Em defesa de Engels

A iniciativa do Grupo de Pesquisa Marx no Século 21 (FCH/UFBA – Universidade Federal da Bahia) e do Instituto Maurício Grabóis, de realizar um seminário sobre a obra de Engels – e agora publicar um livro com o resultado daquele evento – é

A homenagem também não deixa de ter certo sabor de vingança – uma caprichosa vingança da história. Desde o início do século 20, desenvolveu-se, no campo da intelectualidade de esquerda, uma forte corrente que buscou minimizar – ou mesmo desqualificar – as contribuições de Engels ao processo de construção do marxismo.


 


 


O conflito ganhou novos contornos com a publicação, em 1932, dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx e de A dialética da natureza de Engels, em 1939. O primeiro havia sido escrito em 1844; o segundo, na década de 1870. Estes trabalhos, redigidos em períodos e sob perspectivas tão diferentes, passaram a ser considerados provas definitivas da existência de uma profunda diferença entre os dois grandes pensadores socialistas; Engels considerado mecanicista, positivista e economicista; Marx, dialético e anti-dogmático.


 


 



Entre outras coisas, Engels passou a ser acusado de ter criado os pressupostos teóricos e políticos do reformismo social-democrata e do chamado stalinismo. Os alvos centrais dos críticos foram os seus textos filosóficos, nos quais ele buscava provar a existência de um movimento dialético também da natureza. Uns o acusaram de tentar naturalizar a história humana; outros, contraditoriamente, de buscar humanizar a natureza.


 


 



Houve, assim, uma verdadeira subversão da opinião amplamente hegemônica no interior do movimento socialista até as primeiras décadas do século 20, quer na vertente social-democrata quer na comunista. Num artigo fúnebre, escrito em 1895, Lênin escreveu: “Desde o dia em que o destino juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra a que os dois consagraram toda a vida converteu-se numa obra comum”. E concluiu, “o proletariado pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos”.


 


 


 
Os críticos muitas vezes – e infelizmente – se utilizam da própria modéstia de Engels para atacá-lo. Buscam, assim, demonstrar que ele era, em todos os aspectos, um pensador bastante inferior a Marx. Pior: alguém que contribuiu para descaracterizar a obra genial do amigo.


 


 
Em 1884 – ainda sob o impacto da morte de Marx –, Engels escreveu: “Durante toda a minha vida tenho feito aquilo para que fui talhado: ser um segundo violino – e creio que me tenho saído muito bem nesta função. Eu sou feliz por ter tido um maravilhoso primeiro violino: Marx.”  Numa das notas ao seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, seguiu no mesmo tom: “Não posso negar que antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx tive certa participação independente, tanto na fundação quanto na elaboração da teoria (…) A contribuição que dei (…) poderia ter sido trazida por Marx mesmo sem mim. Ao contrário, o que Marx fez eu não estaria em condições de fazer.


 


 


Marx estava mais acima, via mais longe, tinha uma visão mais ampla e mais rápida que todos nós. Marx era um gênio; nós no máximo, tínhamos talento” . Engels via-se, no máximo, como um bom segundo violino. Mas, na sinfonia que eles elaboraram, o segundo violino era imprescindível.


 


 


Assim, contrariando grande parte dos intelectuais marxistas ocidentais, devemos afirmar que não existiria o que hoje conhecemos como marxismo, sem a contribuição teórica e prática daquele “segundo violino”.


 


 


Marx e Engels, desde que se conheceram, estabeleceram certa divisão de trabalho intelectual – procedimento bastante incomum entre pensadores de tal porte. Na juventude, produziram conjuntamente A sagrada família, A ideologia alemã e o Manifesto do Partido Comunista. Não é sem razão que suas obras (escolhidas ou completas) tenham sido, na maioria das vezes, editadas em comum.


 


 


Se pesquisarmos o conjunto dos textos destes dois intelectuais socialistas – que iniciaram sua colaboração em 1844 –, não encontraremos nenhuma prova da existência de diferenças significativas de opinião sobre qualquer dos temas centrais tratados por eles; e sabemos, por exemplo, o quanto Marx era exigente – e mesmo intransigente – no campo da “luta de idéias”. Ele não era homem de fazer concessões políticas ou teóricas.


