“Era uma vez em Hollywood”: O ocaso da época de ouro

Com nostálgica visão, cineasta estadunidense Quentin Tarantino trata da decadência de ator de TV e do fim das grandes produtoras de cinema.

Aos poucos, como num castelo de cartas, o monopólio das grandes produtoras de Hollywood ruiu. E as chamadas majors: Disney (1923), Paramount Studios (1912), Warner Bros (1923), Universal (1912), Columbia (1918), Metro Goldwyn Mayer (1924), 20 th Century Fox(1935) e United Artists (1919) perderam a hegemonia nas décadas de 50 e 60. A concorrência com os shows, filmes e séries de TV mostrou-se capaz de pôr fim ao predomínio de cinco décadas. E assim outro tipo de disputa pelo mercado audiovisual começou a ser estabelecido entre as duas mídias.

Não é outra a razão para o ator quarentão Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) estar desempregado em 08/02/1969, neste “Era Uma Vez em Hollywood”. Outrora famoso pelas séries de TV, agora é reconhecido nas ruas por seus fãs devido aos personagens que interpretou nos faroestes televisivos por vários anos. Tarantino (27/03/1963) o constrói como vítima não um perdedor, porquanto sua queda foi provocada pela feroz concorrência entre o cinema e a TV em seus primórdios. Embora tente superar as barreiras percebe o quanto era difícil encontrar novos papéis.

Nesta época os astros hollywoodianos não viam a TV como opção para suas carreiras. E, portanto, não se arriscavam em produções vistas como de segunda linha, salvo estrelas em fim de carreira. Dentre elas Lana Turner (1921/1995) que migrou para as produções televisivas na década de 60. Mas desde os anos 50, a atriz Lucile Ball (1911/1989) já fazia sucesso na TV com a comédia “I Love Lucy (Eu Amo Lucy). Contudo o Dalton de DiCaprio (11/11/1974) não era advindo do cinema e, assim, sua ligação com as majors e seus astros era praticamente nenhuma.

O poder da TV desde o início foi avassalador

Entretanto hoje atrizes de cinema como Meryl Streep (22/06/1949), Nicole Kidman (20/06/1967), Reese Witherspoon (22/03/1976) e Laura Dern (10/02/1967) estrelaram a série “Big Litte Lies (Grandes e Pequenas Mentiras, de 2017) da HBO sem receio de serem vistas como decadentes. Os próprios atores e diretores e técnicos cuidaram de não fazer distinção entre os que atuam no cinema ou na TV. Todo ano os prêmios do Globo de Ouro são dedicados aos que trabalham em ambos centros de produção, distribuição e exibição. Apenas a Academia de Hollywood mantém a antiga divisão entre os dois principais sustentáculos da indústria das imagens.

O poder da televisão, mesmo em seu início foi avassalador. O contraste com o cinema era enorme. O grande público, principalmente a classe média, logo percebeu a vantagem de ficar refestelado no sofá só mudando de canal. Podia ir do filme para o esporte e das notícias para os shows. Não precisavam mais de se deslocar a grandes distâncias e enfrentar longas filas para assistir ao filme em cartaz. Era mais confortável ficar em casa, custava muito menos e era seguro em qualquer horário. E, devido a isto, milhares de salas de cinema foram fechadas mundo afora.

Este era o mais visível motivo de as oito maiores produtoras de Hollywood terem sucumbido à acirrada concorrência das controladoras dos canais de TV. Principalmente por integrarem uma poderosa rede de comunicação como a NBC, caso da United Artists. Não só as redes viram as majors como bom ativo, conglomerados como a multinacional japonesa Sony, fabricante de equipamentos de som e imagem, adquiriu a Columbia décadas depois. Seu interesse é o mercado de CDs e DVDs para suas produções e aumentar sua fatia de mercado. Tanto que para reforçar a estratégia do conglomerado a Columbia hoje chama-se apenas Sony.

Não foi só a TV que derrubou as majors

Não foram apenas as redes de comunicação e os conglomerados globalizados que fizeram sucumbir o monopólio das oito majors. Também perderam o controle de suas estrelas nos anos 50, agora livres dos contratos de sete anos e donos de suas próprias produtoras. É o chamado efeito extensivo, pois o custo de produção aumenta. E desta forma, elas tiveram de reduzir o custo não só da produção de filmes, mas também o gasto com a formação de estrelas para fazer as bilheterias tilintar com milhões dólares. Assim, a TV ao colocar atores e atrizes famosos em seus programas tirou-lhes a auréola de mitos ou, se quiser, de deusas e deuses, acima do cidadão comum. E o glamour se foi e as estrelas se apagaram.

