Financismo em estado bruto

As classes dominantes brasileiras sempre mantiveram um pé no interior do Estado, buscando tirar o maior proveito econômico e financeiro de tal capacidade de influência.

(Foto: Reprodução)

A atualidade da questão das relações incestuosas existentes entre a alta tecnocracia do setor público e seus correspondentes no setor privado não é exatamente uma novidade para quem se interessa pelo tema em nossa História. As classes dominantes brasileiras sempre mantiveram um pé no interior do Estado, buscando tirar o maior proveito econômico e financeiro de tal capacidade de influência. Sim, nunca deixaram de atuar exatamente no interior deste ente que tanto criticam e desmoralizam, por ser supostamente corrupto, ineficiente e gigante.

Em geral, clamam contra a enormidade do setor público, atuam em prol de topotipo de privatização e sugerem a redução do Estado a sua dimensão mínima. Mas não se preocupam com a maneira nada republicana com que se aproveitam da presença em cargos chaves, dos espaços de decisão estratégica e dos benefícios econômicos da definição das políticas públicas. É a chamada apropriação privada do setor público de forma escancarada.

Muitas vezes, quando não conseguem manter alguém de sua confiança direta e fiel nos locais certos e nos momentos oportunos, os representantes do capital se utilizam dos grandes meios de comunicação para exercerem seu poder de influência junto à administração pública. Para tanto, sempre contam com a boa vontade oferecida pelos “especialistas” no sistema financeiro, por exemplo. E dá-lhe matérias, artigos, vídeos e entrevistas na tentativa de transmitir à sociedade aquilo que uma entidade meio sobrenatural “pensa”, “exige”, “ameaça”, “deseja” ou “impõe”. Trata-se do tão famoso “mercado”, que costuma ser naturalizado e humanizado como se fosse simplesmente aquela figura simpática de nosso bairro, o bonachão Sr. Homer Cado, no dizer bem-humorado de um grande amigo. 

Relações incestuosas entre capital privado e setor público.

Esse tipo de recurso tem sido levado ao extremo agora neste período posterior ao resultado das eleições presidenciais e que antecede a posse de Lula. Tendo sido incapazes de protagonizarem alguma candidatura ao Palácio do Planalto que fosse de sua inteira confiança, os setores do financismo que optaram por não mais oferecer um segundo mandato a Bolsonaro terminaram por colaborar também para a derrota de Paulo Guedes. No entanto, tentam de todo modo sequestrar a política econômica do futuro governo. E estão aí as pressões para que Lula nomeie para os cargos da área gente afinada com os interesses da banca. E seguem por todos os cantos as tentativas de pautar os temas de seu interesse e de interditar outros considerados por eles como pura “heresia”, a exemplo da revogação do teto de gastos, da flexibilização das regras da austeridade fiscal, do retorno de direitos trabalhistas excluídos, da pausa no processo de privatização, entre tantos outros.

A estratégia envolve a criação de um clima de incerteza e ameaça quanto ao futuro do Brasil. Caso determinadas ações sejam implementadas e outras não, corre-se o risco de entrarmos na antessala da catástrofe social e do caos econômico. Como sempre, fica a chantagem explícita: caso o futuro governo não aceite continuar rezando pela cartilha da ortodoxia monetarista, bem aí tudo poderá acontecer.

Uma entrevista publicada por um jornal que se dedica aos temas da economia e das finanças é um exemplo bem característico de tal movimento. Ela ocorre apenas 3 dias depois de o Banco Central ter divulgado a Ata da 251ª reunião do Conselho de Política Monetária (COPOM). No encontro, o colegiado havia decidido pela manutenção da taxa SELIC no patamar de 13,75% ao ano. Não obstante a taxa oficial de juros estar em um nível muito acima do recomendado pelo que seria considerado razoável por qualquer analista econômico que não estivesse com algum pé fincado no sistema financeiro brasileiro, houve quem chiasse com a decisão. Como costuma acontecer com o povo do financismo, queriam mais. E mais e mais.

Trajetória meteórica às custas do Estado.

Fabio Kanczuk passou 25 anos de sua vida profissional, depois de se formar como economista, a galgar posições no interior de empresas privadas do sistema financeiro. Em 2016, logo depois do golpe contra Dilma Roussef, foi convidado por Henrique Meirelles para compor sua equipe no Ministério da Fazenda. Permaneceu como Secretário de Política Econômica e em 2018 foi indicado pelo governo Temer para representar o Brasil em uma diretoria no Banco Mundial, em Washington. Dando continuidade a essa ascensão meteórica no interior da administração pública federal, em 2019 é indicado e nomeado diretor de Política Econômica do Banco Central.

Porém, dois anos depois, em 2021, ele pede exoneração do cargo e retorna para a alta direção do financismo privado. Desta vez, volta com a trajetória turbinada. Torna-se economista chefe da Asa Investimentos, uma empresa da área de investimento financeiro do grupo Safra. Essa porta giratória na interface perigosa da esfera do setor púbico com o capital privado nunca fez bem ao Estado brasileiro e muito menos à maioria da população, que fica completamente alheia a esse tipo ambiente propício à realização de tenebrosas transações, como já havia escrito Chico Buarque na maravilhosa letra do samba “Vai passar”.

