Estado laico, “com a proteção de Deus”
A Constituição brasileira, a mais democrática de nossa história e uma das mais democráticas do mundo, está completando 25 anos. Assim como foram os trabalhos constituintes, também os pronunciamentos sobre o seu significado e resultado são os mais variados e, muitas vezes, antagônicos, seja por considerações políticas, econômicas ou ideológicas. Uma das muitas disputas que ocorreram na constituinte foi sobre a laicidade do Estado.
Publicado 21/10/2013 17:45
Na elaboração da atual Constituição, pela primeira vez, além dos setores católicos organizados, atuaram também os evangélicos. Ambos disputavam benesses estatais para suas respectivas instituições religiosas. Obtiveram vitórias parciais, como o preâmbulo afirmar que ela foi elaborada “sob a proteção de Deus”, mas no conjunto a Carta garantiu o Estado laico, como diz o artigo 19:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público (…)”.
Marx já nos alertava, nO 18 Brumário, que “assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade”. Embora o Estado laico esteja garantido constitucionalmente, as entidades religiosas influenciam a legislação e as campanhas estatais sobre prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, aborto, união civil entre homossexuais, conteúdo do ensino ministrado nas escolas públicas. Além disso, invadem a programação de rádios e televisões – inclusive públicas, portanto custeadas com dinheiro público – e eventos governamentais, como inauguração de obras e mesmo posse de autoridades.
Tanto o Legislativo nacional, quanto vários estaduais e municipais, abrem seus espaços para cultos religiosos, em especial cristãos. O parlamentar que abrir os trabalhos do Senado, seja de que partido ou crença for (ou ateu) obrigatoriamente, pelo Regimento da Casa (Artigo 155, § 1º), deverá dizer: “Sob a proteção de Deus, declaro aberta a sessão”. O mesmo é feito na Câmara. Embora existam mais de duas mil religiões, apenas o crucifixo – símbolo do cristianismo – é colocado nos locais públicos brasileiros, do Supremo Tribunal Federal, às escolas, hospitais e repartições públicas de todos os níveis. “Deus seja louvado”, estampam nossas cédulas de Real – não Ogum, Alá, Tupã ou qualquer outro, mas o deus judaico-cristão.
Segundo levantamento da Coordenação de Relacionamento, Pesquisa e Informação da Câmara dos Deputados, até 20 de junho, quatro propostas de emenda à Constituição e 89 projetos de lei tramitavam na Casa abordando temas religiosos – um deles foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, presidida pelo evangélico Marco Feliciano (PSC-SP), na quarta-feira, 16, livrando templos e igrejas de serem enquadrados no crime de discriminação se vetarem a presença de "cidadãos que violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias". Há quem veja nisso a legitimação da homofobia. Outro projeto, já aprovado por uma comissão da Câmara, ficou conhecido como “bolsa estupro”. Ele incentiva mulheres estupradas a parir, registrar a criança com o sobrenome do estuprador e receber pensão alimentícia de um salário mínimo por rebento e foi proposto por parlamentares religiosos contrários ao direito da mulher decidir sobre o próprio corpo.
A Lei nº 9.093, de 12 de setembro de 1995, que dispõe sobre feriados, possibilita a criação de até quatro feriados religiosos (incluída a Sexta-Feira da Paixão). No entanto, os municípios não podem decretar feriados civis, como Dia da Consciência Negra, por exemplo. Nosso Estado laico celebra os seguintes feriados religiosos: Sexta-Feira Santa, Corpus Christi, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia de Finados, além de feriados estaduais e municipais (padroeiras locais ou, no caso do Distrito Federal, Dia do Evangélico). Todos feriados cristãos; na quase totalidade, católicos.
Esta é a situação em que nos encontramos. Nas campanhas eleitorais, mesmo candidatos progressistas ao Executivo, assumem compromissos, com bancadas religiosas, ostensivamente contrários à Constituição e aos interesses populares e democráticos, na busca de votos. Mas a situação já esteve pior. A Constituição de 1824, a primeira do país, estabelecia em seu artigo 5º:. “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do Templo”.
Avançamos, graças à nossa luta – e ela deve ser permanente, porque o risco de recuo existe.