Mas a função de um filme, notadamente uma superprodução como este “Era Uma Vez em Hollywood”, não é só divertir ou provocar múltiplas reflexões. O contexto em que o diretor/roteirista desenvolve sua história cria um subtexto no qual os motivos que o levaram a escolher tal tema leva o espectador a buscar entendê-lo para além do visto na tela. E a história em imagens e os personagens encarnam mitos, ideias e projeções sócio-políticas ou apenas motivações subconscientes do cineasta e do próprio público. O tema central de Tarantino é a decadência de Hollywood nos anos 50 e 60 e seu reflexo na carreira de todos que nela trabalhavam.

Assim, ele configura não só eles como seus mitos. A começar por James Dean (1931/1955) no massificado pôster em que está na motocicleta. Uma lembrança à sua interpretação no clássico “Juventude Transviada (1955), do diretor Nicholas Ray (1911/1979). Não menos simbólico é Steve McQueen (1930/1980) no pôster referencial ao mito Dean em “Fugindo do Inferno (1963)”, de John Sturges (1910/1992). Este imaginário, remete à lembrança tanto de uma Hollywood que não mais existe, quanto ao papel do mito na vida de Dalton e Booth e do espectador.

Anos 60 viraram às avessas as tradições

Deste modo, o quarentão Dalton e o cinquentão Cliff Booth (Brad Pitty), seu dublê, motorista e segurança sobrevivem com o acumulado em seus tempos de séries. Como eles, os ex-astros de TV têm de buscar alternativas, fazendo pontas em superproduções, a exemplo de Dalton ao tentar um pequeno papel em “Fugindo do Inferno. E mesmo assim, lamenta não ter conseguido. As séries de TV o tornou popular, mas não o transformou numa estrela, ou seja, não o tornou capaz de levar milhares de fãs ao cinema só para vê-lo. E não só nos EUA como em outros países.

Dalton consome o seu tempo em idas de um hotel ou restaurante ao outro para encontrar seu amigo Marvin Shwarz (Al Pacino). Quem sabe pode surgir um papel em alguma produção. Não difere dos desempregados em busca de uma vaga numa empresa para sustentar sua família. Nem ele ou Booth têm mulher e filhos, são solteiros, solitários, a depender da sorte. Com esta abordagem, Tarantino transforma a primeira parte deste “Era Uma Vez em Hollywood” num drama sobre o desemprego e a decadência das majors em meio à grande ebulição sócio-político-cultural no planeta.

Os anos 60 viraram de cabeça para baixo tradições, ideias, costumes e os conflitos entre as potencias hegemônicas na época EUA/URSS (1917/1985). Se os dilemas enfrentados pela dupla Dalton/Booth já os mergulhavam na insegurança, não menos acirrados eram os protestos contra a Guerra do Vietnã (1963/1975). Não só eles, também os movimentos pela liberação da mulher e pela integração racial nos EUA não deixavam as ruas, mesmo brutalizados pelas forças de segurança do Estado opressor. E os inimigos eram visíveis e por isto eram enfrentados.

Tarantino não foge de seu tema natural

A própria juventude em sua ânsia pela superação da barbárie, opressão e conservadorismo teve no Festival de Woodstock seu momento de atestar o quanto estava disposta a ocupar seu espaço.

Durante quatro dias (15 a 18/08/1969) se embeveceu literalmente com o rock de Janis Joplin (1943/1970), Santana (20/07/1947) e Jimmy Hendrix (1942/1970). E, além deles, outros músicos até ali desconhecidos que se tornaram e ainda são mitos. Foi o instante em que os jovens se desprenderam do conservadorismo e se entregaram à “paz e o amor”, sem perder de vista os protestos contra a Guerra do Vietnã e a liberdade de viver ao seu modo.

Os fãs de Tarantino não devem estranhar. Mesmo com tal estruturação dramática que parece fugir aos seus temas naturais, sua forma de abordagem é tensa, aflitiva e referencial. A construção dos personagens e suas ações são de quem busca reencontrar seu espaço, escolha difícil de se concretizar, dada à crise no cinema e as produções de TV rarearem. Nem Dalton encontra sequer um pequeno papel que o faça se sentir capaz de interpretá-lo. Mesmo como dublê Booth não deixa seu espírito belicoso de lado, frustrando quem lhe deu rara chance de trabalho.

