“Em Segredo”:Lembranças da Ex-Iuguslávia

A diretora bosnia Jasmila Zbanic traça painel de seu país para contar uma história de gente comum e as marcas deixadas pelo conflito com a Sérvia

Em Saravejo, a adolescente Sara (Luna Mijovic) espera que a mãe, Esma (Mirjana Karanovic), vá ao cartório pegar sua certidão de nascimento para que ela possa ir à excursão de sua escola de graça. Enquanto isto, Esma se vira para arranjar dinheiro para que a filha consiga atingir seu intento. Com este enredo simples, a diretora bosnia Jasmila Zbanic monta, em seu filme “Em Segredo”, um painel sobre as conseqüências da guerra que opôs seu país à Sérvia, no período pós-repartição da ex-Iuguslávia. Não há imagens do conflito, corpos dilacerados, as marcas estão nos rostos, nos testemunhos dados pelas vítimas em suas reuniões de grupo, para recompor suas vidas. São em sua maioria mulheres que perderam seus maridos, pais, irmãos, e que, agora, lembram-nos como mártires de uma causa que lhes parece gloriosa.



         


Zbanic retrata-as em seu cotidiano, sem grandiloqüência. Seus personagens são pessoas comuns, como a operária Sabrina, amiga de Esma, e Sara, às voltas com as descobertas da adolescência. Como num documentário, Zbanic acompanha-as. Nada há de extraordinária na vida destas mulheres. O vai-e-vem de Esma do trabalho de garçonete numa boite para casa, entremeados com encontros com Sabrina, e sua relação com a filha, Sara, nada tem de extraordinário. Às vezes, mãe e filha se chocam, como na seqüência em que Esma, para agradar a Sara, compra truta no mercado e a prepara a seu gosto. As duas se enfrentam, Esma se impõe e Sara não se submete. Cenas iguais a estas acontecem com muitas mães e filhas adolescentes em qualquer lugar.


 


           


Crime organizado: uma das faces do capital


           


Visto desta maneira, o espectador pode perguntar: e daí? É com este cotidiano que Zbanic vai montando seu painel sobre a vida na Bosnia. Num encontro com a tia, Esma lhe pede dinheiro emprestado para a excursão da filha e esta lhe diz que antes era melhor. Além de ter dinheiro, ainda podia passar suas férias numa colônia de aposentados. Agora sua aposentadoria é insuficiente. Esma continua sua peregrinação. Aborda o patrão para que este lhe faça um adiantamento, para quitar a excursão da filha. E nos vemos diante de outra realidade de seu país. A do crime organizado, que controla o lazer da classe média. São nuances que fazem o filme fluir, enquanto o espectador se conscientiza das aflições e barreiras enfrentadas por Esma.
            


 


O capitalismo que sucedeu ao “socialismo de rosto humano” de Tito tem as mesmas fraturas e mazelas neoliberais e globalizantes de outras partes do planeta. Zbanic denuncia-o através de Spelda, o guarda-costas do patrão de Esma. Antes da queda de Iuguslávia, ele estudava economia, agora perdeu a perspectiva de vida, quer emigrar para a Áustria. Ao contrário de seu amigo Cenga, ele ainda não embruteceu. É sensível, percebe os tormentos de Esma e dela procura se aproximar. São vítimas do mesmo sistema e precisam um do outro. Ela perdeu o pai no conflito com a Sérvia e conseguiu identificá-lo entre tantos cadáveres, ele ainda sonha fazer o mesmo. Zbanic, por meio deles, mostra que ainda há esperança, entre a brutalidade da guerra e a árdua vida sob o capitalismo.


 


              


A arte de agradar: mulher objeto


              


 


O mesmo capitalismo que leva a companheira de Esma na boite, a tentar ensinar-lhe as manhas sobre como agradar os homens. A moça lhe diz que é desnudando os seios que se fará notar, e ela não a atende. Não é preciso se render aos falsos encantos da besta para ganhar a vida. E Esma não cede, trabalha, vai por entre as mesas, atende aos fregueses e retorna à sua vida solitária com a filha. Só que, ao contrário do que poderia ser, Zbanic não a torna amarga, desesperançada. Ela só teme deixar-se envolver por alguém e ser ferida. E, embora Sara a atormente com perguntas que ela teme responder com sinceridade, tem seus momentos de atração pelo sexo oposto. Spelda consegue fazê-la sorrir, sair, ficar a sós, mesmo espreitada pela filha que, a seu modo, dela sente ciúmes. Mas Esma consegue transformar uma situação delicada num trunfo: dá liberdade à filha e fica à vontade para desfrutar sua vida.



