Emenda 3: greve política sim, senhor Serra!

A direita revanchista não perdeu tempo e contra-atacou os trabalhadores com o velho método liberal do século XIX. Os metroviários de São Paulo foram os mais atingidos em decorrência da posição estratégica que ocupam.

Como seria de esperar, as paralisações da segunda-feira (23) contra a Emenda 3 funcionaram como pano vermelho: atraíram a ira de touros enraivecidos, que acusaram os trabalhadores, entre outras coisas, de criminosos. Os vigaristas de sempre — principalmente “comentaristas” e editorialistas dos monopólios de mídia — disseram, basicamente, que as centrais sindicais não se amoldaram à “racionalidade do capitalismo moderno”. A categoria mais agredida foi a dos metroviários de São Paulo, que sofreu duras retaliações — inclusive com demissões de dirigentes sindicais, acusados de “sabotagem”. A senha para a fúria reacionária foi dada pelo governador José Serra (PSDB), que já na manhã de segunda-feira disse que a greve era “política” por não ter “nada a ver com as condições de trabalho do pessoal do metrô e dos ônibus.''


 


O discurso do governador, afinado com o coro da mídia oligárquica, repetiu o velho e estropiado linguajar liberal criado desde que os primeiros trabalhadores assalariados brasileiros fizeram greve, ainda no século XIX. ''É uma greve eminentemente política, para servir a sindicatos, não para servir nem à população nem aos trabalhadores. E que causa prejuízo aos trabalhadores que precisam do transporte para ganhar o seu pão de cada dia'', disse o dissimulado governador. ''O prejuízo em matéria de infelicidade das pessoas é difícil de medir'', disse Serra. ''Esse é o (prejuízo) maior de todo'', bradou. O presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Flávio Godói, respondeu à altura. ''Toda manifestação que os metroviários fazem eles dizem que é política. Se defender os direitos dos trabalhadores é ser político, nós sempre vamos fazer manifestação política'', afirmou.


 


O velho conhecido Serra


 


Como metroviário há 21 anos — dos quais mais de 10 na função de diretor de imprensa do sindicato da categoria —, conheço muito bem este discurso. Por estar numa posição estratégica na principal cidade do país, qualquer manifestação destes trabalhadores tem enorme repercussão. Foi assim já na greve geral de 1983 — a primeira após o golpe militar de 1964 — quando a categoria, recém-organizada em seu sindicato, foi duramente perseguida. “Lamentamos (…) que os meios de comunicação, submetidos à pressão do governo federal, tenham se prestado ao serviço de desinformar a população”, dizia uma nota do sindicato. “O Sindicato dos Metroviários reafirma a sua disposição de continuar, junto com a categoria e os demais trabalhadores do país, a luta contra as intervenções nos sindicatos de Paulínia, Mataripe, metalúrgicos de São Bernardo, bancários e metroviários”, afirmava a nota.


 


Na intervenção foi nomeada uma “Comissão de Inquérito” para “apurar as responsabilidades” dos diretores na greve, que deveria subsidiar a decisão do Ministério do Trabalho. Logo o ministro do Trabalho, Murillo Macedo, assinaria a cassação da diretoria do sindicato. Outra medida de violência seria anunciada logo em seguida pelo superintendente da Polícia Federal, o ex-delegado-geral do Dops Romeu Tuma, que determinou a abertura de inquérito, na Justiça Federal, com base na Lei de Greve da ditadura militar. O processo só terminaria com a anistia concedida pelo governo do presidente José Sarney. Ainda neste período, entraria em cena um velho conhecido dos metroviários: José Serra.


 


Catracas abertas para o caos


 


Como o todo poderoso secretário do Planejamento do governo estadual de Franco Montoro (PMDB), na campanha salarial de 1983, quando o elevado desemprego assombrava os trabalhadores, Serra reclamou publicamente da estabilidade no emprego recomendada pelo então secretário dos Negócios Metropolitanos, Almino Affonso, e concedida pelo Metrô até o final do ano. Um dos aliados de Serra na direção da empresa dizia que existiam “muitos vagabundos” no Metrô, e que daria para mandar uns 700 embora.


 


Na campanha salarial de 1984, quando a categoria decidiu liberar a passagem gratuita dos usuários por algumas horas, os jornais noticiaram que o protesto era tido no Palácio dos Bandeirantes como “expropriação” — já que a empresa é propriedade do Estado e seu movimento financeiro pertence à “população”. O jornal O Estado de S. Paulo publicou um editorial cujo título dava bem a dimensão da reação à combatividade dos metroviários: “Catracas abertas para o caos”. A Folha de S. Paulo, à época já praticante do “jornalismo” mais próximo da fofoca do que da realidade, também seguiu o tom e publicou um editorial pedindo “punição exemplar” para a categoria.


 


Em 1985, no auge do impasse das negociações do acordo coletivo, num encontro mediado pelo então deputado estadual Benedito Cintra (à época, apesar de pertencer ao PCdoB ele estava no PMDB), Montoro recebeu dirigentes do sindicato e sugeriu que os metroviários marcassem uma reunião com Serra, que poderia “tomar a melhor decisão”. O governador comprometeu-se a “conversar com o Serra para ver o que pode ser feito”. A conversa com o secretário do Planejamento se resumiu à troca de informações e ao compromisso de Serra em levar as “ponderações” dos metroviários ao governador e ao secretário de governo, Luiz Carlos Bresser Pereira. Ele estava visivelmente enrolando a categoria.


