“Frankie”: O que ainda nos espera
“Com roteiro do brasileiro Maurício Zacarias, cineasta estadunidense Ira Sachs discute rito de passagem de estrela de cinema na terceira idade”
Publicado 24/03/2020 13:15
Há algo para além do intencionado no convite feito pela estrela de cinema Françoise Crémont (Isabelle Huppert) a seus familiares e amigos. Com preciso objetivo, ela os reúne em sua mansão no balneário de Sintra, em Portugal. A câmera do diretor estadunidense Ira Sachs (21/11/1965) se fixa em vários centros narrativos, a partir da trama estruturada pelo roteirista brasileiro Maurício Zacarias (49 anos). O que lhe permite construir sua narrativa de forma caleidoscópica. Nesta tessitura, centrada na vida da fictícia atriz francesa, o mistério mescla o “real com imaginário”.
O centro propulsor da história é formado por Frankie, seu companheiro Jimmy (Brendan Gleeson) e seu filho Paul (Jérémie Rennìer). De certa forma, eles dão ideia de que o centro da vida da família é Frankie. E não poderia ser diferente. Porém, ela dá a impressão de que por trás de seu comportamento há algo mais. É este mistério que tira deste “Frankie” a certeza de ele ser apenas um drama familiar. Isabelle Huppert consegue passar para o espectador que a personagem interpretada por ela tem outras motivações. É frágil, tem postura esquiva, mas se impõe.
Percebe-se desde o início da narrativa tratar-se filme de personagens. O que o impulsiona é própria Frankie ao tomar a si todas as iniciativas, principalmente ao se relacionar com o filho Paul. É, além disso, a canalizadora de toda a atenção em suas caminhadas, como na sequência em que é convidada a sentar-se à mesa da portuguesa e suas amigas. É o fator presencial a lhe dar o status de estrela. Zacarias foi brilhante ao construir em uma sequência todas as projeções da estrela e do mito na mente e comportamento das mulheres de classe média e não só delas.
Frankie se deu conta de que é uma estrela
Ela se torna ali uma delas, fenômeno comum ainda hoje no universo digital. Não se trata mais da estrela acima dos fãs, mas de o sucesso colocá-la ao alcance de uma mensagem via celular. É uma longa sequência na qual a câmera de Sachs se mantêm à distância em grande plano a dar a ideia de que estrela e fãs são agora uma só pessoa. Ali a atriz e suas fãs são seres comuns. É disto que a dupla Sachs/Zacarias trata, pois Frankie se deu conta de que, embora seja uma estrela, seu momento a alerta para sua fragilidade enquanto ser humano avançando para a Terceira idade.
É também com esta construção dramática que Zacarias dá a Sachs a oportunidade de mostrar o outro lado de Frankie de forma brilhante. Seu diretor de fotografia Rui Poças faz da câmera alta e imóvel seu instrumento para o espectador desvendar o que, de fato, move a estrela. E não só isto, conta muito nesta longuíssima sequência o diálogo entre mãe e filho. Ela tornou-se rude, agressiva, revelando–se por inteiro. Não de forma a mostrar-se vulnerável, não queria ver soterrada a imagem construída ao longo de sua carreira. E seu único filho não consegue perceber isto.
As imagens, desta forma, carecem dos diálogos para transmitir o que o roteirista e o diretor buscaram passar. A fragilidade não está em Frankie, mas na resistência de Paul. Tudo deriva do modo como ela o educou, sendo ele filho de seu casamento com Michel (Pascal Gregory). O espectador só entenderá isto na conversa de Paul com Irene (Marisa Tomei), amiga de sua mãe, sobre a intervenção dela em suas escolhas femininas. Sobretudo nos diálogos de Jimmy e Michel. Paul buscava, na verdade, criar seu próprio espaço, não continuar a depender de quem lhe devia explicações.