Pois bem, essa mesma figura apresenta na entrevista ao Valor Econômico uma impressionante aula de financismo em seu estado mais bruto, sem nenhum refinamento. Suas declarações são tão sinceramente escandalosas que merecem ser aqui reproduzidas. A conversa com o jornalista vai na linha da decepção com as primeiras movimentações de Lula no campo da economia depois de consolidada sua vitória e os primeiros anúncios de prioridades e colaboradores. Mas o tom do deboche e da ameaça é uma constante.

Clima de catastrofismo e ameaças.

Não contente com as manifestações de desaprovação consolidadas nas sinalizações do tal mercado até momento, o operador afirma que as opções de Lula não vão ficar assim tão baratas, não:

(…) “O ambiente vai ficar pior. É câmbio acima de R$ 6, Selic indo para 16%, bolsa caindo muito” (…)

Fábio parece não se conformar com a aparente tranquilidade com que as declarações de Lula foram recebidas nem pela maneira como as cotações no mercado financeiro até o momento refletiram escolhas que ele deve deplorar. Este parece ser o caso, por exemplo, da indicação de Fernando Haddad para o estratégico cargo de Ministro da Fazenda:

(…) “Olhando essa situação e vendo essa coisa desesperadora, como os preços estão tão tranquilos assim?” (…)

O economista não esconde sua frustração com a percepção de que as primeiras opções de Lula não apontam para uma subordinação incondicional aos anseios do povo do financismo. Na verdade, ele reage como se o presidente eleito houvesse traído algum tipo de compromisso prévio com a banca, quando na verdade se sabe que Lula apenas reafirmou as promessas realizadas inúmeras vezes durante a campanha eleitoral.

(…) “Mas, em meados de novembro, notamos que o perfil do governo era diferente daquilo que imaginávamos por causa da escolha da equipe, da proposta da PEC, dos discursos feitos… O problema fiscal ganhou uma magnitude maior do que nós esperávamos e aí migramos de um extremo para o outro.” (…) (GN)

Uma vez que o futuro mandatário optou por reafirmar seu programa de governo e disse que claramente que não haveria razão para o mercado ficar nervoso com sua vitória, Fábio verbaliza o sentimento de parte expressiva do povo do financismo. Isso significa dizer que vão trabalhar duro para criar um clima de insegurança nas tais “expectativas”, ainda que não existam razões objetivas para tanto. Pouco importa a realidade, mas sim a disputa da narrativa em torno dela:

(…) “Uma coisa está nas projeções das contas públicas e outra é a formação da equipe. A equipe envolve jogo de reputação. E a escolha da equipe surpreendeu. Isso por si só já vai gerar um custo fiscal. Metade do custo está na equipe e a outra metade está nos números.” (…) (GN)

Ele se diz decepcionado com os analistas estrangeiros, que não estariam colaborando com os congêneres brasileiros neste movimento para desestabilizar o governo quem ainda nem tomou posse:

(…) “A sensação que eu tenho é a de que as pessoas ainda não estão fazendo essa conta e, quando começarem a fazer, em especial os estrangeiros, a situação vai mudar.” (…) (GN)

Como não tem argumentos para sustentar suas hipóteses sem base na realidade, ele apela para os “chutes”. Considera que seu pessimismo é uma marca da porção brasileira do financismo, se é que alguém entende essa categoria. Segundo ele, os estrangeiros não entendem muito bem como funciona a política no Brasil e por isso não se aventuram pelo caminho declarado do golpismo e da briga pela desestabilização aberta. É a repetição da velha estória de confundir análise objetiva com a adoção de um comportamento de torcida contra:

(…) “O meu chute é de que isso é mais por causa dos estrangeiros do que dos brasileiros. A maioria dos [investidores] brasileiros está pessimista, mas os estrangeiros não perceberam a gravidade da situação. Quando se trata de política eles costumam ser mais defasados mesmo e isso se somou ao fim de ano. Acho que os estrangeiros estão segurando, mas em um segundo eles aprendem e mudam o jogo. É o meu chute” (…)

Mas como ele faz parte do seleto grupo de consultores do sistema financeiro ouvidos semanalmente pelo BC para a pesquisa Focus, ele aposta que daqui algumas semanas o quadro será alterado para o caminho do agravamento. A autoridade monetária ouve apenas os desejos e as avaliações do financismo para basear suas decisões sobre a taxa de juros oficial. Assim, confirma-se a hipótese da profecia auto realizada. Eu digo que vai piorar, construo um consenso no interior do grupo em que atuo a esse respeito e lodo depois o COPOM referenda essa interpretação. E em seguida vem o famoso passa moleque do tipo: “Tá vendo|? Eu não te avisei?”.

(…) “Depois, eles puxariam a projeção de inflação para cima e, daí, teriam que começar a subir juros. Tem várias reuniões do Copom pela frente…” (…)

Afinal, em abril de 2022 Fábio foi substituído na diretoria do BC por Diogo Guillén. Este é um ex economista da Gávea Investimentos e depois integrante da alta direção da empresa de investimentos financeiros do grupo Itaú. E segue o baile. Ou seja, tudo sempre na mesma toada do financismo em seu estado mais bruto.

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