 


Revoada de tucanos


 


Nos anos 90, com o projeto de FHC em andamento, os metroviários sentiram na pele a truculência neoliberal. Qualquer atividade da categoria rendia horas e rios de tinta de provocações na “grande imprensa”. O rádio e a televisão abusavam da mentira, da calúnia e das ameaças aos trabalhadores. Parlamentares de direita, palpiteiros desqualificados e “especialistas em direito trabalhista” passavam horas engrossando a baixaria dos apresentadores dos programas ditos “populares”. Os jornais circulavam com manchetes agressivas e editoriais que cheiravam fascismo. O abuso era tanto que certa vez a TV Globo censurou um anúncio pago do sindicato, alegando que a expressão “Plano FHC” deveria ser substituído por “Plano Econômico”. Feita a alteração, o anúncio foi ao ar.



 


No apagar das luzes do governo de Luiz Antônio Fleury (PMDB), o governador enviou um projeto de lei criando o Programa Estadual de Privatizações (PEP) — uma iniciativa provavelmente combinada com o governador eleito em novembro de 1994, Mário Covas (PSDB). Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno, disputado entre Fleury e Paulo Maluf, houve uma revoada de tucanos para a candidatura do PMDB. Serra, o líder da debandada, foi um dos primeiros a apoiar Fleury.



A contestação dos metroviários ao PEP rendeu o seguinte comentário do jornal O Estado de S. Paulo:  “O executivo não pode se deixar levar pelos sobas (chefes de tribo) que controlam essa organização (o sindicato).” Na esteira da repressão aos sindicatos desencadeada quando o Exército ocupou as refinarias da Petrobras durante uma greve dos petroleiros, em 1995, uma avalanche de processos judiciais atingiu os metroviários. Eu mesmo fui acionado na Justiça pelo Ministério Público Federal sob a absurda acusação de “sabotagem”. Fui a julgamento e absolvido.


 


A ''pedra'' de FHC e Serra


 


Dali em diante, a luta sindical seria cada vez mais dura. No dia 21 de junho de 1996 os metroviários participaram da greve geral convocada pelas centrais sindicais contra os efeitos da política econômica do governo FHC e novamente foram duramente reprimidos. Os diretores do sindicato Flávio Godoi e Onofre Gonçalves de Jesus chegaram a ser detidos.


 


Ainda em 1996, os metroviários foram ameaçados quando protestaram contra a presença de FHC na estação Itaquera para inaugurar a “pedra fundamental” da retomada da extensão Leste do metrô. Na verdade, o presidente da República estava fazendo campanha para Serra, candidato à prefeitura de São Paulo. Naquela campanha, os tucanos abusaram das falsas promessas sobre a expansão do metrô para se contrapor à campanha do candidato malufista Celso Pitta, que prometia trens voando pela cidade com o nome de “fura-fila”.


 


Em 1999, com o país mergulhado na crise e obedecendo ordens do Fundo Monetário Internacional (FMI), o choque com os trabalhadores seria inevitável e o governo agiu para amedrontar também a Justiça do Trabalho. A mídia amplificou ao máximo as calúnias lançadas pelo senador Antônio Carlos Magalhães (ACM) — a essa altura um dos principais esteios do governo FHC —, segundo as quais os tribunais trabalhistas eram uma ameaça à “estabilidade econômica”. A ordem era não conceder reajuste. ACM desferia uma saraivada de pontapés na legislação trabalhista e o assunto acabou em bate-boca com o então vice-presidente do TST, Almir Pazzianotto.


 



Hitler e o pastor Jim Jones


 


A revista Época noticiou que o senador foi escalado por FHC para convencer os juízes trabalhistas a segurar os reajustes salariais até o segundo semestre. Em São Paulo, circulavam rumores de que FHC estaria articulando, por meio do secretário-geral da Presidência da República, Eduardo Jorge, e o juiz Nicolau dos Santos Neto — que mais tarde seria um foragido da Justiça —, a indicação de juízes pró-Plano Real em troca de dinheiro para a construção superfaturada do novo prédio do Tribunal Regional do Trabalho (TRT).


 


ACM chegou a criar uma CPI do Judiciário, mas a farsa não seguiu adiante. Truculento, bateu de frente com os magistrados e ameaçou acabar com a Justiça do Trabalho. Ele disse que estava recebendo apoios à idéia e provocou a seguinte resposta do presidente do TST, Wagner Pimenta: “E daí? Hitler e o pastor Jim Jones também tiveram apoio às suas idéias.”



 


Em 2000, o presidente do sindicato, Onofre Gonçalves de Jesus, foi processado por conta da sua participação no debate público a respeito das causas de um descarrilamento de um trem na estação Santana. A empresa se apressou em dizer que o motivo provável era falha humana. Onofre respondeu que o acidente era mais uma conseqüência da degradação do sistema. O metrô resolveu dirimir a diferença de opinião por meio de uma queixa-crime, com base na velha lei de imprensa do regime militar, e foi derrotado. Outros diretores do sindicato também foram levados à Justiça.



 


Cara a cara com os inimigos


 


O sindicato da categoria tem apenas 25 anos de existência. Nessa trajetória lutou por democracia e combateu o neoliberalismo com ações que puseram os metroviários cara a cara com os ferozes inimigos dos trabalhadores. Soube avaliar o que está se passando com o governo Lula e definiu claramente o lado nessa dura disputa travada atualmente pelos destinos do país.


 


Não aderiu ao governismo e nem ao anti-governismo acríticos. É um sindicato proeminente no movimento popular e democrático que dos anos 80 para cá esteve no centro da disputa pela hegemonia política do país. Como bem resumiu o atual diretor de imprensa do sindicato, Manuel Xavier Lemos Filho, sobre a ameaça de mais uma pesada multa para a categoria em decorrência da paralisação do dia 23 contra a Emenda 3, o prejuízo maior ''seria perder direitos trabalhistas''.


 


 

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