 


 


Foi Engels, em 1887, que elucidou esta questão: “Em conseqüência da divisão de trabalho existente (…) tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, portanto especialmente na luta contra as opiniões adversas; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior”.


 



 
Dentro deste esquema de trabalho que Engels produziu Anti-Duhring (1877), Do socialismo utópico ao científico (1880), As origens da família, da  propriedade privada e do Estado (1884), Ludwig Feuerbach e O fim da filosofia clássica alemã (1886) e os manuscritos que, depois da sua morte, dariam origem à Dialética da natureza, elaborados na década de 1870. Mesmo estes textos, muito criticados pela maioria dos “marxistas ocidentais”, tiveram o dedo, ou melhor, a contribuição intelectual, do velho Marx.


 


 


Engels, no Prefácio à segunda edição de Anti-Duhring, deu conta da parte que coube a Marx: “Tendo sido criada por Marx (…) a concepção exposta neste livro, não conviria que eu publicasse a revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia (…) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um”. Eis uma prova testemunhal do crime cometido por Marx contra sua própria teoria.


 



 
Mas a bête noir dos marxistas anti-engelsianos é, sem dúvida, A dialética da natureza. Os manuscritos que deram origem a esta obra se inseriam no combate teórico que se travava na segunda metade do século 19. Para cumprir esta missão, delegada pela social-democracia alemã, Engels passou oito anos estudando ciências naturais. No entanto, o trabalho não pôde ser concluído e somente em 1925 viria a público. Nascido como resposta ao materialismo vulgar – mecanicista – do século 19, seria recebido como prova tardia de um suposto viés positivista e naturalista do autor.


 


 


Mesmo aqui, onde pensavam ‘pegar’ apenas Engels, acabaram, indiretamente, atingindo o próprio Marx, pois este foi um leitor privilegiado dos manuscritos e, inclusive, fez comentários positivos às margens daquele trabalho. Os biógrafos afirmam que ocorreu uma discussão intensa entre os dois amigos na segunda metade de década de 1870 e Marx dizia estar ansioso para ver a obra publicada. Se erros positivistas existem neste trabalho, Marx, no mínimo, compartilhou amplamente deles.


 


 


Dentro do esquema teórico (materialista e dialético) elaborado por Engels e Marx, eles estavam certos ao pensar a dialética como uma lei geral do desenvolvimento tanto da natureza quanto da sociedade. Estavam corretos também ao reafirmar que a história humana é um prolongamento da história natural. Os homens fazem parte da natureza e a ela não são estranhos. Toda ciência moderna comprova isso.


 


 



Se Marx não se dedicou a escrever sobre a dialética da natureza foi porque, na divisão de trabalho, esta tarefa coube a Engels. O silêncio sobre o tema não significa que Marx não o considerasse importante. Existe, inclusive, uma significativa correspondência entre ambos sobre o assunto, publicada sob o título Cartas sobre las ciencias de la naturaleza y las matemáticas


 



Podemos dizer que esta parceria profícua continuou bem depois da morte de Marx. Por exemplo, foi Engels que publicou os livros II e III de O Capital, decifrando os verdadeiros garranchos deixados por Marx e dando a eles certa organização. Esse fato levou alguns estudiosos, corretamente, a questionar a ausência do nome de Engels naquela monumental obra da economia política contemporânea. Escreveu Lênin: “editando os tomos II e III de O Capital, Engels ergueu ao genial amigo um grandioso monumento no qual, involuntariamente, tinha gravado também o seu próprio nome em letras indeléveis. Estes dois tomos de O Capital são, com efeito, obra de ambos, de Marx e Engels”.


 


 



Não deixa de ser irônico que o maior crítico do positivismo e do economicismo no interior do movimento socialista seja, posteriormente, acusado de ser seu principal introdutor e incentivador. Justo Engels, que tinha plena consciência da possibilidade de uma deturpação economicista do marxismo e, por isso mesmo, dedicou seus últimos anos de vida a combater a idéia daqueles que acreditavam ser a sociedade um simples reflexo mecânico da economia. Ele, que não se cansou de reforçar o caráter complexo e mediatizado da determinação econômica e a importância das outras esferas sociais, como a ideologia e a política.


