Estiagem, o veranico de ursulino leão

Este ano a Academia Goiana de Letras presta homenagem a um importante escritor de Goiás, o ficcionista, poeta e cronista Ursulino Leão. No último sábado, dia 28 de maio, vários acadêmicos embarcaram num ônibus com destino à Fazenda São João, no município de Crixás, para habitarem, ainda que por momentos, o recanto mítico de suas inspirações. Não sei bem se nos rincões de sua nascença o poeta cultiva cana, soja ou milho, se cria nelore, guzerá ou gir. Sei de luares, córregos cristalinos, canto dos passopretos, do sabiá e a companhia dos bichos do terreiro. Talvez isto baste ao fomento de suas lembranças e ao acento de sua poesia. Não pude compor a nau dos argonautas demandando a Crixás. Fiquei em Goiânia acometido de alguns dividendos que o viver muito nos destina. Tivesse morrido com vinte anos nada sofreria, além de sonhos e mananciais de futuro. Não tinha perdido encantos, nem duvidado dos homens, nem padecido amores. Sobram lembranças. A memória é que dói. Fiquei convivendo com Estiagem, a última publicação de Ursulino Leão. Trata-se de um volume de haicais, na tradução ocidental. Recolhe do Oriente a receita do deslumbramento e da surpresa. Ursulino reconta o mundo com olhos de Bashô. E o haicai é um poema que acende visões súbitas. Como o próprio título “Estiagem” sugere – flash de luz entre chuvaradas. Sol entre nuvens, instante da vida, veranico. Estiagem não é seca, é um momento de dúvida do inverno, do que chamamos aqui de inverno. Nada melhor do que ir caminhando página a página com o poeta e deixando-se surpreender com as descobertas que teve e recolheu em linguagem. Partilhamos, cúmplices, seu miraculoso insight. Primeiro a afetuosa lembrança:
“Lena/ Teus olhos azuis/traçam o roteiro/de minha caminhada.” “Homenagem/ O verso de tua beleza/Deus gosta de incluir/no poema de suas manhãs.” Sem desmerecer as companhias, o poeta se detém no retrato interior: “Autorretrato/ Tristeza nos olhos/e no coração/muitas saudades.” “Paisagem/ Velhas safenas/obras de arte na via-sacra/do meu coração.” E segue na peregrina jornada da afeição: “Ela II/ Seguindo o rastro/do seu perfume/encontrei uma flor.” Se desvia o olhar da paisagem afetiva, brotam aquelas da geografia desenhada em sentimentos, os lugares da moradia da vida e da memória: “Fazenda São João/ De madrugada/o galo avisa às estrelas/que o sol vai nascer.” “Pregoeira/ Ave-símbolo/a inhuma gorjeia/as epopéias de Goiás.” Sem querer negar ao leitor curioso das garimpagens verbais de Ursulino, deixo aí apenas a amostra, a isca com que atrai suas piabas de luz. Em vários outros momentos celebra, canta o amor imperecível, acumplicia-se a Khayyan na evocação da brevidade da vida, da unção do vinho e do amor. Acompanhando esta pescaria de estrelas acho que não fiquei sem ir à Crixás de Ursulino. Fui por um caminho interior, no mapa de sua poesia. Pude ouvir confidências, murmúrios de uma alma rica bem desenhada num discurso de inusitadas reverberações que inunda de permanência e luz a breve estiagem.

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