniciativas, principalmente ao se relacionar com o filho Paul. É, além disso, a canalizadora de toda a atenção em suas caminhadas, como na sequência em que é convidada a sentar-se à mesa da portuguesa e suas amigas. É o fator presencial a lhe dar o status de estrela. Zacarias foi brilhante ao construir em uma sequência todas as projeções da estrela e do mito na mente e comportamento das mulheres de classe média e não só delas. 

         Frankie se deu conta de que é uma estrela

         Ela se torna ali uma delas, fenômeno comum ainda hoje no universo digital. Não se trata mais da estrela acima dos fãs, mas de o sucesso colocá-la ao alcance de uma mensagem via celular. É uma longa sequência na qual a câmera de Sachs se mantêm à distância em grande plano a dar a ideia de que estrela e fãs são agora uma só pessoa. Ali a atriz e suas fãs são seres comuns. É disto que a dupla Sachs/Zacarias trata, pois Frankie se deu conta de que, embora seja uma estrela, seu momento a alerta para sua fragilidade enquanto ser humano avançando para a Terceira idade.

         É também com esta construção dramática que Zacarias dá a Sachs a oportunidade de mostrar o outro lado de Frankie de forma brilhante. Seu diretor de fotografia Rui Poças faz da câmera alta e imóvel seu instrumento para o espectador desvendar o que, de fato, move a estrela. E não só isto, conta muito nesta longuíssima sequência o diálogo entre mãe e filho. Ela tornou-se rude, agressiva, revelando–se por inteiro. Não de forma a mostrar-se vulnerável, não queria ver soterrada a imagem construída ao longo de sua carreira. E seu único filho não consegue perceber isto.

        As imagens, desta forma, carecem dos diálogos para transmitir o que o roteirista e o diretor buscaram passar. A fragilidade não está em Frankie, mas na resistência de Paul. Tudo deriva do modo como ela o educou, sendo ele filho de seu casamento com Michel (Pascal Gregory). O espectador só entenderá isto na conversa de Paul com Irene (Marisa Tomei), amiga de sua mãe, sobre a intervenção dela em suas escolhas femininas. Sobretudo nos diálogos de Jimmy e Michel. Paul buscava, na verdade, criar seu próprio espaço, não continuar a depender de quem lhe devia explicações.

          Tem muito de Brasil neste “Frankie”

         A dupla Sachs/ Zacarias não se restringe às rusgas isoladas de Paul com Frankie. Introduz em sua abordagem a relação dele com a afrodescendente Silvia (Vinette Robinson), mãe da adolescente Maya (Sennia Mannua), cujo pai afro, Ian (Ariyon Bakare), não quer lhe conceder o divórcio. Como se vê, Paul é um personagem atual, cheio de nuances a enfrentar o que vem de sua infância. Há o fato de o pai superar a homofobia e não se envergonhar de se expor a Jimmy. Dois fortes temas, observe-se, introduzidos para enriquecer o personagem interpretado por Renièr. 

         O estilo caleidoscópico torna este “Frankie” mais do que um filme familiar.  Há ainda a considerar a multiplicidade de personagens a representar os excluídos. Maya, ainda que adolescente, se move por vontade de preencher o espaço ao seu redor. O fato de ser negra não lhe impõe osbstáculos. A sequência em que ela sai rumo à praia para se encontrar com o garoto português Tiago Mirante (Carloto Cotta), sem se intimidar, é brilhante. Ela é de uma calma e coragem invejável em sua idade.

         Tem muito de Brasil neste “Frankie”. Os personagens deixam de ser em sua maioria caucasianos para abrir espaço para outras etnias e tendência sexual. O idoso Michel ao revelar a Jimmy o que enfrentou para superar a homofobia torna a narrativa de Sachs mais viva e realista. Isto sem dúvida se deve ao ótimo roteiro do brasileiro Zacarias. Tornar interpaíses o debate e a resistência ao racismo e a homofobia é politizar, ajudar a refletir a realidade imediata mundo afora. Nada melhor para fazer isto do que a imagem ao pegar a realidade e a tornar viva na tela.

         O que vale no filme é o dilema interior

         Durante os 100 minutos de narrativa deste drama familiar, o diretor Sachs e o diretor de fotografia Rui Poças se valem dos grandes planos e dos amplos espaços para dimensionar o dilema de Frankie. Mesmo em salas e quartos, eles preferem mantê-la aberta. O que vale aqui é o dilema interior, o modo como o personagem enfrenta seus impasses. Nas duas sequências da floresta Frankie e Paul são filmados à distância, numa referência sobre o quanto estavam distantes um do outro, enquanto trocavam ofensas. A partir daí o fosso entre eles só se ampliou, nada mais.        

         O bom da narrativa da dupla Sachs/Zacarias é eles não se descolarem do tema central. E ele é bem exposto. Frankie acerta contas com seus erros ao longo da vida. A única a poder chamar-lhe à realidade é a amiga Irene. Só ela sabe da razão de a estrela convidar seus amigos, mas para que não lhes foi revelado. E justo num instante em que ela mais precisa da presença e do carinho deles. É disto que elas tratam em sua caminhada pelo bosque, longe de Jimmy e Paul. Fica claro que para Frankie não há mais retorno. Se não o fez antes não o fará agora.        

         O modo encontrado por ela para se penitenciar lembra o dos antigos profetas. Fica no alto da montanha a refletir a respeito do passado que lhe trouxe um presente de cicatrizes abertas. Ainda mais na terceira idade. É e sequência cujo simbolismo é tratado por Sachs como o momento do perdão. Estão ali não apenas seus amigos e parentes, mas também aqueles que vêm nela a estrela se apagando.  E eles ao irem ao seu encontro reconhecem tanto o que se passa com ela quanto lhe devem ser solidários. É a estrela em seu ocaso, quando o brilho é ofuscado pelas nuvens do fim de tarde. De novo é o perdão a chegar para evitar dores. Belo filme!

Frankie (Frankie). França, Portugal. Drama. 100 minutos. 2019. Ficha técnica: Trilha sonora: Dickon Hinchliffe. Edição: Sophie Reine. Fotografia: Ruy Poças. Roteiro: Maurício Zacarias/Ira Sachs. Direção: Ira Sachs. Elenco: Isabelle Huppert, Bredan Gleeson, Jérémie Reiniér, Ariyon Bakare, Marisa Tomei, Greg Kinnear, Ian Andoh, Carloto Cotta, Pascal Gregory, Mannua Maya.

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