 



 
Escreveu Engels: “A responsabilidade de que, às vezes, os jovens dêem ao aspecto econômico um peso maior do que o devido, deve cair parcialmente sobre Marx e sobre mim. Frente aos nossos adversários, era preciso sublinhar o princípio essencial negado por eles, e então nem sempre tínhamos o tempo, o lugar, nem a ocasião para fazer justiça aos demais fatores que intervêm na ação recíproca.” Numa carta a Bloch, escrita em 1890, afirmou: “Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida material. Nem Marx nem eu nunca afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isto. Se alguém tergiversa o modifica afirmando dizendo que o fator econômico é o único fator determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda”. 


 


 


 Continuou ele, “se os mais jovens insistem, às vezes mais do que devem, sobre os aspectos econômicos, a culpa em parte temos Marx e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçamos a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar a importância devido aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e reações” .


 



 
Na sua obra mais polêmica, A dialética da natureza, Engels criticou duramente os que advogavam uma “concepção naturalista da história”, pois estes encaravam “o problema como se exclusivamente a natureza atuasse sobre os homens e como se as condições naturais determinassem, como um todo, o seu desenvolvimento histórico. Essa concepção unilateral esquece que o homem também reage sobre a natureza, transformando-a e criando para novas condições de existência”.


 


 


 
Em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã escreveu: “a história do desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, em um ponto, da história do desenvolvimento da natureza. Nesta (…), os fatores que atuam uns sobre os outros e em cujo jogo mútuo se impõe a lei geral, são todos agentes inconscientes e cegos (…) Ao contrário, na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam movidos pela reflexão ou a paixão, perseguindo determinados fins; aqui, nada acontece sem uma intenção consciente, sem um fim proposto”.


 


 


 
Segundo David Mclellan: “Engels explorou seu imenso talento nas áreas mais variadas possíveis: foi lingüista de primeira categoria, importante crítico militar, pelos menos se igualou a Marx como historiador, foi pioneiro da antropologia e reconhecido orientador de uma dúzia de partidos marxistas então emergentes”. O livro que, agora, os leitores têm em mãos procura dar conta dessas múltiplas dimensões da produção teórica daquele importante intelectual e dirigente socialista.


 


 



Em tempo:


 


 


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Nota


 


Este texto, com algumas adequações, corresponde à apresentação do livro Friedrich Engels e a Ciência Contemporânea, publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia. 


 


 


Bibliografia


 



COGGIOLA, Osvaldo. Engels, o segundo violino, Ed. Xamã, SP, 1995.
———————- (org) Marx e Engels na História, Humanitas, SP, 1996.
ENGELS, F. “Carta à Bloch”. In: Marx, K., Engels, F., Obras Escolhidas, vol. 3, Ed. Alfa Omega, S.P., s/d.
————-. “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”. In: Marx, K., Engels, F., Obras Escolhidas, Vol. 3, Ed. Alfa Omega, S.P., s/d.
—————. A dialética da natureza, 3ª edição, Ed. Paz e Terra, RJ, 1979.
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LÊNIN, V. I. “Friedrich Engels”. In: Lênin, V.I, Obras Escolhidas, Vol. 1, , Editora Alfa Omega, S.P., 1982.
MCLELAN, David, As idéias de Engels, Ed. Cultrix, S.P, 1977.
MUSSE, Ricardo, “O primeiro marxista”. In: Boito Jr. e outros (org) A obra teórica de Marx – atualidade, problemas e interpretações, Ed. Xamã/IFCH-Unicamp, 2000
ROCHA, Ronald. “Dois violinos e uma só harmonia”. In: Boito Jr. e outros (org) A obra teórica de Marx – atualidade, problemas e interpretações, Ed. Xamã/IFCH-Unicamp, 2000 
TOLEDO, Caio Navarro. “O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo”. In: Teoria Política, nº2, Ed. Brasil Debates, SP, 1980.

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