Se a TV ainda se estruturava financeiramente para absorver grandes elencos em suas series e os programas ao vivo, o cinema também não absorvia os interpretes, diretores, roteiristas e técnicos desempregados. As superproduções já não rendiam grandes bilheterias como antes. Foi o caso do fracasso de “55 Dias em Pequim (1963)”, de Nicholas Ray, com os astros Charlton Heston (1923/2008) e Ava Gardner (1922/1990). Produzido pela Samuel Bronston Produtions e distribuído pela Allied Artists não conseguiu cobrir os custos e levou a falência quem o bancou.

Bruce Lee de Tarantino é falastrão e arrogante

É em meio a este impasse que Booth, um Brad Pitt (18/12/1963) sem glamour, tenta garantir seu espaço numa série de TV. E vê-se diante do falastrão Bruce Lee (Mike Moh), interprete do famoso Kato da série de kung fu “Besouro Verde (1966/1967)”. Mas ao contrário do calado e concentrado Lee de “Operação Dragão (1973)”, dirigido por Robert Clouse (1928/1997), Tarantino desconstrói sua imagem de herói e mito ao torná-lo falastrão e arrogante para intimidar o não menos desafiador Booth. Entre os dois há uma barreira, enquanto Lee é o queridinho do produtor, o dublê é o oponente disposto a desmistificá-lo. Daí a ferocidade de ambos.

A criativa coreografia e a bem encenada sequência da luta entre Booth e Lee é digna do Tarantino de” Kill Bill II (2003)” pelo que rendem os dois atores e a beleza do combate. E, sem qualquer surpresa, com montagem que o torna ao mesmo tempo violento e conciso. Pitt demonstra ter um diretor, com o qual trabalhou em “Bastardos Inglórios (2009)”, que retira dele o que vem de dentro. O modo como se afasta é de um veterano lutador acostumado a surrar o oponente e o deixar se levantar sem o castigar mais do que já o fez. Mesmo porque o preço por isto é alto demais.

Não menos elucidativo é Tarantino, acostumado a dirigir cenas de extrema violência, mostrar-se sensível na sequência de Booth dentro do automóvel com a adolescente Susan (Mikey Madison).

Logo após lhe pedir carona, ela o assedia e ele a rechaça: ”Você de menor”. O que torna o personagem de Pitt ambíguo, mas confiável. Toda a violência nele concentrada é controlada e seu melhor é revelado e o transforma noutra pessoa. Diferente dos personagens saídos dos roteiros de Tarantino. Eles são falastrões e dispostos a trucidar o próximo sem compaixão (Pulp Fiction, 1993). É o que os tornam seres vazios e meros arquétipos falantes.

Dalton e Booth vão em busca de dólares

O impasse engendrado pela crise nos setores de cinema e TV nos anos 60 acabou deixando a esmo os que não encontravam papéis em suas produções. A saída encontrada pelos já experientes Dalton e Booth foi mirar no sucesso popular dos faroestes italianos, os Westerns Spaghettis. Embora os criticassem e os vissem como meros entretenimento baratos, não restou a eles rumar para Roma. Vão em busca de dólares, pois esta era a moeda a receber, para não ficarem à mingua em Los Angeles.

Esta experiência de Dalton, a lembrar a de Clint Eastwood (31/05/1930), astro da série de tv Rawide (1959/1966), leva Tarantino estruturar o personagem como se ele estivesse em plena decadência. Perde o ritmo da intepretação e esquece suas falas. E na aflitiva cena em que tem de dialogar com o ator com o qual contracena se perde. É ao mesmo tempo angustiante e divertida, pois ele procura disfarçar seus erros. O que acaba salvando-o é sua experiência e a necessidade de retomar seu papel em cena para justificar o contrato com o produtor.

Eastwood ainda teve a sorte de ter encontrado o genial Sergio Leone (1929/1989), diretor dos clássicos “Por um Punhado de Dólares (1964) e, sobretudo, “Três Homens em Conflito (1966). Daí o paralelo entre Tarantino e Leone neste “Era Uma Vez em Hollywood”. Principalmente quando Shwarz afirma que Sergio Corbucci (1927/1990) é o segundo melhor diretor do Westerns Spaghettis. O primeiro, sem dúvida, é Leone. No entanto, Tarantino ao refilmar o clássico “Django (1966)” homenageia Corbucci. Mas é ao reverso que faz Dalton não ter o mesmo sucesso de Eastwood, ainda que seu objetivo não fosse tornar-se uma estrela na Itália.