Tem muito de Brasil neste “Frankie”
A dupla Sachs/ Zacarias não se restringe às rusgas isoladas de Paul com Frankie. Introduz em sua abordagem a relação dele com a afrodescendente Silvia (Vinette Robinson), mãe da adolescente Maya (Sennia Mannua), cujo pai afro, Ian (Ariyon Bakare), não quer lhe conceder o divórcio. Como se vê, Paul é um personagem atual, cheio de nuances a enfrentar o que vem de sua infância. Há o fato de o pai superar a homofobia e não se envergonhar de se expor a Jimmy. Dois fortes temas, observe-se, introduzidos para enriquecer o personagem interpretado por Renièr.
O estilo caleidoscópico torna este “Frankie” mais do que um filme familiar. Há ainda a considerar a multiplicidade de personagens a representar os excluídos. Maya, ainda que adolescente, se move por vontade de preencher o espaço ao seu redor. O fato de ser negra não lhe impõe osbstáculos. A sequência em que ela sai rumo à praia para se encontrar com o garoto português Tiago Mirante (Carloto Cotta), sem se intimidar, é brilhante. Ela é de uma calma e coragem invejável em sua idade.
Tem muito de Brasil neste “Frankie”. Os personagens deixam de ser em sua maioria caucasianos para abrir espaço para outras etnias e tendência sexual. O idoso Michel ao revelar a Jimmy o que enfrentou para superar a homofobia torna a narrativa de Sachs mais viva e realista. Isto sem dúvida se deve ao ótimo roteiro do brasileiro Zacarias. Tornar interpaíses o debate e a resistência ao racismo e a homofobia é politizar, ajudar a refletir a realidade imediata mundo afora. Nada melhor para fazer isto do que a imagem ao pegar a realidade e a tornar viva na tela.
O que vale no filme é o dilema interior
Durante os 100 minutos de narrativa deste drama familiar, o diretor Sachs e o diretor de fotografia Rui Poças se valem dos grandes planos e dos amplos espaços para dimensionar o dilema de Frankie. Mesmo em salas e quartos, eles preferem mantê-la aberta. O que vale aqui é o dilema interior, o modo como o personagem enfrenta seus impasses. Nas duas sequências da floresta Frankie e Paul são filmados à distância, numa referência sobre o quanto estavam distantes um do outro, enquanto trocavam ofensas. A partir daí o fosso entre eles só se ampliou, nada mais.
O bom da narrativa da dupla Sachs/Zacarias é eles não se descolarem do tema central. E ele é bem exposto. Frankie acerta contas com seus erros ao longo da vida. A única a poder chamar-lhe à realidade é a amiga Irene. Só ela sabe da razão de a estrela convidar seus amigos, mas para que não lhes foi revelado. E justo num instante em que ela mais precisa da presença e do carinho deles. É disto que elas tratam em sua caminhada pelo bosque, longe de Jimmy e Paul. Fica claro que para Frankie não há mais retorno. Se não o fez antes não o fará agora.
O modo encontrado por ela para se penitenciar lembra o dos antigos profetas. Fica no alto da montanha a refletir a respeito do passado que lhe trouxe um presente de cicatrizes abertas. Ainda mais na terceira idade. É e sequência cujo simbolismo é tratado por Sachs como o momento do perdão. Estão ali não apenas seus amigos e parentes, mas também aqueles que vêm nela a estrela se apagando. E eles ao irem ao seu encontro reconhecem tanto o que se passa com ela quanto lhe devem ser solidários. É a estrela em seu ocaso, quando o brilho é ofuscado pelas nuvens do fim de tarde. De novo é o perdão a chegar para evitar dores. Belo filme!
Frankie (Frankie). França, Portugal. Drama. 100 minutos. 2019. Ficha técnica: Trilha sonora: Dickon Hinchliffe. Edição: Sophie Reine. Fotografia: Ruy Poças. Roteiro: Maurício Zacarias/Ira Sachs. Direção: Ira Sachs. Elenco: Isabelle Huppert, Bredan Gleeson, Jérémie Reiniér, Ariyon Bakare, Marisa Tomei, Greg Kinnear, Ian Andoh, Carloto Cotta, Pascal Gregory, Mannua Maya.