Fantasmas assombram os tribunais

No mês de maio, no Rio Grande do Sul, uma carta escrita pelo espírito de uma vítima de assassinato um ano e meio depois do crime foi aceita como uma das provas que ajudaram a inocentar sua ex-amante, acusada de ser a mandante do delito. Em outro cas

A crença de que a essência da personalidade da pessoa sobrevive à morte é antiqüíssima. “O homem é o único animal que sabe que vai morrer e por isso inventou que é imortal”, satirizou Millor Fernandes. Tribunais da Inquisição chegavam a considerar que, se um inocente fosse condenado, Deus o salvaria na hora da execução ou, ainda melhor, o próprio martírio que o inocente sofria seria recompensado na vida eterna. Mas os tribunais não religiosos, mesmo que ostentem símbolos ou livros de uma ou outra seita, não costumam levar em consideração os depoimentos dos espíritos.
O movimento espiritista começou em 1848, nos Estados Unidos: as irmãs Kate e Margareth Fox afirmaram que espíritos se comunicavam com elas batendo em mesas. Trinta anos depois elas admitiram que sua história era fraudulenta, mas já haviam se espalhado milhares de sessões em que espíritos produziam sons, materializavam objetos, brilhavam, levitavam pessoas etc. De lá para cá, surgiram livros escritos por espíritos e uma lucrativa indústria de filmes e obras povoadas de fantasmas e assombrações. Os espíritos são a “prova” de vida pós-morte e os que neles acreditam não precisam se alinhar a nenhuma religião organizada, embora sejam, geralmente, influenciados pelo cristianismo. Mais de um terço dos adultos norte-americanos acreditam que em algum nível estabeleceram contato com os mortos; um quarto dos norte-americanos acredita em reencarnação.
Polemizando com o assunto, Carl Sagan pergunta, no seu “O mundo assombrado pelos demônios”: “Por que Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localização exata de sua tumba, Fermat sobre o seu último teorema, James Wilkes Booth sobre a conspiração do assassinato de Lincoln, Hermann Goering sobre o incêndio do Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e Aristarco não ditam as suas obras perdidas?”
No caso gaúcho, Ercy da Silva Cardoso foi assassinado quando tinha 71 anos, com dois tiros, em Viamão (RS), no dia 1 de julho de 2003. No dia 22 de fevereiro de 2005 o médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, disse ter psicografado uma carta do Ercy, em que o morto escreve que "o que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada deste feito por mentes ardilosas como a dos meus algozes. Por isso tenho estado triste e oro diariamente em favor de nossa amiga para que a verdade prevaleça e a paz retorne aos nossos corações".
A Iara, no caso, é Iara Marques Barcellos, 63 anos, esposa de Alcides Chaves Barcelos e amante de Ercy até 1996. Alcides era amigo de Ercy e recebeu uma das cartas do Além – mais do que isso: foi ele quem procurou o médium para que escrevesse a carta inocentando sua esposa. Iara foi acusada de ter ordenado ao caseiro Leandro Rocha de Almeida matar Ercy.
A carta inocenta Ercy mas, estranhamente, não esclarece o assassinato. Informa, contudo, que os espíritos também oram. O advogado Lúcio Santoro de Constantino disse que juntou a carta aos autos porque os jurados se baseiam “em sua sensibilidade, e não precisam fundamentar as decisões. Uma carta psicografada, para alguém que é espírita, é fundamental. Não sei se havia alguém espírita entre os jurados, mas no meu entendimento a carta foi decisiva para a absolvição da minha cliente". A juíza Jaqueline Hofler, que conduziu o julgamento, disse que “não havia só essa evidência em favor da ré. Minha impressão é que a prova não foi fundamental para o resultado do julgamento", admitindo como prova a carta psicografada. A acusação não pediu impugnação do documento. O outro acusado do crime foi condenado no ano passado e está cumprindo pena de 15 anos de prisão.
Já no caso de Suzane von Richthofen, o promotor Nadir de Campos tem classificado as versões apresentadas pela defesa como "histórias de ironia e deboche. É um achincalhe da Justiça." O advogado de Suzane, Mauro Otávio Nacif,  chegou a anunciar que a garota foi dominada pelo espírito de um tal Negão para violentamente executar os pais enquanto dormiam. Mas o promotor contra-atacou, afirmando que o argumento tinha, inclusive, conotação racista.
A crença em espíritos é questão privada, de fórum íntimo. Certamente, algumas pessoas sentem alívio com a possibilidade de ter contato com seres amados que morreram, expor a eles seus problemas, consultá-los sobre questões que lhes são candentes, buscar neles apoio em suas aflições.
Thomas Hobbes dizia que o conceito de uma substância não-fisica é uma contradição, pois se trata de uma entidade não-fisica com percepções e vida. O júri de um Tribunal pode, perfeitamente, ser influenciado por inúmeras questões e sentimentos. “Credo quia absurdum”, creio por ser absurdo, registra o ditado latino. Mas, como alerta Carl Sagan, “quando os governos e as sociedades perdem a capacidade de pensar criticamente os resultados podem ser catastróficos – por mais que deploremos aqueles que engoliram a mentira”.

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