Dalton e Booth já chegaram ao limite

Mesmo porque Dalton não esperava encontrar as portas das majors abertas para quando voltasse. Tanto ele quanto Booth tinham já percebido seus limites. Suas casas em Hollywood eram modestas, sem o luxo das mansões das estrelas. Tinham no máximo piscina não um extenso lago artificial com água colorida. E seus carros eram comuns não Ferraris, Mustangs ou Cadillacs. E ao regressarem têm consciência de que não podem ser perdulários, pois suas oportunidades podem ter ficado para trás. A crise das majors ainda não terminara e as receitas das redes de TV minguaram.

Mesmo que a trama do filme esteja centrada em Dalton e Booth, Tarantino não deixa de construir uma subtrama na segunda parte da marrativa. E o faz à moda da Nouvelle Vague pondo a câmera a acompanhar o passeio da jovem atriz Sharon Tate (1943/1969) pelas ruas de Los Angeles. E consegue da atriz Margo Robbie, que a interpreta, a espontaneidade e a leveza que dão veracidade à sequência. Mais ainda quando ela fica encantada ao ver-se na tela durante a exibição do filme “Arma Secreta para Matt Helm (1969)”. Dirigido por Phil Karlson (1908/1985) e estrelado pelo ator e cantor Dean Martin (1917/1995), ela e a alemã Elke Sommer (05/11/1940). Mesmo sendo ficção toda a ação parece premonitória, dada à ameaça que Charles Manson representava.

Mas é na terceira parte da narrativa que Tarantino une o tema central, a decadência das majors e a ascensão da TV, ao fato real que ainda gera polêmica e horror nos dias atuais. A Sharon Tate a surgir nestas sequências é um ser acuado, grávida de oito meses, cujo companheiro, o cineasta franco-polonês Roman Polanski (18/08/1933). está de viagem à Paris. Seus amigos começam a protegê-la contra as ameaças do guru Charles Manson (Daron Herrimon) e seu grupo que condena o estilo de vida dos astros de Hollywood. E Dalton e Booth são vizinhos de Sharon.

Manson ameaçava punir as estrelas de cinema

São nestas sequências que o estilo de ação seco e direto de Tarantino predomina. Ele cria densa atmosfera em espaços vazios entre as árvores a ladear as trilhas que levam às casas de Dalton e Booth, distantes uma da outra. Vista de longe à frente de sua mansão, Sharon parece controlar-se, seus amigos não a deixam sozinha. Os locais são ermos e o acesso, embora restrito, não é obstáculo para os adeptos da seita de Manson. Entretanto, há sempre um deles nas proximidades, ignorando o direito dos artistas ao seu estilo de vida. Mesmo assim suas mansões continuam a ser vigiadas e o medo se impõe ainda que Dalton e Booth os enfrentem sem medo.

O modo como Tarantino se vale do suspense para construir estas sequências põe os espectadores pregados à cadeira. Se algum deles aguardava a recriação da brutal invasão da mansão de Sharon Tate, ele inverte os fatos reais para recriá-los à sua maneira. É como se tratasse do segundo ato, agora sob a ótica dos amigos da jovem atriz, assassinada mesmo estando grávida. Eles ao se verem cercados e sob o risco de serem liquidados reagem de forma a não se deixar vitimar por razões puramente messiânicas. E não se sentem viciados em drogas ou vivendo em pecado. Só se acham no direito de se divertirem livremente em suas mansões.

A coreografada violência dos filmes de Tarantino em grandes planos, cronometrados enquadramentos, belos movimentos da câmera e a iluminação de seu diretor de fotografia Robert Richardson são precisos. Ainda que em estreitos espaços, ele a afaste para que os atores se movimentem e interpretem a sequência. Como numa elipse não se vê sangue em profusão, nem corpos dilacerados. Este, enfim, poderia ter sido o fim do grupo de Charles Manson (1911/2017). Mas se a catarse no desfecho deixa o espectador aliviado, a história real prossegue congelada pelo tempo. O cinema apenas a recriou para que ela não se repita.

Era uma vez em Hollywood (Once Upon a time in Hollywood). EUA. Drama, thriller. Montagem: Fred Raskin. Fotografia: Robert Richardson, Roteiro/direção: Quentin Tarantino. Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robin, Al Pacino, Mike Moh, Mikey Maderson, Francesca Capucci.

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