              


O universo de Esma, montado por Zbanic, é o das mulheres reais, não idealizadas. Esma e Sabrina trocam impressões, ela ajuda a amiga a experimentar vestido novo e saem a passear pelas ruas. Mas neste painel as intenções não vêm à tona com facilidade. Em momento algum se percebe para onde o filme está indo. Fica-se com a impressão de que nada há além do mostrado. Aquelas mulheres sentadas numa repartição pública testemunham sobre suas perdas; as estudantes adolescentes vêm seus entes queridos mortos no conflito com a Sérvia como mártires, não como heróis, e os homens ainda têm escrúpulos, embora chafurdados na lama. Uma sutileza que Zbanic opõe àqueles que poderiam ser vistos como heróis simplesmente: eles deram suas vidas por algo que valeu a pena. E nisto se constitui a busca de Sara, com sua insistência em ter a certidão para sua ida à excursão de sua escola.


              
            


Filme sobre gente comum em cotidiano comum
 
             


 


Ela, a certidão, serve como um McGuffen, aquele objeto que mocinhos e bandidos buscam nos filmes de Hitchcock, mas que no fundo é apenas um pretexto para a ação, não o mote principal. Por trás de sua busca há mais, muito mais. E há Saravejo, uma cidade ocidentalizada com seus prédios brancos, sob a paisagem de inverno. Falta cor, para diferencia-los. A cor está nas roupas alegres das mulheres da confecção, que gratificam a vida de Esma quando ela está desesperançada. Esta dialética entre a dor e a solidariedade, a solidão e a paixão, a atração entre Spelda e Esma, a irritação de Sara e sua alegria em saber que tem o cabelo do pai, pontua “Em Segredo” desde o início. Não se parece com os filmes que hoje inundam as telas de todo o mundo.



              


É um filme sobre pessoas comuns, em lugares comuns, com cotidiano comum. Menos por um detalhe, Zbanic, ao retirar de “Sem Segredo” qualquer traço de epopéia ou drama em que sobressaia o heroísmo, escapa também ao lugar comum. Seu enredo não cresce a ponto de se esperar ações grandiloqüentes. Não se torce para que Esma consiga pegar a certidão de nascimento de Sara ou o dinheiro para pagar sua excursão. Apenas acompanha-se sua dificuldade para sustentar a filha e fazer seus caprichos. Mas, ao seguir esta linha, Zbanic deixa espaço para um desfecho surpreendente. Esma, em seu aparente equilíbrio, é capaz de fazer explodir sua ira, com uma ferocidade insuspeita. E, também, de encontrar palavras doces e esperançosas para Spelda, quando este anuncia que prestes a alcançar seu intento. 


             



Diretora escapa ao enredo trivial


             


Enfim, é bom repetir, uma obra com seres que se pode ver na esquina e ouvir suas histórias numa viagem de ônibus ou de metrô. No cinema atual é difícil encontrar filme assim. Zbanic, com sensibilidade, entrou no universo feminino, sem mistificação, sem a tentativa de aproximar a câmera para psicologizar os personagens, o que resultaria num superficial intimismo. São belas as cenas entre Sara e o namorado, de Esma e Spelda, a plasticidade predomina. Há, sobretudo, equilíbrio  nas seqüências em que a violência poderia tirar o filme do tom, que ela, a diretora, pretendia dar desde o início com a contribuição da fotografia de Christiane A. Maier. E muito simbolismo quando Sara desvencilha-se dos cabelos, que a ligava a um pai do qual nada sabe. Ela fica livre para escolher outro caminho e o faz reconciliando-se com a mãe.A Bosnia é, enfim, revelada “Em Segredo” com suas contradições e esperanças.


 



Em Segredo (Grbavica). 2006, 1h30, 14 anos. Produção: Croacia/Áustria/Bosnia-Herzegovina/Alemanha. Fotografia: Christiane A. Maier. Roteiro/Direção: Jasmila Zbanic. Elenco: Mirjana Karanovic, Luna Mijovic, Leon Lucev.

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